Ferraris, Cartier, Louis Vuitton: Assad cultivava imagem modesta, mas bens provam vida na opulência

Ditador da Síria cultivava imagem de homem modesto, mas bens e roupas em suas mansões provam o luxo em que ele e a família viviam

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Por Jarrett Ley (The Washington Post) e Sammy Westfall (Washington Post)

Apesar de todo seu poder autocrático, Bashar Assad cultivava uma imagem pública relativamente modesta.

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Ele não ostentava nada como os mega-iates e a rede de palácios barrocos e rococó de mármore de Saddam Hussein, no Iraque, ou o glamour espalhafatoso e o jato particular personalizado da era espacial com iluminação no estilo de uma casa noturna e poltronas prateadas de Muamar Kadafi, na Líbia.

Como ditador da Síria por quase 25 anos, Assad e seus parentes próximos “viviam, de certa forma, uma vida normal diante das pessoas”, disse Ammar Mahayni, um empresário aposentado que por décadas viveu a um quarteirão da residência da família Assad em Damasco. “Seus filhos frequentavam escolas normais” ao lado de moradores comuns, embora abastados, de Damasco, disse ele, em vez de frequentar academias de elite ou internatos no exterior. A família dirigia carros comuns e usava “jeans e camiseta” simples para passear. “Minha irmã costumava ver a filha dele na piscina de um clube, sentada com as amigas.”

Mas moderação não foi o que multidões de sírios jubilosos encontraram quando invadiram as propriedades da família Assad recentemente vazias após sua deposição esta semana, maravilhando-se com seu conteúdo — e levando o que pudessem, até mesmo lustres, de acordo com fotos tiradas no local e filmagens amplamente divulgadas online.

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Rebelde sírio segura um AK-47 e faz o sinal de vitória enquanto posa para uma foto em um salão do palácio presidencial de Bashar Assad, na Síria, em Damasco Foto: Hussein Malla/AP
Um combatente rebelde sírio examina objetos encontrados em uma sala cheia de obras de arte e presentes concedidos ao ex-presidente sírio Bashar Assad, no abandonado Palácio Presidencial em Damasco, na Síria Foto: Nicole Tung/The New York Times

Em um vídeo postado nas redes sociais, uma multidão corre para cima e para baixo na escada de uma das casas de Assad, incluindo uma pessoa carregando uma grande sacola de compras Louis Vuitton. Outro vídeo na mesma residência mostra uma bolsa de roupas Dior. O Washington Post confirmou a localização dos vídeos.

Saqueadores, junto com os curiosos, deixaram em seu rastro um monte de caixas de artigos de grife, incluindo da Hermès e Cartier, em cima de um redemoinho de documentos soltos, móveis quebrados e retratos derrubados.

O vídeo postado no Instagram mostra uma garagem ampla cheia de uma variedade de carros de luxo no complexo do palácio presidencial de Assad. “Guarde uma Lamborghini para mim”, grita um homem enquanto dirige. O Post confirmou que o vídeo foi filmado na mesma estrutura que a CNN relatou ser parte do complexo do palácio presidencial, onde Aston Martins, Cadillacs, Lamborghinis e Ferraris estavam alojados, mas não está claro quando exatamente o vídeo foi feito.

“Para nós, foi uma surpresa ver a garagem cheia de carros, porque ele nunca dirigiu carros luxuosos, nem mesmo seu filho”, disse Mahayni. “Acredite ou não, as pessoas ao redor dele eram mais exibidas do que ele.”

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A família Assad administrou por muito tempo um complexo sistema de clientelismo, que incluía empresas fantasma e de fachada. “Essas redes penetram em todos os setores da economia síria”, disse o Departamento de Estado em um relatório de 2022 ao Congresso documentando a riqueza da família Assad. Citando relatórios de organizações não governamentais e da mídia, o departamento disse que essa rede “serve como uma ferramenta para o regime acessar recursos financeiros por meio de estruturas corporativas aparentemente legítimas e entidades sem fins lucrativos”. As empresas da rede conseguiram “lavar dinheiro de atividades ilícitas e canalizar fundos para o regime”.

A vida de luxo oculta de Assad contrasta fortemente com a vida no resto do país.

O Departamento de Estado estimou em 2022 o patrimônio líquido da família Assad entre US$ 1 bilhão e US$ 2 bilhões. O departamento observou que a imprecisão da estimativa refletia a disseminação e a ocultação da riqueza da família em vários portfólios imobiliários, corporações, contas e paraísos fiscais, sob nomes diferentes ou titularidade obscura.

Um retrato do deposto presidente Bashar Assad no chão enquanto um combatente rebelde examina um escritório no palácio presidencial abandonado em Damasco, na Síria Foto: Nicole Tung/The New York Times
Rebelde sírio desfralda uma bandeira iraniana enquanto caminha pelo palácio presidencial abandonado em Damasco, na Síria, após fuga do ditador Bashar Assad  Foto: Nicole Tung/The New York Times

Comparemos isso com o PIB de todo o país, que em 2021 era de US$ 9 bilhões — uma queda vertiginosa em relação aos números pré-guerra, muito maiores. Cerca de 3 em cada 4 pessoas precisam de assistência humanitária, e mais da metade luta para encontrar comida suficiente, de acordo com as Nações Unidas.

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Muitas queixas sobre o governo de Assad se concentravam na corrupção, pobreza e autocracia. “Se alguém me perguntasse: ‘Como descrever Bashar Assad’, eu nunca falaria no estilo de vida dele, porque isso não importa”, disse Mahayni. “O que importa é a polícia secreta que ele implantou, os diferentes departamentos de segurança que ele criou.” Como presidente, Assad reprimiu as revoltas da era da Primavera Árabe e travou uma guerra civil que matou centenas de milhares de pessoas.

Bashar e sua mulher, Asma Assad, exerceram grande influência na riqueza da Síria por muito tempo.

“Bashar Assad não é conhecido por ostentar seu estilo de vida luxuoso. … Ele é conhecido, no entanto, por extorquir a comunidade empresarial, e conhecido por ser excepcionalmente corrupto”, disse Karam Shaar, economista político e membro sênior não residente do New Lines Institute.

“Pode-se argumentar que a única constante no governo de Bashar Assad foi a corrupção”, disse Shaar.

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Assad utilizou o capitalismo de compadrio, permitindo que amigos e parentes se beneficiassem da abertura da economia do país. Esses lucros se traduziram em dinheiro para ele, pessoalmente, para aqueles enredados em sua rede de clientelismo, e para financiar o regime e a guerra — mas não se traduziram em um aumento da receita tributária para o estado, acrescentou Shaar.

Asma Assad teve grande influência, como em um comitê destinado a administrar a crise econômica da Síria, incluindo decisões envolvendo subsídios para alimentos e combustíveis, disse o Departamento de Estado.

Um perfil efusivo da primeira-dama na Vogue de 2011 intitulado “Uma Rosa no Deserto” — que mais tarde foi retirado e praticamente apagado da internet — anunciava a suposta natureza realista dos Assads, uma narrativa que a família enfatizava mesmo naquela época.

“Seu estilo pessoal não é o do deslumbramento com a alta costura e o brilho do poder do Oriente Médio, mas o de uma falta deliberada de adornos”, diz o artigo a respeito de Asma, referindo-se a ela como “uma combinação rara: uma beleza magra e longilínea com uma mente analítica treinada, que se veste com astúcia e eufemismo”.

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A publicação do artigo ocorreu pouco antes da repressão mortal de Assad às manifestações pró-democracia, quando o status de Assad como um autoritário violento foi consolidado. A repórter do artigo se distanciou do artigo, e relatou-se que o governo sírio pagou uma empresa de lobby internacional para ajudar a organizar a entrevista. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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