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Giorgia Meloni pode ser a primeira mulher premiê da Itália, mas algumas italianas temem retrocessos

Mulheres temem que a candidata de extrema direita incentive medidas que barram avanços e conquistas femininas

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Por Elisabetta Povoledo e Gaia Pianigiani

Ser mulher e mãe tem sido fundamental para o discurso político de Giorgia Meloni, a candidata de extrema direita que provavelmente se tornará primeira-ministra da Itália após as eleições de domingo, 25.

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Ela já concorreu a prefeito com sete meses de gravidez porque disse que homens poderosos lhe haviam dito que ela não conseguiria. Seu bordão mais famoso é: “Eu sou mulher. Eu sou mãe”. Muitas vezes ela fala com orgulho sobre como começou seu partido, o Fratelli d’Italia (Irmãos da Itália), e subiu ao topo da política nacional sem nenhum tratamento especial.

No entanto, por mais felizes que as ativistas dos direitos das mulheres estejam com a possibilidade de uma mulher finalmente governar a Itália, muitas desejariam que fosse qualquer outra italiana. Elas temem que a agenda de extrema direita de Meloni – com um discurso sobre prevenção de abortos, oposição a cotas e outras medidas – traga retrocessos à causa das mulheres.

Italianos votam para eleger o novo parlamento; coalizão de direita e extrema direita devem formar novo governo  Foto: Ciro Fusco/EFE/EPA

“Não é um avanço e, na verdade, pode ser um retrocesso do ponto de vista dos direitos das mulheres”, disse Giorgia Serughetti, que escreve sobre questões femininas e leciona filosofia política na Universidade Bicocca, em Milão.

Mais do que nos países vizinhos da União Europeia (UE), as mulheres na Itália têm enfrentado dificuldades para emergir na sociedade tradicionalmente patriarcal do país. Quatro em cada dez mulheres italianas não trabalham. As taxas de desemprego são ainda maiores entre as mulheres jovens em início de carreira. Diretoras executivas do sexo feminino lideram apenas uma pequena porcentagem das empresas listadas na bolsa de valores de Milão, e há menos de dez reitoras nas mais de oitenta universidades da Itália.

Para muitas italianas, encontrar um equilíbrio entre vida pessoal e profissional fica quase impossível quando os filhos entram na equação. Creches públicas acessíveis e em período integral são inexistentes em muitas regiões, e as mulheres pagaram o preço mais alto durante a pandemia, ficando em casa mesmo após os períodos de lockdown, quando as escolas foram fechadas.

Todos os indicadores nacionais e internacionais sugerem que, se as mulheres na Itália trabalhassem mais, o Produto Interno Bruto (PIB) aumentaria consideravelmente.

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Coalizão de Meloni é simpática às ideias de Orbán

“Metade das mulheres italianas não tem independência econômica”, disse Linda Laura Sabbadini, estatística e diretora de novas tecnologias do Instituto Nacional de Estatística da Itália. “Não é só uma questão cultural. A política claramente não fez o suficiente pelas mulheres até agora”.

Meloni se apresentou como alguém que vai ajudar, mas, em questões-chave para as mulheres, sua coalizão tem se mostrado ambígua e oferecido poucos detalhes. E um dos parceiros da coalizão, Matteo Salvini, do partido anti-imigrante Liga Norte, admira Viktor Orbán, o primeiro-ministro conservador da Hungria, e suas políticas sobre família. O líder da Liga disse recentemente que Orbán vem elaborando a “política familiar mais avançada”, dando “os melhores resultados em nível europeu”.

Orban encoraja as mães húngaras a procriar para combater a queda da taxa de natalidade. Neste mês, o governo húngaro aprovou um decreto que exige que as mulheres que procuram fazer aborto observem os sinais vitais do feto antes de prosseguir com o procedimento.

Na Itália, surgiram preocupações de que a coalizão de centro-direita de Meloni pode dificultar o aborto das mulheres em um país onde o procedimento é legal desde 1978, mas ainda muito difícil de obter.

Quando lhe perguntaram sobre a lei em entrevista, Meloni, que disse que sua mãe quase a abortou, prometeu que “não a mudaria” como primeira-ministra e que o aborto permaneceria “acessível, seguro e legal”. Mas ela acrescentou que quer aplicar mais plenamente uma parte da lei “sobre prevenção”, que, segundo ela, vem sendo efetivamente ignorada até agora.

Os críticos temem que essa abordagem permita que as organizações antiaborto desempenhem um papel mais proeminente nas clínicas de planejamento familiar e incentivem ainda mais médicos se recusarem a fazer o procedimento. Apenas 33% dos médicos realizam abortos legais na Itália e, em algumas regiões, o número é menor ainda: 10%.

Laura Lattuada, atriz em Roma, disse que estava preocupada com a possibilidade de a lei do aborto ser derrubada com Meloni no poder.

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“Ela está sempre falando que quer melhorar as coisas, mas não tenho certeza de que sua concepção de proteger as mulheres e a família corresponda à melhoria dos direitos das mulheres”, disse ela.

‘Cotas rosa’ podem sofrer revés

O aborto não é o único problema para as ativistas. A Itália introduziu e vinha ampliando progressivamente as chamadas cotas rosa, uma porcentagem de representação feminina obrigatória na política e nos conselhos das empresas. Muitas mulheres dizem que as cotas na política refletem melhor a população e que as cotas nas empresas ajudam a romper as redes dos “velhos de sempre”, dando às mulheres acesso igual a empregos mais bem remunerados. As cotas também dão maior visibilidade às mulheres, disseram.

Meloni é contra as cotas. Ela argumenta que, como mulher, subiu a escada política por conta própria e agora está pronta para governar o país. Ela diz que é a prova viva de que as mulheres não precisam de interferência do governo para impor a diversidade.

Seus apoiadores concordam.

“Ninguém nunca deu nada a ela, ela simplesmente pegou. Fez tudo sozinha”, disse Lucia Loddo, 54 anos, que empunhava uma faixa de apoio a Meloni em um comício em Cagliari. Ela disse que, para as mulheres, a ascensão de Meloni “é a coisa mais linda. Todos os homens foram desastres. Ela está preparada”.

Cerca de 25% das mulheres italianas que votam no domingo devem votar em Meloni, embora os pesquisadores não tenham perguntado às mulheres se o gênero da candidata é um fator determinante de seu voto – o que revela a atenção dada às eleitoras aqui. Meloni está marcando pelo menos 25% nas pesquisas nacionais, à frente de todos os outros candidatos.

Meloni conquistou os eleitores com seu jeito simples e direto (ela costuma falar em dialeto romano). Mas o segredo de sua popularidade tem menos a ver com personalidade ou propostas políticas e mais a ver com o fato de ela ter sido essencialmente a única líder de um grande partido a permanecer na oposição durante o governo de unidade nacional de Mario Draghi.

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Isso permitiu que ela fizesse uma campanha promissora em um país que está sempre procurando um rosto novo, embora ela esteja no Parlamento há quase duas décadas e tenha sido ministra em um governo anterior.

Nesse período, a Itália teve um histórico medíocre no empoderamento das mulheres na força de trabalho, e especialistas dizem que é preciso fazer mais.

“Temos de criar condições para gerar emprego, porque estamos no fim da fila da Europa”, disse Ida Maggi, da Stati Generali delle Donne, associação que trabalha para colocar as questões das mulheres na agenda eleitoral.

Uma área em que Meloni e até mesmo seus críticos mais fervorosos concordam é a necessidade de mais creches. O governo de Draghi alocou bilhões de euros no ano passado para construir creches e ampliar os serviços de cuidados infantis. Mas o problema não está nem perto de ser resolvido.

Em muitas regiões italianas, a escassez de creches gratuitas, juntamente com dias letivos curtos e férias de três meses, dificulta que as mães que trabalham organizem seus horários. E, embora muitas mulheres estejam em casa, o país tem uma das taxas de natalidade mais baixas da Europa, algo que a coalizão de centro-direita de Meloni prometeu corrigir.

Falando a apoiadores em Milão este mês, Meloni disse que ela e seus aliados vão trabalhar para oferecer serviços de creche gratuitos, parte de “um grande plano para aumentar a taxa de natalidade e apoiar a maternidade”. Com apenas 400 mil nascimentos no ano passado, a Itália está passando por mais do que um inverno demográfico, disse ela: “É uma era do gelo”.

“Não quero que esta nação desapareça”, disse ela, acrescentando que o problema não deve ser resolvido pela imigração. “Quero que nossas famílias tenham filhos”, acrescentou ela sob uma salva de palmas.

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Mas os críticos não estão convencidos de que seu partido, ou provável coalizão, esteja totalmente comprometido com a causa das mulheres.

Pesquisas realizadas no ano passado mostram que, embora a maioria dos italianos tenha dito que era preciso fazer mais para alcançar a igualdade de gênero, esses números foram consideravelmente menores entre os apoiadores do Fratelli d’Italia e da Liga.

Um vídeo de campanha de um candidato do partido Forza Itália, outro aliado da coalizão, foi amplamente ridicularizado por prometer salário a mulheres que não trabalham fora de casa. O partido é liderado por Silvio Berlusconi, que, disse Meloni na entrevista, a colocou “em dificuldades enquanto mulher” com seus escândalos sexuais quando ela era uma jovem ministra de seu governo.

Salvini (à esq.), Berlusconi e Meloni durante comício em Roma; tentativa de formação de um governo mais estável  Foto: EFE/EPA/GIUSEPPE LAMI

Após décadas de promessas de campanha não cumpridas, há um ceticismo generalizado de que qualquer um dos partidos realmente defenderá as causas das mulheres.

Promessas não cumpridas desencorajam mulheres a votar

Promessas sobre “as necessidades e prioridades das mulheres” – como creches gratuitas e subsídios para famílias – tendem a desaparecer quando chega a hora de efetivamente implementar medidas, disse Laura Moschini, cuja organização, o Observatório Interuniversitário de Gênero, elaborou um “manual para um bom governo” destacando as preocupações das mulheres.

Essas questões desencorajaram as mulheres a votar, e a possibilidade de eleger Meloni como a primeira mulher a ser primeira-ministra não as motivou. Tanto que as pesquisas sugerem que mais 30% das mulheres italianas não votaram no domingo.

“Estou enojada com todo o sistema político”, disse Laura Porrega, que se descreveu como uma “dona de casa desesperada” porque não consegue arrumar emprego. “Quando eles querem seus impostos, eles se lembram do seu nome, mas o país nunca me deu nada”, disse ela.

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Serughetti, a professora da Universidade Bicocca, disse que as mulheres “não veem seus interesses sendo representados”, então preferem se abster.

“A decisão das mulheres de não votar é uma espécie de protesto contra essa ordem de coisas”, disse ela. | TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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