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Fofocar e delatar: práticas do regime comunista da URSS voltam na Rússia pós-Guerra na Ucrânia

Clima hostil e paranoico reina entre os russos, em guerra com a Ucrânia e uns contra os outros; conforme Kremlin reprime críticos da guerra e outros dissidentes, cidadãos se policiam mutuamente

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Por Robyn Dixon

MOSCOU — Párocos denunciaram sacerdotes russos que defenderam a paz em vez da vitória na guerra da Ucrânia. Professores perderam o emprego depois que crianças revelaram que eles se opunham à guerra. Vizinhos que mantinham alguma antipatia mútua há anos denunciaram seus antigos adversários. Trabalhadores denunciam os colegas para os superiores ou diretamente à polícia, ou ao serviço federal de segurança (FSB).

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Esse é o clima hostil e paranoico que reina entre os russos, em guerra com a Ucrânia e uns contra os outros. Conforme o regime do presidente Vladimir Putin reprime os críticos da guerra e outros dissidentes políticos, os cidadãos estão se policiando mutuamente em um eco dos dias mais sombrios da repressão de Josef Stalin, desencadeando investigações, acusações criminais, perseguições e demissões no trabalho.

Diálogos particulares em restaurantes e vagões de transporte são alvo de bisbilhoteiros, que chamam a polícia para deter “traidores” e “inimigos”. Publicações nas redes sociais e mensagens, mesmo em grupos privados de bate-papo, são usadas como provas que podem levar a uma visita dos agentes do FSB.

Câmera de vigilância próximo ao Kremlin, em Moscou, em imagem de janeiro de 2020. Com guerra na Ucrânia, clima de paranoia entre russos aumentou Foto: Shamil Zhumatov/Reuters

O efeito é assustador, com as delações fortemente incentivadas pelo governo e as notícias de prisões e processos amplificadas por comentaristas e propagandistas nos canais de TV do governo e no Telegram. Em março do ano passado, Putin convocou o país a promover um expurgo, cuspindo os traidores para fora “como insetos”. Desde então, ele emitiu repetidos alertas sombrios a respeito de inimigos internos, alegando que a Rússia está lutando pela própria sobrevivência.

Desde o início da invasão, pelo menos 19.718 pessoas foram detidas por manifestarem sua oposição à guerra, de acordo com o grupo de defesa dos direitos civis OVD-Info, sendo que 584 se tornaram alvo de processos criminais e 6.839, de processos administrativos. Muitos outros sofreram intimidação ou assédio por parte das autoridades, perderam o emprego ou viram seus parentes serem feitos de alvo, de acordo com a organização. Segundo o grupo de defesa dos direitos civis Memorial, há atualmente 558 prisioneiros políticos detidos na Rússia.

“Esta onda de denúncias é um dos sinais de totalitarismo, quando as pessoas entendem o que é bom (do ponto de vista do presidente) e o que é mau, levando-os a pensar que ‘Quem está contra nós deve ser processado’,” disse o analista político Andrei Kolesnikov, residente em Moscou e ligado ao Carnegie Endowment for International Peace, que foi designado como “agente estrangeiro” pelas autoridades, como muitos russos.

Kolesnikov descreve o regime de Putin como cada vez mais autoritário, “mas incorporando elementos do totalitarismo”, e prevê anos difíceis pela frente. “Tenho certeza que ele não retomará a normalidade”, disse ele, referindo-se a Putin. “Ele não é louco no sentido clínico, mas é louco no sentido político, como qualquer ditador.”

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Clima vigilante

A enxurrada de denúncias tornou perigosos os espaços públicos. As salas de aula estão entre os mais arriscados, particularmente durante a aula da manhã de segunda-feira, sancionada pelo governo, “Debates sobre temas importantes”, quando os professores ensinam aos alunos sobre a guerra na Ucrânia, apresentam a visão russa militarista da história, e outros assuntos definidos pelo governo.

Quando almocei com amigos em um restaurante de Moscou este mês, um deles perguntou cuidadosamente ao garçom se havia câmeras no recinto. A resposta foi afirmativa.

Em um escritório, sem mais ninguém na sala, outro amigo praticamente sussurrou suas opiniões contrárias à guerra, olhando nervosamente de um lado para o outro.

Câmeras de vigilância em Moscou, em imagem de 2020. Medo de ser vigiado cresceu no país após invasão à Ucrânia Foto: Associated Press

Quando uma antiga turma de estudantes de idiomas se reuniu com o ex-professor, agora aposentado, para uma recente celebração anual, todos estavam tensos, procurando delicadamente inferir as opiniões dos demais, até perceberem gradualmente que todos detestavam a guerra e poderiam comentar livremente, disse um parente moscovita do professor.

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No vasto sistema de metrô de Moscou, a polícia está ocupada investigando denúncias com a ajuda de uma poderosa tecnologia de reconhecimento facial.

A enfermeira Kamilla Murashova, que trabalha em um sanatório infantil, foi detida no metrô no dia 14 de maio depois de alguém fotografar na mochila dela um broche com as cores azul e amarelo, da bandeira da Ucrânia, e denunciá-la. Murashova foi acusada de difamar as forças armadas.

O gerente de vendas Yuri Samoilov, 40 anos, andava no metrô no dia 17 de março quando outro passageiro reparou na tela de fundo do seu celular, mostrando um símbolo da unidade militar ucraniana Azov, e o denunciou. Samoilov foi condenado por exibir material extremista “a um círculo ilimitado de pessoas”, de acordo com a documentação do tribunal.

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‘As paredes têm ouvidos’

No período soviético, havia uma palavra assustadora para a denúncia contra outros concidadãos: stuchat, a batida na porta, uma referência ao cidadão malicioso que batia na porta de um policial para fazer uma denúncia. O gesto equivalente à expressão “Cuidado, as paredes têm ouvidos” era uma silenciosa batida no ar.

Na Rússia contemporânea, a maioria das denúncias parece ser feita por “patriotas” que se enxergam como guardiães da mãe Rússia, de acordo com a antropóloga social Alexandra Arkhipova, que está elaborando um estudo do tema — depois de ter sido ela própria denunciada no ano passado, por causa de comentários feitos no canal russo de TV independente Dozhd, sediado nos Países Baixos.

Arkhipova e seus colegas de pesquisa identificaram mais de 5.500 casos de denúncias.

Uma mãe de São Petersburgo, por exemplo, identificada em documentos da polícia como E. P Kalacheva, acreditou que estava protegendo o filho de “danos morais” quando denunciou cartazes perto de uma área infantil retratando apartamentos ucranianos destruídos por forças russas, com as palavras, “E as crianças?” Como resultado, um estudante do terceiro ano da universidade foi acusado de difamar as forças armadas.

Arkhipova disse que ela e vários colegas da universidade foram denunciados por um endereço de e-mail identificado como pertencente a Anna Vasilyevna Korobkova — e, assim, ela escreveu para o endereço. A pessoa que se identificou como Korobkova alegou ser neta de um informante da época soviética da KGB, que passava a maior parte do tempo redigindo denúncias. Ela disse que estava seguindo os passos dele.

Korobkova não apresentou comprovação de sua identidade quanto contactada pela reportagem por meio do endereço de e-mail, o que torna impossível corroborar a versão dela.

A autora do e-mail alegou ser uma solteira de 37 anos, residente de uma grande cidade russa, que começou a escrever denúncias em massa de figuras da oposição russa no ano passado. Ela alega ter enviado 1.046 relatórios ao FSB a respeito de nomes da oposição que fizeram comentários na mídia independente, bloqueada na Rússia, desde o início da guerra até maio de 2023, cerca de duas denúncias por dia.

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Sinto uma imensa satisfação moral quando alguém é perseguido por causa da minha denúncia: demissão do trabalho, multa administrativa, etc.

“Em cada entrevista, busco indícios de crimes cometidos: rendição voluntária e distribuição de informações falsas a respeito das atividades das forças armadas da Federação Russa”, disse ela. “Se um prisioneiro de guerra diz, por exemplo, que se entregou voluntariamente, escrevo duas denúncias a respeito dele: ao FSB e ao gabinete do procurador militar.” Ela se gabou dizendo que suas denúncias tinham levado ao fim do mais antigo grupo de defesa dos direitos humanos da Rússia, o Grupo Moscou Helsinki, em janeiro.

“Em geral, os alvos de minhas denúncias foram cientistas, professores, médicos, defensores dos direitos humanos, advogados, jornalistas e pessoas comuns”, disse a autora do e-mail. “Sinto uma imensa satisfação moral quando alguém é perseguido por causa da minha denúncia: demissão do trabalho, multa administrativa, etc.”

Conseguir a prisão de alguém “me deixaria muito feliz”, escreveu ela, acrescentando: “Também considero um sucesso quando a pessoa deixa a Rússia depois de ser denunciada por mim”.

Arkhipova disse que Korobkova investiu bastante esforço escrevendo múltiplas respostas às suas perguntas, e enxergava como seu objetivo dissuadir analistas de falarem com a mídia independente a respeito da guerra. “Podemos encontrar esses tipos por toda parte”, disse Arkhipova. “Eles se acreditam incumbidos de vigiar os limites morais. Sentem que estão fazendo a coisa certa. Estão ajudando Putin, estão ajudando o governo do seu país.”

A professora Tatyana Chervenko, da região de Moscou, mãe de dois filhos, também foi denunciada em meados do ano passado por Korobkova depois de ter se manifestado contra a guerra em uma entrevista ao canal de notícias alemão Deutsche Welle.

“A denúncia dizia que eu me envolvi em atividades de propaganda em sala de aula. Ela inventou tudo. Ela não me conhece, e inventou uma denúncia contra mim”, disse Chervenko.

Inicialmente, a administração da escola ignorou a denúncia. Mas Korobkova escreveu uma segunda denúncia endereçada à comissária de Putin para os direitos das crianças, Maria Lvova-Belova, indiciada juntamente com Putin no Tribunal Penal Internacional pela abdução de crianças ucranianas.

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Depois disso, a diretoria da escola enviou professores e supervisores para acompanhar as aulas dela, especialmente os “Debates sobre temas importantes”. A polícia foi chamada à escola. Pais próximos da diretoria escreveram queixas pedindo a dispensa dela. Quando foi finalmente demitida, em dezembro, Chervenko disse ter sentido apenas alívio. Ela nem tentou procurar outro emprego.

Ela não entrou em contato com Korobkova. “Não quero alimentar esses demônios. Percebi que ela ficou orgulhosa por ter conseguido minha demissão. Esse era o objetivo”, disse ela. “Mas o que me chocou foi a resposta das autoridades. Afinal, quem é essa mulher? Ninguém sabe. E ainda assim, ela fez uma denúncia contra mim e a resposta foi a minha demissão.”

Motivos atrás das denúncias

Como na época soviética, algumas denúncias parecem mascarar uma rixa ou motivação material. A conhecida cientista política russa Ekaterina Schulmann, com mais de um milhão de seguidores no YouTube, residindo atualmente em Berlim, foi brutalmente denunciada por vizinhos ao prefeito de Moscou depois de deixar o país, em abril do ano passado, e ser declarada uma “agente estrangeira”.

Eles descreveram Schulmann e sua família como antigos elementos “subversivos”, “agindo de acordo com os interesses de seus mestres ocidentais, cujo objetivo é dividir nossa sociedade”. Mas, na realidade, o cerne da queixa era uma disputa imobiliária que se arrastava há 15 anos.

“Não é uma denúncia política, e sim um antigo conflito econômico, no qual um dos lados tenta se aproveitar do momento para obter vantagem, sem muito sucesso por enquanto”, disse Schulmann.

Há dezenas de denúncias nas escolas — professores denunciando crianças, crianças denunciando professores, diretores denunciando professores ou crianças —, prejudicando o trabalho de ensino e semeando a divisão, o medo e a desconfiança entre os corpos docente e discente, disse Daniil Ken, diretor da Aliança dos Professores, pequena associação independente de professores, que deixou a Rússia por causa da guerra.

“É muito difícil coexistir porque, como membros de qualquer grupo, em uma escola todo mundo sabe o que os outros pensam”, disse Ken.

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O uso de delatores por parte do estado e as muitas detenções aleatórias servem como poderosas ferramentas de controle social, disse Arkhipova.

“Podemos ser detidos a qualquer momento, mas nunca sabemos se seremos presos ou não. Eles vão atrás de vários professores em vários lugares, simplesmente para que todo professor entenda o recado: ‘Boca fechada’”, disse ela. “E o objetivo é deixar todos com medo.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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