Casal de idosos europeus vive amor na fronteira fechada pela crise

Todos os dias, Karsten Tüchsen Hansen,89, e Inga Rasmussen, 85, se encontram para bater papo, dar risada e tomar uns tragos – ainda mantendo o mínimo de distanciamento social

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Por Redação

FRONTEIRA DE MØLLEHUSVEJ - Ela vem dirigindo pelo lado dinamarquês, no seu Toyota Yaris. Ele vem pedalando pelo lado alemão, na sua bicicleta elétrica.

Ela traz o café e a mesa. Ele, as cadeiras e o schnapps.

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Então eles se sentam, um de cada lado da fronteira, a um ou dois metros de distância.

E foi assim que amantes octogenários mantiveram acesa a chama de seu romance, apesar do fechamento da fronteira que fica entre a casa dele, no norte da Alemanha, e a dela, no sul da Dinamarca.

Todos os dias desde que a polícia fechou a fronteira para conter o vírus, Karsten Tüchsen Hansen, agricultor aposentado de 89 anos, e Inga Rasmussen, uma ex-cozinheira de 85 anos, se encontram na fronteira de Møllehusvej para bater papo, dar risada e tomar uns tragos – ainda mantendo o mínimo de distanciamento social.

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“Estamos aqui por causa do amor”, disse Tüchsen Hansen quando os encontrei na semana passada. “O amor é a melhor coisa do mundo”.

Todos os dias, Karsten Tüchsen Hansen,89, e Inga Rasmussen, 85, se encontram para bater papo, dar risada e tomar uns tragos – ainda mantendo o mínimo de distanciamento social Foto: Emile Ducke/NYT

E, logo em seguida, ele encheu mais um copinho de schnapps.

O improvável romance começou na Dinamarca dois verões atrás, de uma maneira ligeiramente menos sentimental.

Levando um enorme buquê nas mãos, Tüchsen Hansen estava a caminho da casa de uma outra viúva dinamarquesa que ele conhecia havia décadas, onde apareceria sem aviso prévio. Mas, antes de chegar à porta dela, conheceu Rasmussen na fila de uma barraca de morangos na esquina.

Um tanto aturdido, ele desistiu de visitar a primeira mulher. Em vez disso, Tüchsen Hansen, num impulso, ofereceu as flores a Rasmussen. Depois a convidou para jantar na Alemanha e os dois logo se aproximaram, para surpresa das três filhas de Rasmussen.

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“Jamais se casem com um alemão”, Rasmussen costumava adverti-las quando eram adolescentes – não por xenofobia, mas por querer que elas continuassem morando perto de casa.

“Agora elas me dizem: mamãe, o que você está fazendo?”, contou Rasmussen.

O encontro também surpreendeu por razões mais pungentes. Os dois tinham ficado viúvos nos últimos anos, depois de mais de seis décadas de casamento, e pensavam que seus dias de companheirismo haviam terminado.

“Nunca sonhei que isto poderia acontecer”, disse Rasmussen.

Mas, contra todas as expectativas, Rasmussen começou a visitar a Tüchsen Hansen todos os dias, graças às regulamentações europeias que durante anos permitiram a livre circulação entre países como a Dinamarca e a Alemanha.

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O casal costumava jantar junto todos os dias, conversando numa mistura de alemão e dinamarquês. Aí Rasmussen geralmente passava a noite antes de voltar para sua casa na Dinamarca por algumas horas na manhã seguinte.

Essa rotina feliz foi interrompida abruptamente em 13 de março, quando o governo dinamarquês anunciou que fecharia as fronteiras no dia seguinte, exceto para as pessoas que viajam a trabalho. Com medo de ser trancada para fora de sua terra natal, Rasmussen correu de volta para casa na Dinamarca, a quinze minutos de carro.

Nenhum dos dois sabia quando voltariam a dar as mãos.

Mas aí eles traçaram um plano.

Numa estrada tranquila que serpenteia os campos entre suas casas, a poucas centenas de metros de onde Tüchsen Hansen nasceu, a polícia bloqueou a passagem com uma frágil cerca de plástico. O bloqueio fica a meio caminho entre as duas casas, então Rasmussen e Tüchsen Hansen se encontram lá para fazer piquenique todas as tardes desde o fechamento do país, por volta das três da tarde.

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Em dócil respeito aos aconselhamentos médicos, tentam evitar o contato físico.

“O pior é que não podemos nos abraçar”, disse Tüchsen Hansen. “Não podemos nos beijar. Não podemos fazer amor”.

Mas eles encontraram outras maneiras de demonstrar seu afeto.

Todos os dias, Tüchsen Hansen traz um presente para Rasmussen. No dia em que os visitei, foi uma garrafa de merlot (embora Rasmussen só beba café até que seu Toyota esteja estacionado são e salvo na garagem de casa).

Em troca, Rasmussen traz biscoitos, bolo e, às vezes, até um almoço.

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“Quando há respeito e aceitação, o sexo não é tão importante”, declarou Tüchsen Hansen.

A polícia dinamarquesa já ameaçou multá-los caso passem da fronteira, disse Tüchsen Hansen.

Mas, encorajado pela presença de um jornalista, Tüchsen Hansen passou pela cerca de plástico para mostrar um velho marco de fronteira escondido entre os arbustos.

Foi outro momento pungente.

No início do século 20, a fronteira ficava muito mais ao norte. Mas, num plebiscito em 14 de março de 1920, os moradores do que então era o extremo norte da Alemanha votaram para se juntar à Dinamarca. Essa decisão mudou a fronteira para o sul, para esta região de campos e lavouras, demarcada pela velha rocha entre os arbustos.

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Em 2001, a fronteira desapareceu uma vez mais quando a Dinamarca entrou para a zona de livre circulação dentro da União Europeia. Mas, então, em 14 de março de 2020, exatamente 100 anos depois do plebiscito, as barreiras fronteiriças se ergueram mais uma vez.

“Meus pais viram quando a pedra foi instalada”, disse Tüchsen Hansen. “Agora vejo essas barreiras subindo de novo”.

O prefeito dinamarquês de uma cidade vizinha, Henrik Frandsen, foi um dos primeiros a notar a nova rotina do casal.

Pedalando ao longo da fronteira dez dias depois do fechamento, Frandsen começou a conversar com eles. Comovido com a história, horas depois postou uma foto do casal no Facebook.

Em poucos dias, eles viraram celebridades locais, objeto de várias reportagens em jornais e estações de rádio da região.

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“Acho que isso traz uma esperança para as pessoas, um pouco de luz na escuridão”, disse Frandsen, que voltou a pedalar para me apresentar ao casal. “Você vê que esses idosos conseguiram encontrar uma saída”.

O resultado foi que o lugar onde o casal faz seus piqueniques se tornou destino de uma pequena peregrinação. Jornalistas e moradores de ambos os lados da fronteira os visitam quase todas as tardes. Quando fui vê-los, um repórter alemão já estava lá e um casal dinamarquês chegou logo depois, encantado por descobrir que a história era verdadeira.

Mas o casal também recebeu uma visita com sentimentos um pouco mais confusos.

Era Kirsten Hansen, a viúva a quem Tüchsen Hansen planejara dar o buquê, dois verões atrás.

Ela não sabia das intenções amorosas de Tüchsen Hansen: ele não falou que pretendia visitá-la e, de qualquer forma, nunca chegou a bater à sua porta. Ela só ficou sabendo sobre o quase acontecido com a recente enxurrada de reportagens.

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“Ei!”, ela disse, dando risada. “Aquelas flores eram para mim!” / Tradução de Renato Prelorentzou.

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