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Forças radicais de esquerda e de direita lutam pela alma política da Europa

Embrutecimentos em discursos públicos e desprezo pelos partidos do mainstream fazem políticos de ambos os lados denunciarem o que classificam como posições extremas de seus oponentes, afirmam analistas

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Por Andrew Higgins

Preparado para celebrar a vitória mas no fim tendo de explicar por que seu partido ficou em terceiro lugar, o presidente da legenda de direita radical francesa Reagrupamento Nacional colocou a culpa do resultado da eleição antecipada do domingo na “caricatura” de extremista feita de seu grupo. Essa “desinformação”, afirmou Jordan Bardella, entregou a vitória para “formações da extrema esquerda”.

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O discurso aos desalentados apoiadores pronunciado pelo líder do partido nacionalista anteriormente conhecido como Frente Nacional na noite da eleição capturou uma tendência ampla na Europa: a intensa polarização política, na qual cada lado acusa o outro de “extremismo”.

A Europa está longe do que o historiador britânico Eric Hobsbawn classificou como a “Era dos Extremos” no século 20, quando o continente sucumbiu às ideologias gêmeas e extremistas do fascismo e do comunismo. Não há batalhas violentas nas ruas de Berlim, Paris ou Viena como antes, em certa ocasiões após a 2.ª Guerra, entre os campos rivais, nem campanhas terroristas em centros urbanos como as empreendidas nos anos 70 e 80 pelos pretensos revolucionários de esquerda da Fração do Exército Vermelho, na Alemanha, e da Ação Direta, na França.

Imagem mostra franceses de esquerda reunidos na Praça da República no dia 7 de julho durante a apuração do 2.º turno das eleições parlamentares. Coalizão de esquerda obteve maioria no parlamento e barrou a direita radical Foto: Christophe Ena/AP

Em vez disso, as batalhas atuais se restringem majoritariamente a insultos bradados em meio a uma divisão política cada vez mais ampla e venenosa — apesar da tentativa de assassinato do primeiro-ministro eslovaco, em maio, ter demonstrado que fantasmas do passado violento ainda pairam à espreita.

“Não subestime o estilo, que com frequência revela a verdadeira mensagem. A essência da democracia reside em seu estilo, suas regras de comportamento não escritas”, afirmou o filósofo esloveno Slavoj Zizek, que descreve a si mesmo como um “comunista moderadamente conservador”.

A divisão principal deixou de se definir por ideologia. Ambos os extremos do espectro político têm muito em comum em suas visões sobre economia e política externa, incluindo a desconfiança em relação à Otan e a simpatia à Rússia, assim como em seu desprezo comum pelas “elites” do establishment, percebidas como mestres de um centro político egoísta.

O tema mais polarizador é o nacionalismo oferecer salvação dos choques de um mundo crescentemente interconectado, como imigração e deslocalização econômica, ou ameaçar a liberdade e até mesmo a democracia. Nesse ambiente político, oponentes deixam de existir, dando lugar apenas a inimigos a serem insultados e classificados como extremistas.

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Zizek lamentou-se a respeito disso em relação tanto à esquerda quanto à direita quando disse, “Todos estão chamando de extremistas pessoas com que não concordam”.

“Nós atravessamos tempos tristes e difíceis. E esse rótulo é muito perigoso”, continuou ele. “Democracia significa estar aberto para as diferenças. Pressupõe que nós compartilhamos de um entendimento sobre valores básicos e certos costumes básicos.”

Essa polarização representar ou não uma ameaça é tema de debate. Nem a direita barulhenta nem a cepa antissistema da esquerda representada na França por Jean-Luc Mélenchon, cuja coalizão de partidos conquistou a maioria dos assentos no domingo, tem apoio para ser uma força verdadeiramente perturbadora onde as instituições são fortes. E ainda que tenha avançado mais na Europa em geral, a direita radical também tropeçou. Quanto mais os campos políticos fincam o pé, contudo, desdenhando das normas aceitas, mais o centro político se erode e mais a democracia é colocada em teste.

Imagem mostra apoiadores da França Insubmissa e líder do partido, Jean-Luc Melechon (no púlpito). Melechon tem desafio de montar governo com centro Foto: Thomas Padilla/AP

Wojciech Przybylski, presidente da Fundação Res Publica, um instituto de pesquisa em Varsóvia, afirmou que tem havido um embrutecimento dos discursos políticos e um desprezo crescente pelas forças do mainstream em ambos os extremos do espectro. O que, afirmou ele, o recorda da Polônia do entreguerras, quando a extrema esquerda e a extrema direita foram às ruas, às vezes violentamente, se opor ao governo central.

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Hoje, afirmou Przybylski, ambos os campos “estão unidos contra a globalização e alegam estar defendendo das elites o dito homem comum”.

O historiador francês Jacques Julliard descreveu esse pensamento como a “perigosa ideologia do homem comum”, uma filosofia política promovida por Guglielmo Giannini, um populista italiano do pós-guerra cuja máxima dizia “Abaixo a todos!”.

Os partidos nacionalistas da Europa, cuja popularidade foi às alturas ao longo da última década, obtiveram sucessos contraditórios nos anos recentes na tentativa de converter suas mensagens agitadoras e antielites em poder duradouro.

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O partido conservador polonês Lei e Justiça, promove teorias conspiratórias envolvendo a Alemanha e promete defender o que considera valores cristãos, perdeu o poder numa eleição em outubro. Mas apenas um mês depois, nos Países Baixos, Geert Wilders, um provocador com histórico de antipatia a imigrantes e ao Islã, obteve a maioria dos votos numa eleição-geral.

Nas eleições de junho para o Parlamento Europeu, o partido de direita Alternativa para a Alemanha obteve um número recorde de votos, superando individualmente os três partidos que compõem a coalizão de governo do chanceler Olaf Scholz.

A eleição francesa no domingo foi recebida com alívio pelos políticos europeus do mainstream, que se preocupavam com a possibilidade de uma vitória do Reagrupamento Nacional fortalecer os até aqui solitários chamados do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, pelo fim da ajuda militar à Ucrânia.

Talvez o exemplo mais vívido da polarização na Europa seja a Eslováquia, onde o primeiro-ministro, Robert Fico, um populista metamórfico que se iniciou na política pela esquerda antes de adotar a posição nacionalista, retornou ao poder em setembro após uma vitória eleitoral por baixa margem. Em maio, ele sobreviveu por pouco a uma tentativa de assassinato praticada por um atirador classificado inicialmente pelas autoridades como um “lobo solitário”, mas posteriormente descrito por Fico como um “mensageiro do mal e do ódio político” a mando de seus oponentes de esquerda.

A eleição francesa no domingo foi recebida com alívio pelos políticos europeus do mainstream, que se preocupavam com a possibilidade de uma vitória do Reagrupamento Nacional fortalecer os até aqui solitários chamados do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, pelo fim da ajuda militar à Ucrânia.

O primeiro-ministro da Polônia, Donald Tusk, respondeu ao resultado nas redes sociais: “Em Paris entusiasmo, em Moscou decepção, em Kiev alívio. O suficiente para ser feliz em Varsóvia”.

Os partidos nacionalistas têm tentado, em vários níveis, se distanciar de seus passados obscuros. O partido da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, tem raízes nos destroços do experimento fascista na Itália sob Mussolini. O Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, abrigou em suas primeiras encarnações negacionistas do Holocausto e reacionários veteranos das guerras coloniais francesas.

Mais recentemente, esses nacionalistas têm repudiado conexões com o extremismo e buscado, na maioria das ocasiões de forma bem-sucedida, particularmente no caso de Meloni, apresentar a si mesmos como políticos modernos e pragmáticos. Seus apoiadores têm sido filmados expressando visões abertamente racistas e xenofóbicas, mas suas falas são rejeitadas fortemente pelos líderes de seus partidos.

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Imagem mostra primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, durante reunião da Otan em Washington. Meloni tenta afastar imagem fascista de seu partido, o Irmãos da Itália Foto: Samuel Corum/AFP

Antes da 2.ª Guerra, a hiperinflação e o desemprego em massa alimentaram a polarização política — um em cada três alemães ficou desempregado. Em comparação, atualmente os europeus estão de muitas maneiras admiravelmente mais confortáveis e bem cuidados.

Seus sistemas de bem-estar social vêm minguando, mas ainda fornecem assistência de saúde e outros serviços numa medida muito maior do que os Estados Unidos e outros países. O crescimento econômico tem sido retomado novamente após vários anos de estagnação.

A confiança na democracia, contudo, tem declinado constantemente nos anos recentes na Europa e em outras regiões economicamente avançadas.

Uma pesquisa realizada este ano pelo Pew Research Institute constatou que, desde 2021, habitantes de democracias de alta renda, incluindo a França, têm expressado cada vez mais frustração a respeito das maneiras que os sistemas funcionam em seus países.

Eleições com frequência contrariam o establishment, seja qual for sua forma.

No Reino Unido, o desejo por mudança garantiu na semana passada ao Partido Trabalhista, apartado do poder havia 14 anos, uma vitória esmagadora contra um dividido e desacreditado Partido Conservador. Mas a vitória trabalhista veio acompanhada de uma grande demonstração de força eleitoral do partido Reform, de Nigel Farage, uma força que deu impulso à saída do Reino Unido da União Europeia.

O triunfo da esquerda francesa, no domingo, foi em grande medida resultado do que Bardella, o líder do Reagrupamento Nacional, classifica como uma “aliança antinatural”, entre Macron e a esquerda. E nenhum partido conquistou maioria, o número de assentos ficou bem proximamente dividido.

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Poucos analistas consideram os resultados das eleições britânica e francesa evidência de um ressurgimento da esquerda. Longe do poder por anos, os partidos de esquerda na maioria dos países abandonaram compromissos do passado com políticas econômica socialistas, como nacionalização dos bancos e da indústria, e diferem pouco da centro-direita.

“A polarização é clara, mas não vejo nenhum sinal da esquerda ascendendo novamente”, afirmou Przybylski, o pesquisador de Varsóvia. O Reagrupamento Nacional não correspondeu às expectativas, mas muitos outros partidos europeus de esquerda radical, acrescentou ele, “desempenham cada vez melhor a cada eleição. Eles estão longe de dirigir o espetáculo, mas têm ganhado cada vez mais votos”.

As lutas políticas na Europa, majoritariamente desprovidas de debate sobre políticas concretas e dominadas por acrobacias chamativas, são em muitos lugares consideradas “uma piada e um circo”, afirmou Zizek, o filósofo.

Um exemplo extremo foi a vitória na eleição para o Parlamento Europeu, no mês passado, de um cipriota fanfarrão, de 24 anos, sem nenhuma experiência nem proposta política. Ele se promoveu como um “fazedor de erros profissional” e conquistou um assento após uma campanha que o exibiu passando uma semana dentro de um caixão. “Seu argumento foi que a política é uma farsa”, afirmou Zizek. “Mas a desconfiança global em relação à política é uma tragédia, especialmente quando atinge os jovens.” /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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