ISTAMBUL - Guerras, pobreza, violência, perseguição, muitas são as causas que levam dezenas de milhares de pessoas a deixar seus lares no Oriente Médio e na África para, cruzando o Mar Mediterrâneo, obter uma maior segurança na Europa. Na África, onde a emigração para a Europa é um fenômeno existente há várias décadas, analistas em segurança consideram que os migrantes se transformaram em outro "ativo" para as redes que traficam armas, drogas ou qualquer mercadoria ilegal.
A Europa entende que a migração da África subsaariana tem motivações econômicas. Mas o certo é que essa ideia esconde a difícil vida de muitas comunidades ou minorias, sejam cristãos em terra muçulmana (com várias milícias jihadistas operando, como Boko Haram ou Al-Shabab), homossexuais, albinos (vistos como "malditos" em quase toda a África), soropositivos ou mães solteiras. Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), cerca de 55 mil migrantes do norte, leste e oeste da África são introduzidos na Europa a cada ano pelas redes de traficantes, que obtêm lucro de US$ 150 milhões. A anarquia na Líbia e a multiplicação de meios de resgate no Mediterrâneo, tanto estatais como de ONGs, dispararam esse fluxo: desde o começo de janeiro até 4 de junho, foi registrada a chegada de 71.418 imigrantes, 85% deles pela Itália. A maioria era de nigerianos.
BENIN, A CIDADE DOS SONHOS PARTIDOS. Benin é capital do Estado de Edo, na Nigéria, que durante 30 anos teve como principal e quase exclusiva fonte de receitas as remessas que seus cidadãos que emigraram enviam do exterior (US$ 21 bilhões em 2015, segundo o Banco Mundial). O sonho da emigração suplantou até mesmo as aspirações de uma educação digna que costumam ser comuns em todos os países pobres. Socialmente, emigrar é melhor do que estudar, como reconheceu à agência France Presse o vice-governador de Edo, Philip Saibu. As famílias de Edo já não buscam a melhor universidade, mas sim o melhor agente para chegar à Europa. Se a candidata à viagem for uma mulher, sabe que com grande probabilidade acabará no mundo da prostituição, ainda que em Benin disfarcem esse destino com outra palavra: "hustling" ("coação", em tradução livre): algumas viajam achando que trabalharão como cabeleireiras ou comissárias de bordo, outras se imaginam no mundo da prostituição de luxo, mas a realidade é que terminam nas ruas em Palermo ou Paris cobrando 10 euros por serviço para pagar à máfia uma dívida pelos "empréstimos contraídos" para a viagem ao Velho Continente, que pode chegar a 50 mil euros. As meninas de Benin não conhecem muito sobre o mundo, mas têm arraigada a ideia de que a vida tem de ser melhor em qualquer outro lugar. "Na Europa, as pessoas são boas, são como Jesus", disse candidamente a jovem nigeriana Miracle, entrevistada pela AFP em uma casa de apoio gerenciada por uma Igreja Evangélica. Miracle foi resgatada de redes de prostituição na Itália. AGADEZ, ENCRUZILHADA DE TODOS OS ÊXODOS. Agadez, no centro geográfico do Níger, é uma cidade famosa entre os migrantes: dela partem as rotas do êxodo. A da Líbia é a preferida desde a queda de Muammar Kadafi, em 2011, graças à ausência do controle das fronteiras, ainda que isso represente um risco enorme de roubos ou terrorismo no caminho. De Agadez partem em horário noturno velhos caminhões repletos de migrantes. A partir dessa cidade, tudo é deserto, e até a fronteira com a Líbia (três dias de viagem) só existe outra cidade, Dirkou. Os veículos só param para reabastecer ou para que os ocupantes façam suas necessidades fisiológicas. É nessa rota onde, com certa frequência, um caminhão apresenta problemas mecânicos no meio do nada, e a maioria de seus ocupantes morre de sede antes de receber auxílio. O último caso ocorreu em 29 de maio, quando um veículo que transportava 50 ganeses e nigerianos quebrou, e dele só se salvaram 6 pessoas que chegaram vivas até um poço após caminharem por 48 horas. Mesmo sabendo desse cenário, emigrantes do centro e oeste da África continuam chegando a Agadez, onde as máfias lhes prometem uma rápida viagem, quando as condições permitam. O tempo de espera eles passam em "casas de conexão", construções rudimentares nos arredores da cidade, fora do controle policial. Raramente essas pessoas contam com água e eletricidade, tendo como recurso pouco mais do que um teto sob o qual se abrigar em meio a dezenas de colchões. E podem esperar por semanas ou meses. Suas economias rapidamente se esgotam, enquanto as máfias lhes exigem mais e mais em conceito de "aluguel" em Agadez, o que obriga muitos a buscar pequenos trabalhos ilegais na cidade, que para as mulheres são sistematicamente ligadas a prostituição. Em outras situações é ainda pior: "Nos fazem telefonar para parentes em casa e temos de lhes dizer: 'Mandem dinheiro, ou vão me matar'", contou à AFP o senegalês Ibrahim Kandé. Quem parte do oeste da África tem o caminho fácil por uma zona de livre circulação até o Níger. Uma vez lá, as redes ilegais os levam para a Líbia, por 150 euros, aos quais se somam outros 1.000 euros pelo cruzamento do Mediterrâneo, segundo o porta-voz da agência europeia de fronteiras (Frontex), Fabrice Leggeri. A rota oriental, mais usada por eritreus, somalís e etíopes, é mais cara, pois toda a viagem é organizada por quadrilhas nacionais que trabalham de forma coordenada: "A tarifa pode chegar a 3.000 euros, desde o Chifre da África à Itália", declarou Leggeri. FUGINDO DA GUERRA. Os sírios ou iraquianos que fogem da guerra ou da ocupação do Estado Islâmico (EI) confluem em sua maioria na longa fronteira oriental da Turquia, onde têm se desenvolvido redes de traficantes que conhecem em todos os detalhes, das montanhas curdas aos passos que podem ser dados sem serem avistados pelos agentes da lei turcos. Para a maioria, o caminho mais seguro é o individual, pois um homem só se move com mais discrição e pode mudar facilmente de rota, e uma vez refugiado na Europa, pode se amparar na política europeia de reunificação familiar. "Os jovens viajam leves e podem correr se for necessário", explicou à agência alemã DPA o sírio Ali, que fugiu de Aleppo com a família em 2014 e se instalou na província turca de Hatay. Neste ano, seu primo escapou sozinho pagando US$ 500. Mulheres, idosos ou famílias devem desembolsar entre US$ 700 e US$ 800 cada um para cruzar a fronteira com a Turquia. No caso dos iraquianos, se soma a esse preço a viagem desde seu país à Síria. Ainda que o controle de vastas áreas do norte da Síria e do Iraque por parte do EI tenha favorecido em certo modo o trânsito de pessoas com o "fim" da fronteira, isso não significa que os jihadistas não detenham os migrantes, que viajam em burros, fingindo ser pastores, ou em caminhões de combustível. Tudo tem um preço: os motoristas dos caminhões pedem entre US$ 1.200 e US$ 1.500 dólares por pessoa para levá-las até a Turquia. UMA NOVA CONSCIÊNCIA DO PROBLEMA. Um milhão de pessoas conseguiram chegar irregularmente à Europa em 2015, metade delas sírios que entraram nos Balcãs pelo Mediterrâneo oriental, segundo dados da OIM. A Europol calculou que, nesse ano de recorde de chegadas ao território da UE, o contrabando de migrantes movimentou entre US$ 4,7 bilhões e US$ 5,7 bilhões. A cifra caiu em cerca de US$ 2 bilhões no ano passado, após a rota balcânica, majoritariamente utilizada por sírios e iraquianos, ser fechada em um acordo com a Turquia. Em 2016, o número de imigrantes que entraram na Europa diminuiu em cerca de 360 mil, e a maioria veio, novamente, da África. A OIM calcula que na Líbia há entre 700 mil e 1 milhão de pessoas esperando a vez de embarcar para a Europa, a maioria de Egito, Níger, Sudão, Nigéria, Bangladesh, Síria e Mali. Ainda que haja menos gente pretendendo emigrar, as mortes registradas no Mar Mediterrâneo não param de aumentar: 3.770 em 2015, 5.079 em 2016, 1.650 até agora em 2017. É impossível saber quantos morreram antes no deserto. O diretor regional para o centro-oeste da África da OIM, Richard Danzinger, disse à AFP que começa a despertar entre todos os países a consciência de que "o custo humano não é aceitável, já falamos de afogamento no Mediterrâneo ou de morte no deserto". Até o migrante que chega a seu destino o faz fisicamente exausto, fragilizado pela fome e pela malária e com numerosos problemas psicológicos pela violência da qual foi vítima e testemunha no caminho. Só os próprios imigrantes poderiam explicar a seus compatriotas as enormes dificuldades da travessia e também após a chegada no país de destino, mas sociólogos mostraram em inúmeros estudos que eles nunca reconhecem os problemas pelos quais passam. A questão de reconhecimento do fracasso está na "desonra": Balde Aboubakar Sidiki, um guineano de 35 anos, teve de pedir à sua família que vendesse todas as suas terras por 17 milhões de francos (1,7 mil euros) para poder emigrar para a Europa, mas sua viagem terminou em uma prisão na Líbia, onde era maltratado pelos que o capturaram. Ao sair dela, preferiu ficar em Agadez por "não poder suportar a vergonha de ter vendido toda a terra da família para nada", segundo afirmou à AFP. Para os países africanos, a migração foi implicitamente uma válvula de escape nunca confessada diante da pressão demográfica e econômica, e só nos últimos anos começam a cobrar consciência dos riscos que representam os fluxos incontrolados de pessoas desde o ponto de vista policial, sanitário e humanitário. Assim, o governo da Nigéria anunciou planos para punir o contrabando de pessoas, algo ainda a ser concretizado. Enquanto as autoridades do Níger endureceram suas leis em 2015 com punições que vão até 30 anos de prisão. A UE ofereceu um pacote de 1,8 bilhão de euros em ajuda econômica a vários países do centro da África, mas condicionados a que sejam aplicadas políticas de controle migratório. Mesmo olhando só pelo prisma policial, existe o problema dos meios: em algumas rotas, os traficantes contam com sofisticados sistemas de telecomunicação para burlar os controles de fronteira, como acontece no Sudão, onde redes eritreias controlam o tráfego oriundo do Chifre da África que segue para o Egito ou a Líbia. "Precisamos de ajuda internacional, tecnologia sofisticada de telecomunicação, veículos, câmeras e até drones para monitorar a fronteira", disse à AFP o general da polícia de Kasala, no Sudão, Yahya Suleiman. / EFE
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