EL PASO, EUA - Título 42 é o nome da política adotada pelo governo americano há três anos, então comandado por Donald Trump, para impedir que centenas de milhares de imigrantes entrassem nos Estados Unidos durante a pandemia. A regra permitia a expulsão imediata de estrangeiros sob pretexto de evitar a propagação da covid. Na quinta-feira, a determinação será suspensa, o que ameaça criar uma nova crise na fronteira com o México.
Por isso, o presidente americano, Joe Biden, está se preparando para uma nova onda de imigração, que pode inflamar ainda mais as tensões políticas e sobrecarregar os recursos dentro dos EUA, especialmente em Estados próximos da fronteira. Salvo alguma contestação legal de última hora, o Título 42, em referência a uma lei de saúde pública de 1944, expirará às 23h59 (0h59 de sexta-feira em Brasília).
Agentes de fronteira, autoridades estaduais e locais e até os principais assessores do presidente Biden estão se preparando para a chegada de dezenas de milhares de migrantes nos próximos dias. As pessoas já começaram a cruzar para os EUA. Três cidades do Texas – Brownsville, Laredo e El Paso – declararam estado de emergência.
Do lado de fora da Igreja Católica do Sagrado Coração, no centro de El Paso, na semana passada, um quadro de miséria humana se espalhou por vários quarteirões, com migrantes carentes ocupando cada pedaço da calçada.
Em apenas alguns dias, os números na cidade subiram de algumas dezenas para cerca de 2 mil pessoas, e mais continuam chegando. As famílias dormem em caixas de papelão, colocando lençóis nas cercas para criar sombra durante o dia.
Homens fisicamente aptos estão pedindo dinheiro para ônibus para chegar a Houston, Denver e Orlando, onde disseram que há empregos à sua espera; crianças pequenas vagam pelos becos procurando comida e implorando por trocados.
“É uma crise real”, disse o padre Rafael Garcia, observando a multidão que se espalhava em todas as direções na semana passada. “Se for agora, como será depois de 11 de maio? Como isso vai se desenrolar?”
Essa questão está no cerne de um desafio monumental com uma história sombria. Quando as restrições inspiradas pela pandemia terminarem, as autoridades de fronteira retomarão um sistema de imigração que falhou em grande parte por décadas, mas com a pressão adicional de três anos de demanda reprimida. Cerca de 35 mil migrantes estão reunidos em Ciudad Juárez, outros 15 mil em Tijuana e milhares em outros lugares no lado mexicano da fronteira de mais de 3 mil km.
Funcionários da Casa Branca disseram que trabalharam durante meses para se preparar para um provável aumento. Eles construíram instalações temporárias para abrigar milhares de migrantes, contrataram empreiteiros e reduziram o tempo de processamento das pessoas sob custódia. Eles também tomaram medidas para encorajar um fluxo de migração mais ordenado.
Uma nova regra dura que desqualifica requerentes de asilo que não buscaram proteção primeiro em outro país entrará em vigor na quinta-feira. Ao mesmo tempo, o governo está trabalhando com as Nações Unidas e outros países para abrir centros de processamento na Colômbia e na Guatemala para incentivar os migrantes a solicitar refúgio nos Estados Unidos ou em outros países sem caminhar até a fronteira. Recentemente, foram adicionados programas para migrantes de alguns outros países.
Na semana passada, o presidente ordenou 1,5 mil soldados para ajudar na fronteira. Mesmo assim, as autoridades esperam uma multidão de pessoas nos próximos dias. Biden enfrenta mudanças globais nos padrões de migração e forças econômicas e agitação social que estão implacavelmente levando as pessoas para o Hemisfério Norte.
Dentro dos EUA, o debate sobre como consertar o sistema de imigração falido do país continua polarizado e superaquecido, representando sério risco político para todos os envolvidos no início da temporada eleitoral de 2024.
Ninguém tem certeza do que acontecerá depois de quinta-feira. O governo federal espera até 13 mil migrantes por dia imediatamente após o término da medida, em comparação aos números atuais de 6 mil em um dia típico. Mas questionado sobre o que provavelmente acontecerá, um funcionário da fronteira disse aos repórteres: “Não tenho ideia”, reforçando que o aumento “já está aqui”.
Mesmo com o Título 42 ainda em vigor ao longo das fronteiras sul e norte dos EUA, o número de pessoas que entram ilegalmente no país aumentou vertiginosamente e seu perfil mudou: mais pessoas de nações distantes em dificuldades econômicas ou turbulência política como Venezuela, China, Índia e Rússia, têm enfrentado uma árdua jornada para chegar à entrada do território americano.
O impacto do aumento das travessias de migrantes – mais de 3 milhões nos primeiros 18 meses do governo Biden e o maior número em décadas – tem reflexos dentro da fronteira. Prefeitos em Nova York, da capital, Washington, e em outros lugares disseram que o influxo sobrecarregou seus recursos, uma situação agravada pelos governadores republicanos da Flórida, Texas e Arizona, que transportaram migrantes de ônibus para essas cidades.
Embora migrantes em massa tenham atravessado nos últimos dias, incertos sobre suas chances no regime de fronteira pós-Título 42 ou instigados por contrabandistas, espera-se que eles entrem ainda mais após a suspensão da medida, cientes de que não serão imediatamente devolvidos ao México se forem pegos ou apostam que agentes de fronteira sobrecarregados não os pegarão se fugirem.
Aqueles que forem capturados entrarão em um sistema de processamento de fronteira que já está lotado em muitos lugares. No Vale do Rio Grande, onde a Patrulha de Fronteira tem capacidade para 4,6 mil migrantes, as autoridades informaram ter 6 mil sob custódia até 4 de maio, cerca de dois terços deles da Venezuela. Um campo de beisebol universitário em Brownsville, Texas, foi transformado em um centro de processamento improvisado.
Os republicanos estão preparados para usar as cenas para reforçar seus ataques políticos a Biden e aos democratas, acusando-os de não proteger a fronteira. Nesta semana, os republicanos da Câmara estão prestes a votar um projeto de lei para reviver as agressivas políticas de imigração da era Trump, que os democratas há muito denunciam como cruéis. Os republicanos também estão caminhando para acusações de impeachment contra o secretário de Segurança Interna, Alejandro Mayorkas, como forma de dramatizar suas acusações.
No mês passado, o deputado Mark E. Green, do Tennessee, presidente republicano da Comissão de Segurança Interna da Câmara, disse a seus doadores para “pegarem a pipoca” para assistirem às audiências destinadas a expor o “abandono do dever e a destruição intencional do país por parte de Mayorkas com sua fronteira sul aberta”. “Vai ser divertido”, disse Green à sala.
Mas para Biden, algumas das críticas mais ferozes vêm de aliados de esquerda, que se dizem profundamente desapontados com as medidas que o governo adotou para limitar o número de imigrantes admitidos. A nova regra que exige que os migrantes solicitem asilo no país pelo qual viajam a caminho dos EUA, dizem eles, negaria ilegalmente a muitos até mesmo a chance de solicitar refúgio no território americano. O governo argumenta que mais migrantes agora podem se inscrever legalmente, sem arriscar uma passagem perigosa para a fronteira.
Lee Gelernt, advogado da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) disse que sua organização irá ao tribunal imediatamente para bloquear as novas regras. O senador Robert Menendez, democrata de New Jersey, disse que alternativas agressivas não abordam as forças mais amplas que levam as pessoas a migrar.
“O governo caiu na toca do coelho de que a fiscalização é a única maneira de lidar com esse desafio, e o problema é que isso não resolverá o problema”, disse ele.
Eleanor Acer, diretora do programa de proteção a refugiados da Human Rights First, disse estar aliviada com o fim das restrições pandêmicas da era Trump na fronteira. Mas ela disse que as novas regras de asilo são “ilegais, imorais e totalmente contraproducentes”.
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