ENVIADO ESPECIAL A GEORGETOWN E LETHEM – A estrada muda ao anoitecer. Saímos do asfalto para a terra batida, as casas e os carros se tornam cada vez mais raros e as árvores gigantes começam a surgir. Aos poucos, nos afastamos de Georgetown e entramos no Essequibo, a região da Guiana reivindicada pela Venezuela, rica em minérios e petróleo e em grande parte formada por floresta.
Estamos a caminho de Lethem, uma cidade de três mil habitantes no sul da Guiana que faz parte do Essequibo e distante apenas 15 minutos da fronteira com o Brasil. A viagem é feita de van e dura entre 14 e 16 horas se não houver chuva. Duas horas antes, às 16h, o automóvel partia da capital guianense, no norte do país, com dez passageiros e o motorista, Victor Paredes, para percorrer 552 quilômetros que separam as duas cidades. Ouvíamos Rihanna nas alturas, como é costume entre os guianenses.
Victor faz esse percurso quase todos os dias acompanhado de outras vans que partem sempre nos fins de tarde de Georgetown. Está acostumado com a estrada e tem absoluta segurança sobre o que encontrar adiante. Nascido em uma comunidade rural próxima à Lethem, que sobrevive da agricultura e do garimpo, ele olha o Essequibo como o seu lar.
“Não acha a viagem perigosa?”, pergunto em uma dos postos de gasolina que paramos à beira da estrada. Ele sorri. “Aqui não tem perigo”, responde.
São sete horas da noite de uma quinta-feira, mas o silêncio e a imobilidade dos arredores parece alta madrugada. E sequer estamos tão distantes de Georgetown, a capital de 300 mil habitantes. A internet ainda funciona.
Minutos antes de parar para abastecer, Victor recebeu no WhatsApp a foto do aperto de mão entre o presidente do país, Mohamed Irfaan Ali, e o ditador venezuelano Nicolás Maduro na reunião diplomática em São Vicente e Granadinas naquele dia. Mostrou a um colega que estava ao seu lado e ouviu o grito de um passageiro em seguida: “O presidente precisa responder por que só 2%, isso sim”.
O homem, que não quis conceder entrevista, fala do percentual de royalties que a Guiana recebe da exploração do petróleo offshore da ExxonMobil. Está mais preocupado com os contratos da Guiana com a gigante americana que com o risco do país perder o Essequibo, área que corresponde à 70% do seu território hoje e responsável pelo crescimento recorde da economia no ano passado. Entre alguns habitantes, a chance de guerra é improvável e por isso secundária. “Não achamos que vai ter guerra”, diz Victor, antes de saber o que havia acontecido na reunião entre Irfaan Ali e Maduro. “Nossa região não é de guerra e é muito difícil tomar isso aqui.”
Mata fechada, caminhões com extração de madeira e check-points
Margeamos o rio Essequibo nas primeiras horas de viagem. Por volta das 22h, atravessamos a ponte para o oeste do rio e entramos mais e mais na floresta. A van salta na estrada de terra acidentada e passamos horas cruzando árvores que se escondem na escuridão. Algumas são tão altas que não é possível ver o céu pela janela do carro. No som, Rihanna foi substituída por uma seleção de músicas de reggae e eletroreggae.
Os únicos veículos que cruzam nosso caminho são caminhões que carregam madeiras e outras vans como a de Victor. A cada vez que um caminhão passa por nós, a poeira sobe e o motorista é obrigado a ligar o limpador de para-brisas para enxergar o que está a frente. Três passageiras, uma delas criança, dormem. Na última fileira, três homens, que, descubro mais tarde, são garimpeiros, conversam em um inglês difícil de entender e cantarolam quando começa algum lovers rock, a vertente romântica do ritmo jamaicano.
De vez em quando, as margens da estrada se alargam e as árvores dão lugar a caminhões estacionados e carregamentos de madeira. São áreas inabitadas por pessoas, mas que parecem terem atividades pela manhã. Enquanto a Guiana se transforma na capital com o petróleo, o desmatamento e o garimpo estão em curso no Essequibo.
Pequenos acampamentos e comunidades rurais também aparecem. Paramos em alguns deles para fazer o check-point nos postos de polícia montados na estrada. Em todos eles, há adesivos acompanhados da frase “Essequibo belongs to Guyana (Essequibo pertence a Guiana, em tradução livre)”, assim como em Georgetown. Os estrangeiros, eu e um australiano, Rick Van Veen, precisam apresentar o passaporte. Os policiais anotam em cadernos os números de nossos documentos com canetas esferográficas simples. Nada é digitalizado.
Acampamento para dormir, reservas ambientais e áreas indígenas
Paramos em um acampamento à beira da estrada no início da madrugada para dormir. É preciso esperar até o amanhecer um ferry boat para atravessar o rio Iwokrama, no centro do Essequibo. O lugar está cheio de pessoas dormindo em redes, montadas em uma tenda de madeira e coberto por telhas. Pago 500 dólares guianenses, cerca de R$ 12 reais, por uma rede e durmo algumas horas. Acordo no início da manhã com o céu nublado e um movimento de pessoas.
A maioria dos que estão no acampamento trabalham com garimpo. “Essa terra é cheia de ouro, todo mundo aqui trabalha com isso”, conta Mário da Costa, um brasileiro de 62 anos que mora na região há 30 anos. “Tem gente da Venezuela, do Brasil, da Guiana. Aqui todo mundo convive para ganhar dinheiro.”
Os guianenses que estão aqui têm fenótipos diferentes da maioria das pessoas de Georgetown. Na capital, predominam os descendentes de africanos e indianos, mas aqui os rostos são indígenas. Aqueles que trabalham com garimpo costumam ostentar o ouro: em dentes, pulseiras, colares ou anéis. É assim que descubro que os homens que estão nos bancos traseiros da van são garimpeiros. Usam colares pesados de ouro e confirmam quando perguntados. “A área toda é assim. A gente trabalha em mina de ouro, tem uma roça. Agora está chegando gente estrangeira e isso aqui vai valorizar. O que eu quero agora é vender minha terra e ficar milionário”, diz um deles, identificado como Nicolas.
Saiba mais sobre a disputa por Essequibo
Ao atravessar o rio Iwokrama, paramos em mais um check-point e seguimos pela floresta. Reservas indígenas e ambientais começam a aparecer no caminho. Rick fica em um desses lugares, o Iwokrama River Lodge e Research Center, onde vai trabalhar durante algumas semanas com atividades de preservação ambiental. No caminho, conversamos sobre a disputa do Essequibo e ele opinou: “Vendo uma mata como essa, seria uma loucura uma invasão aqui.”
Duas passageiras, a criança e uma jovem, também descem na região, pouco mais adiante do rio. Duas mulheres aguardam por elas na beira da estrada e depois seguem para dentro da mata. Victor conversa com elas antes de seguir. Ele parece conhecer todos que encontra pelo caminho e, quando alguém lhe é estranho na estrada, diminui a velocidade ressabiado, observando o que fazem.
Aconteceu uma única vez durante a viagem. Alguns homens gravavam a floresta. Victor parou, perguntou algo ininteligível, ouviu uma resposta também ininteligível e, depois de olhar os homens por alguns segundos, seguiu caminho.
Aos poucos, a floresta fica para trás e começa o cerrado. As nuvens que amanheceram no céu se dissiparam. Estamos a quatro horas de Lethem e temos sorte. Caso houvesse chuva, a viagem teria o dobro de tempo.
Lethem: comércio chinês e presença de brasileiros, venezuelanos e guianenses
Somente a uma hora de distância de Lethem é que voltamos a trafegar no asfalto. A cidade, no sul do Essequibo, está cheia de bandeiras da Guiana espalhadas, demarcando a quem pertence. Exceto por isso e por alguns rastafaris nas ruas, não tem nada a ver com Georgetown. Victor deixa os passageiros em um ponto no fim da cidade.
Lethem tem se tornado uma das principais cidades da Guiana por causa de uma zona franca comercial com o Brasil. A 15 minutos de distância, fica o município de Bonfim, no Estado de Roraima. A localização tem atraído investimento de chineses.
A guianense Linda Cann, de 67 anos chegou a Lethem em 1976 como professora. Ela conta que o local não chegava sequer a ser uma cidade. Era apenas uma comunidade rural, com poucas casas espalhadas. “Eu não tinha vizinho nenhum, nenhuma casa ao redor da minha”, afirma.
Após se aposentar nos anos 90, Linda abriu um mercado e um hotel. A cidade havia começado a mudar e a receber brasileiros, mas o ritmo se acelerou há dez anos. Começaram a chegar às lojas chinesas de roupas e eletrônicos com produtos comprados para serem revendidos em todos os lugares, dentro e fora da cidade. “Agora, a cidade é ainda é pequena, mas é outra. Tem de tudo”, continua a professora.
Os venezuelanos também estão presentes na cidade. Começaram a chegar com a crise econômica do país na última década, mas tiveram dificuldades de encontrar emprego formal e estão à maioria na informalidade. Depois de conversar com Linda, converso com alguns deles para a reportagem publicada no dia 17. Encontro também brasileiros na cidade, donos de estabelecimentos, funcionários e compradores que vieram de Bonfim.
No dia seguinte, volto à Georgetown de avião. A cidade tem uma pista de voo, e uma companhia aérea faz o voo até a capital em um aeroporto improvisado. A empresa fica em um imóvel pequeno, de duas salas, uma de espera e outra de compra das passagens, e a revista da bagagem é feita a mão. O avião é pequeno, com assentos individuais dos dois lados. Não vão mais de 30 pessoas. Quando a aeronave decola, o Essequibo se estende até onde a vista alcança e uma guerra nesse território parece algo vago.
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