THE NEW YORK TIMES - Todas as manhãs, a avó de Olga Boichak desperta em sua casa no oeste da Ucrânia, liga a TV e descobre que seu país está em guerra.
Apavorada e assombrada por memórias de sua infância dos bombardeios da 2.ª Guerra, ela entra em pânico e quer fugir, afirmou sua neta. O marido, casado com ela há seis décadas, esconde as chaves da residência e a tranquiliza, dizendo que tudo vai ficar bem e que sua casa é o lugar mais seguro para eles.
Não tarda muito para a guerra, o medo e o reconforto se dissiparem em meio ao nevoeiro da demência — como todas as suas memórias dos anos recentes. O esquecimento dura até a manhã seguinte, ou até soar a próxima sirene de alerta para ataque aéreo, quando a realidade da invasão que já consome a Ucrânia há mais de 50 dias a encontra novamente.
“Ela passa todos os dias pelo trauma de redescobrir que a guerra começou — e toda vez tenta fugir”, afirmou Boichak, que vive em Sydney e conversa semanalmente, por chamada de vídeo, com os avós e a tia, uma trabalhadora da área da saúde que cuida deles. Boichak preferiu não informar os nomes dos avós e sua localização exata no relativamente seguro oeste ucraniano por preocupações com a segurança dos idosos.
“É realmente de partir o coração”, afirmou ela.
Em quase dois meses de guerra, muitos ucranianos jovens e fisicamente capazes deixaram o país ou pegaram em armas. Muitos idosos, enfermos e pessoas com deficiência ficaram para trás, sem poder de fugir ou indispostos a deixar os locais adaptados para suas necessidades.
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A demência, em particular, é uma deficiência “oculta”, que pode resultar em pacientes deixados sem assistência humanitária ou proteção de agentes de saúde, de acordo com a Alzheimer’s Disease International, uma organização guarda-chuva que representa instituições de todo o mundo. Mesmo antes do início da invasão russa, em fevereiro, a guerra nas regiões separatistas do leste da Ucrânia afetava desproporcionalmente os idosos ucranianos.
Para os avós de Boichak que têm quase 90 anos, memórias da infância, de serem forçados a fugir em meio a bombardeios soviéticos, os tornaram ainda mais apegados à sua casa, e o avô dela está determinado a ficar onde está, apesar dos apelos dos filhos e dos netos para que eles deixem o local, afirmou ela.
Seu avô, um médico aposentado, é extremamente aferrado à intenção de passar seus últimos anos no lar que sua família passou décadas reconstruindo e onde a avó dela, uma arquiteta aposentada, cuidava da horta havia anos, cultivando tomates, abobrinhas e cenouras, afirmou Boichak.
No 41.º dia da guerra, Boichak, doutora em sociologia e palestrante que tem pesquisado o papel das redes sociais na formação de narrativas a respeito de guerras e violência militar desde a invasão russa à Crimeia, em 2014, postou no Twitter a história de seus avós. Ela descreveu a maneira como sua avó foi pega por um “ciclo infinito”. Para sua surpresa, seu tuíte percorreu o mundo e recebeu 44 mil “curtidas”.
Entre as pessoas comovidas com sua história estava Liza Vovchenko, que imediatamente pensou em sua avó em uma cidade ocupada pelos russos na região de Kherson, sul da Ucrânia.
Por semanas após os soldados russos tomarem o controle, sua avó de 82 anos, Rita, continuou tentando manter a rotina diária de caminhadas ao mercado no centro da cidade, mesmo que as ruas não fossem mais seguras. O mercado tinha parado de funcionar há muito tempo, conforme os alimentos escassearam e as pessoas ficaram sem dinheiro.
A avó dela, uma professora aposentada que tem apresentado sintomas cada vez mais intensos de demência ao longo dos três anos recentes, sempre se esquece que há uma guerra e se enfurece com o neto que vive com ela quando ele não permite que ela saia de casa, afirmou Vovchenko.
“A normalidade da rotina dela foi impactada, e pessoas como ela precisam muito de uma rotina em suas vidas”, afirmou Vovchenko, que vive em Paris e fala pelo telefone com sua avó e seu primo que vive com ela. Sem as caminhadas diárias e conversas com os amigos e vizinhos que encontrava no caminho, e sem a medicação, a condição de sua avó tem piorado, afirmou ela.
A família tem tentado mantê-la afastada da TV, cuja programação foi substituída por transmissões de propaganda russa. As páginas do livro de sudoku, que ela adora resolver, estão chegando ao fim.
Cozinha trancada
Foi particularmente doloroso para a família ter de manter trancada a cozinha, que, como em muitas residências da era soviética, fica em um anexo. A avó dela, cozinheira de mão cheia que adora fazer tortas com cerejas, maçãs e ameixas de sua horta, tentava repetidamente preparar refeições elaboradas, sem perceber que a família precisava racionar os estoques de comida, que estavam diminuindo.
Na semana passada, a família acabou retirando a avó do vilarejo onde ela nasceu em 1940, conforme os combates se intensificaram no front leste, de acordo com Vovchenko.
Entre amigos e conhecidos dela por toda a Ucrânia, não faltam histórias a respeito de parentes idosos incapacitados ou fragilizados insistindo para que os jovens partam para a segurança e os deixem para trás, afirmou ela.
“Os mais velhos imploram para os jovens saudáveis escaparem”, afirmou ela. Eles dizem: “Morrerei aqui porque minha terra é aqui. Quero garantir que você vá embora e possa voltar para reconstruir este país.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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