Em 7 de dezembro, 50 chefes de Estado e de governo tomarão assento para celebrar a reabertura da Notre Dame, a catedral gótica de Paris, do século 12, destruída por um incêndio cinco anos atrás mas já restaurada numa velocidade impressionante, com habilidade e carinho. Donald Trump estará lá (Joe Biden, o segundo presidente católico dos Estados Unidos, infelizmente, não) para testemunhar o melhor da França. O país realizou, dentro do prazo e do orçamento previsto, uma obra artesanal e renovadora que certamente nenhuma outra nação conseguiria.
Mas essa mesma França formidável também está mergulhada numa profunda crise política. O governo foi destituído pelo Parlamento em 4 de dezembro. Seu primeiro-ministro, Michel Barnier, tentou impor seu orçamento para 2025 dois dias antes, mas se deparou com a realidade brutal de um governo sem maioria e se tornou o primeiro-ministro de mandato mais curto na Quinta República. Em um imundo pacto político, Marine Le Pen, a líder do partido de extrema direita Reagrupamento Nacional (RN), juntou forças com uma aliança de esquerda dominada pelo ex-trotskista Jean-Luc Mélenchon para arrebentar com os centristas franceses.
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A situação da França contém lições. Os partidos tradicionais de centro-esquerda e centro-direita se fragmentaram. Em sua recente eleição presidencial, metade do eleitorado optou por extremistas no primeiro turno. Consecutivos presidentes não foram capazes de controlar o orçamento. Uma população em envelhecimento e crescentes ameaças à segurança nacional significam que o fardo fiscal crescerá. O crasso e obstrutivo discurso político do país só fará aumentar a popularidade dos extremos — e, portanto, dificulta soluções. De qualquer modo, grande parte da Europa está presa na mesma armadilha desventurosa.
O resultado, pelo menos na França, é o impasse. Sem nenhum partido nem aliança próximo à maioria na Assembleia Nacional, o país se vê neste momento diante da perspectiva de uma série de governos minoritários de vida curta, que terão dificuldade em realizar qualquer coisa. Em razão de o presidente Emmanuel Macron ter convocado sua intempestiva eleição antecipada, a França não pode convocar uma nova eleição até julho do próximo ano — quando também não haverá nenhuma garantia de que algum partido ou coalizão conquiste uma maioria. Embora o fechamento do governo deva pelo menos ser evitado, porque o orçamento deste ano pode provavelmente ser estendido para o seguinte, a situação inviabiliza qualquer reforma.
O problema subjacente é que a maioria dos eleitores franceses não está disposta a encarar a realidade econômica. Da mesma forma que outros países europeus envelhecidos que enfrentam competição dos EUA e da Ásia, o gasto da França é insustentável. Este ano o déficit do orçamento está previsto para exceder 6% do PIB. Barnier, sob ordem de Macron, estava tentando consertar isso. Seu pacote de € 40 bilhões (US$ 42 bilhões) em cortes de gastos e € 20 bilhões em aumentos de impostos teria diminuído o lapso, mas apenas em cerca de 1 ponto porcentual. Até isso foi demais para as irresponsáveis direita e esquerda, que preferem buscar o poder espalhando descontentamento popular.
É difícil vislumbrar uma maneira de resolver a questão. Enquanto não redescobrirem os méritos da frugalidade, os eleitores continuarão votando em fantasias propagadas pelos extremos. Orçamentos sensatos, ou seja, dolorosos, não serão aprovados. Crescimento econômico facilitaria essa operação, mas a França cresce mero 1% ao ano — nada mal para a zona do euro, mas nem de perto suficiente para fazer a diferença no problema orçamentário. O estoque da dívida da França situa-se em alarmantes 110% do PIB. Os norte-europeus costumavam caçoar dos porcos — Portugal, Itália, Grécia e Espanha — por seus modos esbanjadores. A França virou hoje um porco-espinho, enquanto os outros porcos em grande medida se reformaram.
Até aqui, os mercados financeiros permaneceram calmos. Os rendimentos da dívida soberana da França elevaram-se um pouco, mas o governo ainda pode tomar emprestado por menos de 1 ponto porcentual a mais do que a Alemanha. Compare com as margens de mais de 10 pontos porcentuais que a Grécia enfrentou durante a crise na zona do euro. A declaração de 2012 de Mario Draghi, de que o Banco Central Europeu seguia pronto para fazer “o que for necessário” para defender o euro vigora até hoje.
Mas a promessa de Draghi é meramente uma protelação para os problemas crônicos da França e da Europa, não uma solução. As economias europeias não crescem rapidamente o suficiente para financiar as demandas que lhes recaem. A projeção de crescimento da zona do euro figura em apenas 0,8% em 2024. Trump ameaça impor tarifas de 10% ou talvez 20% sobre todas as importações dos EUA e muito maiores para quem ele desgosta, como a China, o que pode ocasionar um ciclo de práticas de dumping dentro da Europa.
Por todo o continente, demandas sobre os gastos dos governos aumentam. A defesa é um bom exemplo. A França, como a Alemanha, acaba de apenas atender a meta de gasto estabelecida em 2014, de 2% do PIB, é isso é simplesmente insuficiente num mundo em que Vladimir Putin ameaça seus vizinhos. Ao mesmo tempo, Trump reclama corretamente de que os membros europeus da Otan parasitam o orçamento de defesa muito maior dos EUA. Seja pelas exigências de Trump ou por sua ameaça de retirar os EUA da Otan, os países europeus precisarão encontrar muito mais dinheiro para gastar em segurança.
Desafortunadamente, os políticos que governam a Europa são incapazes de gerar um consenso sobre como pagar por demandas existentes e futuras. Por toda a Europa, a fragmentação política tem ocasionado governos instáveis, seja por criar coalizões conflituosas, como na Alemanha ou nos Países Baixos, ou governos minoritários, como na França ou na Espanha. Sua fraqueza infecta a União Europeia como um todo porque, sem a liderança da França e da Alemanha, nada ambicioso pode ocorrer em Bruxelas.
A ameaça adiante
No passado, o descontentamento dos eleitores teria ocasionado uma mudança de governo salutar. Contudo, a França também representa um alerta agudo sobre o ponto ao qual o descontentamento com a política leva hoje em dia. Quando os eleitores se cansam de coalizões centristas ou governos minoritários, as únicas opções que lhes restam são os extremos da política. Há uma possibilidade real de um governo liderado pelo RN assumir na França no próximo ano — ou até de uma presidência de Le Pen em 2027, quando a próxima eleição terá de ser convocada. Se Macron estarrecer a França decidindo que sua presidência ficou tão insuportável ao ponto de ele renunciar, isso pode ocorrer ainda antes. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO