Deputados franceses da esquerda e da extrema direita derrubaram, nesta quarta-feira, 4, o governo do primeiro-ministro conservador, Michel Barnier, após aprovarem uma moção de censura, anunciou a presidente da Assembleia Nacional (Câmara baixa), Yaël Braun-Pivet. A medida lança a França em um novo ciclo de turbulência política, sem caminhos claros para um novo orçamento e tornando o cenário para o presidente Emmanuel Macron ainda mais instável.
Por 331 votos a favor, acima da maioria absoluta de 288, a Câmara pôs fim aos menos de cem dias de governo de Barnier, rejeitando, ainda, seu orçamento para 2025. O primeiro-ministro apresentará sua renúncia ao chefe de Estado nesta quinta-feira, no Palácio do Eliseu, às 10h locais (6h em Brasília).
Barnier invocou na última segunda-feira um mecanismo constitucional raramente usado para aprovar o controverso orçamento de 2025 sem aprovação parlamentar, argumentando que era essencial manter a “estabilidade” em meio a profundas divisões políticas. A medida imediatamente provocou uma forte reação, com o partido de direita radical Reunião Nacional (RN) de Marine Le Pen e a esquerdista Nova Frente Popular apresentando moções de censura em resposta.
O uso da ferramenta constitucional, chamada Artigo 49.3, permite que o governo aprove a legislação sem uma votação parlamentar, mas o deixa exposto a moções.
A proposta de orçamento de Barnier agora é nula e sem efeito. No que equivaleu ao seu discurso de despedida à câmara na quarta-feira, ele disse que o voto de desconfiança, como também é chamada a moção de censura, “tornaria tudo mais difícil e mais sério”, observando que, sem um novo orçamento, mais famílias estariam sujeitas a impostos e outras veriam seus impostos aumentarem.
Barnier provavelmente permanecerá como interino até que Macron nomeie um novo primeiro-ministro, mas a França enfrenta semanas de instabilidade, assim como aconteceu após a votação parlamentar. Entre os nomes que circulam para suceder Barnier, que é um antigo negociador europeu do Brexit, estão o atual ministro da Defesa francês, Sébastien Lecornu, e o aliado centrista de Macron e antigo ministro, François Bayrou.
A aprovação da moção de censura torna o governo de Barnier o mais curto da Quinta República francesa, que começou em 1958, e o segundo a cair, depois da administração de Georges Pompidou em 1962, quando Charles de Gaulle era presidente.
Macron na mira
O presidente Emmanuel Macron insistiu que cumprirá o resto de seu mandato até 2027. No entanto, ele precisará nomear um novo primeiro-ministro pela segunda vez depois que as eleições legislativas de julho levaram a um parlamento profundamente dividido.
Embora a moção de censura não afete Macron, ela o enfraquece ainda mais, especialmente após ele ter decidido nomear Barnier como primeiro-ministro em setembro, em nome da “estabilidade”. Agora, o cenário de incerteza ameaça aprofundar os problemas econômicos da França e reverberar por toda a zona do euro.
Sem pedir diretamente a sua demissão, Le Pen, apelou a Macron, com quem concorreu à presidência em 2017 e 2022, a pensar se pode continuar no cargo . “Cabe à sua consciência decidir se pode sacrificar a ação pública e o destino da França ao seu orgulho. Cabe à sua razão decidir se pode ignorar as evidências do repúdio popular massivo”, sublinhou.
“Para sair do beco sem saída no qual o presidente colocou o país, resta uma solução: pedimos agora a Emmanuel Macron que saia”, declarou a deputada Mathilde Panot, do partido da esquerda radical A França Insubmissa (LFI).
Na terça-feira, o presidente, em visita à Arábia Saudita, descreveu uma possível renúncia antes de 2027, quando termina o seu segundo mandato, como “ficção política”. O presidente de 46 anos não pode mais concorrer à reeleição.
Analistas e pessoas próximas ao presidente francês dizem que é improvável que ele deixe o cargo antes do fim de seu mandato. Mas sua posição é fraca, severamente prejudicada por sua decisão em junho passado de dissolver o Parlamento e convocar uma eleição antecipada. Ele convocou a votação em parte para demonstrar que o apoio do RN era limitado — um cálculo que claramente saiu pela culatra.
Macron teve sucesso em reduzir o desemprego francês cronicamente alto e impulsionou o crescimento francês, moderadamente. Mas ele também foi impopular durante grande parte de sua presidência: muitos franceses o consideram indiferente e arrogante.
Dúvidas sobre novo orçamento
A votação da moção acontece em um momento difícil para a França, que está lutando com uma dívida alta e um déficit crescente, desafios que foram agravados por dois anos de crescimento estagnado. O forte apoio da França à Ucrânia enfrenta um desafio com a eleição de Donald Trump pelos Estados Unidos, e sua parceira na liderança da Europa, a Alemanha, está mais fraca política e economicamente do que esteve em anos.
Macron recorreu a Barnier em setembro para navegar no impasse e lidar com o crescente déficit da França. No entanto, o orçamento de austeridade proposto por Barnier — cortando 40 bilhões de euros (US$ 42 bilhões) em gastos e aumentando impostos em 20 bilhões de euros — só aprofundou as divisões, inflamando as tensões na câmara baixa e desencadeando esse dramático confronto político.
O impasse político perturbou os mercados financeiros, com os custos de empréstimos aumentando acentuadamente em meio a temores de instabilidade prolongada. Barnier alertou sobre “turbulência séria” se o orçamento não fosse aprovado, mas os críticos rejeitaram suas observações como alarmistas.
O clima social também é tenso. Nesta quinta-feira, 5, está prevista uma greve de funcionários públicos, enquanto prossegue a mobilização dos agricultores, especialmente contra um acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul.
Vitória para Le Pen
A queda de Barnier e de seu gabinete foi uma vitória para Le Pen, que tentou durante anos projetar sua crescente influência política e trazer seu partido para o mainstream. Ela aparece com força nas pesquisas para a presidência, mas a justiça pode frustrar seu sonho se, em 31 de março, decidir inabilitá-la por cinco anos, como solicitou o Ministério Público em um caso de malversação de fundos da União Europeia.
Foi ela quem insistiu em buscar a votação, garantindo a queda do primeiro-ministro. E antes da votação, Le Pen recusou as concessões que Barnier lhe ofereceu no orçamento. Primeiro, ele descartou os impostos de eletricidade propostos. Depois, prometeu não cortar os reembolsos de medicamentos. Ela havia exigido ambas as mudanças.
Mas não foi o suficiente. O orçamento, com seus US$ 60 bilhões em cortes de gastos e aumentos de impostos, permaneceu “profundamente injusto para os franceses”, ela disse na segunda-feira.
Na quarta-feira, antes da votação, ela atacou os críticos que a acusaram de provocar instabilidade. “Para aqueles que me acusam de escolher a política do caos com este voto de desconfiança”, ela disse, “eu digo que caos significaria não rejeitar este orçamento, este governo, este colapso”.
Ela quase reconheceu que seu verdadeiro alvo não é o premiê, mas sim Macron, que a derrotou duas vezes em eleições presidenciais e não tem permissão para concorrer novamente. Alguns em seu partido e na extrema esquerda vêm pedindo que ele renuncie há dias.
Le Pen disse aos jornalistas do francês Le Monde na semana passada que, confrontado com instabilidade governamental suficiente, o Sr. Macron “não terá muita escolha” a não ser renunciar./AFP, NYT e AP.
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