Há muito tempo a Itália faz de suas crises políticas espetáculos teatrais. Ela domina todos os estilos: um dia ela nos apresenta uma tragédia, da outra vez uma ópera, ou um balé, um carnaval ou uma briga de palhaços. Mas o gênero que ela melhor interpreta é a ópera-cômica, uma variedade, a propósito, inventada pelos italianos no século 18 e é comumente chamada de ópera-bufa.
Este é o espetáculo que a Itália nos oferece há dias. Os líderes atuais, Matteo Salvini (chefe da Liga, extrema direita), homem forte do governo, e líderes do partido criado pelo palhaço Beppe Grillo (Movimento 5 Estrelas, M5S, populista), que dividia o poder com Salvini, vinham discutindo há longos meses, numa disputa doméstica.
No entanto, na onda de calor deste mês de agosto, em vez de cochilar ou se refrescar remando em uma fonte de Treviso, Salvini decidiu quebrar a equipe barroca que ele formou com o M5S. Ele exigiu que o governo fosse dissolvido, “dissolvendo” assim a si próprio, e pedindo aos italianos para eleger uma nova Assembleia na esperança de que ela nomeasse um novo governo do qual os antigos aliados seriam expulsos.
Um pouco complicado? Um tanto ridículo. Nós estamos na Itália. Esse país, que inventou tantas coisas belas, de Florença a Michelangelo e Leonardo da Vinci, acaba de inaugurar uma nova figura da vida democrática: um dos principais ministros do governo, Salvini, pedindo o “dissolvam” para que ele renasça das cinzas, ainda mais poderoso, mais dominador do que antes.
Roma acordou com uma emoção súbita: uma crise do governo no dia 15, data sagrada (a assunção da Virgem) geralmente dedicada ao silêncio e recolhimento. Este ano, não é o do silêncio metafísico ao qual temos direito, mas sim de gritos e sussurros.
De todos os lados, precipitaram-se para Roma todos os tenores da política italiana. Por exemplo, Matteo Renzi (da esquerda democrática), que reinou de 2014 a 2066, ou Beppe Grillo, que havia desaparecido e aí está. E então, o inefável, exasperante, fascinante Silvio Berlusconi, o “cavaliere”, especializado em jovens moçoilas com seios bonitos, engraçado, sutil, que orquestra a política mesmo depois de tantos anos, seja como chefe de governo, seja como líder da oposição.
Muito envelhecido hoje, mas uma figura suave e inteligente . Ele permanece na liderança de um partido outrora poderoso (Forza Italia), mas agora reduzido a alguns fragmentos. Apesar de tudo, o “cavaliere” sempre exerce a mesma sedução. E se ele se misturar a esta “crise de 15 de agosto”, é porque ele sem dúvida tem algumas granadas com o pino já arrancado no bolso.
Como resumir as discussões em andamento? O certo é que o “golpe de Estado” invisível, perpetrado pelo chefe da Liga deveria levar a uma completa recomposição do tabuleiro de xadrez italiano. Falamos de uma possível associação do Partido Democrático, de Renzi, com o M5S, que durante meses tem atacado violentamente essa legenda. Ficamos surpresos com essa estranha “aliança”. Mario Renzi e os líderes do M5S riram.
De outra parte, o líder da Liga, está muito agitado. Ele quer aproveitar a crise que ele friamente provocou contra si mesmo, para retornar em glória como chefe da Itália. Ele tem ativos fortes. Conseguiu fazer do seu partido o maior do país, graças a sua política vigorosa, sem escrúpulos, sem sequer temer elogiar Mussolini, que se aliou durante a última guerra mundial com Hitler, nada mais que isso, e sem escrúpulos ou arrependimento.
A Liga poderia obter 30% dos votos nas próximas eleições parlamentares. Mas para ser designado chefe de governo, Salvini precisa de 50% dos votos, o que o obriga a encontrar aliados. Certamente há alguns pequenos partidos neofascistas, mas isso não é suficiente.
Salvini então tirou o velho Berlusconi do armário, feliz por se ver sob as luzes do sol. Mas a velha raposa não se esqueceu de que, uma vez, o mesmo Salvini, que hoje o corteja, despejou insultos sobre sua cabeça.
Berlusconi indicou que concorda em conversar com Salvini, aconselhá-lo e até entrar em seu futuro governo, mas sob certas condições. Que condições? O cientista político Giovanni Orsina responde: “Todas as condições estabelecidas por Berlusconi permanecerão secretas e subterrâneas”.
Não há dúvida de que, por trás das negociações entre jovens líderes e os que retornam, um capítulo é reservado para “migrantes”. Este é um problema lancinante.
A Itália, por causa de sua proximidade geográfica com a África, tem sido durante anos a receptora para o conjunto de pessoas pobres que fogem dos horrores da Síria ou da Líbia. Na verdade, Salvini denunciou frequentemente o egoísmo sórdido de outros países europeus, que apesar das lágrimas vertidas ante a miséria dos migrantes na União Europeia, jamais levantaram um dedo em defesa dos exilados.
Salvini decidiu, portanto, que no futuro os portos italianos seriam fechados para navios carregados de migrantes. Essa decisão encantou o povo italiano, que se tornou muito xenófobo, algo que também explica que seu partido tenha dobrado seus integrantes em um ano. Mas a que preço!
O espetáculo desses barcos da morte, que ficam ao largo dos portos italianos, é inaceitável. Salvini não recuou. Estas decisões brutais e implacáveis, que satisfazem uma grande parte do povo italiano, machucam o coração. Foi dito que desde a era Salvini, há um ano, entre 500 e mil imigrantes morreram, tendo à vista dos portos da península.
Esse número não é confirmável, e sem dúvida exagerado, mas, como disse Dostoievski, a morte de um filho, de uma única pessoa inocente, é inaceitável. Talvez Salvini não tenha lido Dostoieveski. Tais são os conjuntos e diálogos de hoje da nova ópera-cômica de Roma. Isso à espera de que um outro sobressalto venha complicar a situação, já mal decifrável, do longo drama italiano. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO É CORRESPONDENTE EM PARIS
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