CAGLIARI, Sardenha - Giorgia Meloni, líder do Fratelli d’Italia (Irmãos da Itália), um partido com raízes pós-fascistas e provável próxima primeira-ministra da Itália após as eleições deste domingo, é conhecida por sua retórica virulenta, seu timbre estrondoso e seus discursos ferozes atacando lobbies favoráveis a gays, à integração europeia e a imigrantes.
Sua fala ficou mansa, no entanto, ao ser questionada se concordava com o consenso histórico de que o líder fascista Benito Mussolini – que ela admirava em sua juventude, quando o definiu como um “bom político” – havia sido mau para a Itália.
“Sim”, disse, quase inaudível, entre goles de um Aperol Spritz e tragos em um cigarro fino durante uma entrevista na Sardenha, onde acabava de terminar outro comício raivoso.
Essa simples sílaba significava muito sobre os esforços de Meloni para tranquilizar uma audiência global, no momento em que ela parece prestes a se tornar a primeira política de extrema direita a governar a Itália desde o final da 2ª Guerra.
Tal feito parecia inimaginável há não muito tempo e para realizá-lo, Meloni — que também fará história como a primeira mulher a liderar a Itália – se equilibra sobre um fio delicado. Por um lado, precisa persuadir a sua base de extrema direita de “patriotas” de que não mudou. Enquanto isso, tenta convencer os céticos internacionais de que não é extremista e de que o passado é passado, e, se os eleitores mais moderados da Itália confiam nela, então atores internacionais também deveriam.
Meloni liderou o único grande partido do país, os Irmãos da Itália, a ficar de fora do governo de unidade de Mario Draghi, um tecnocrata que personificou a estabilidade pró-União Europeia. A sua oposição ao governo lhe permitiu atrair o voto dos descontentes, e seu apoio nas pesquisas aumentou de 4% em 2018 para 25%, o suficiente para a liderança no Parlamento.
Ela disse que sua popularidade disparada não significa que a população “se moveu para os extremos”, mas que simplesmente ficou mais confortável com ela e confiante em sua viabilidade eleitoral. Meloni tornou-se uma firme defensora da Otan e da Ucrânia e disse que apoia a União Europeia e o euro. Os mercados globais e o establishment europeu continuam cautelosos. Há receios também sobre o que ela representa para os valores europeus.
Ainda no mês passado, ela pediu um bloqueio naval contra imigrantes. Ela também já descreveu a União Europeia como cúmplice de um “projeto de substituição étnica dos cidadãos europeus desejado pelas grandes capitais e especuladores internacionais”.
Para entender
No passado, ela caracterizou o euro como a “moeda errada” e elogiou Viltor Orbán, da Hungria, Marine Le Pen, da França, e as democracias não liberais na Europa Oriental. Meloni também já criticou “burocratas de Bruxelas” e “emissários” de George Soros, o bicho-papão favorito da direita ultranacionalista e de teóricos da conspiração que retratam o mundo como governado por financistas internacionalistas judeus.
Permanece a preocupação de que, uma vez no poder, Meloni jogue fora sua roupagem de ovelha pró-UE e revele então suas garras nacionalistas — voltando-se ao protecionismo, cedendo a seus parceiros de coalizão que gostam de Vladimir Putin, retirando os direitos dos homossexuais e corroendo as normas liberais da UE.
Investidores internacionais e líderes globais estão errados em ter “medo”, disse Meloni, que é tão afável e descontraída em privado quanto é cáustica em público. Ela se recusou a morder a isca de um líder desesperado da esquerda italiana dividida, que disse ser necessário “ligar o sinal de alerta para a democracia italiana”.
“Eles vão me acusar de ser fascista a vida toda”, disse Meloni. “Mas eu não me importo, porque, de qualquer forma, os italianos não acreditam mais nesse lixo”.
Ela continua a dar nutrientes para alimentar sua base (a imigração em massa é “um instrumento nas mãos das grandes potências” para enfraquecer os trabalhadores, rosnou em Cagliari), e está tentando resolver as fraturas com os outros líderes de direita da sua coalizão.
Seu principal aliado, Matteo Salvini, tornou-se o queridinho da extrema direita em 2018, quando transformou o seu partido Liga, outrora secessionista e sediado no Norte, em uma força nacionalista. Mas Meloni disse que os eleitores de extrema direita “voltaram para casa, porque eu sou dessa cultura, então ninguém pode fazer isso melhor do que eu”.
Mesmo assim, Salvini já está criando problemas para Meloni ao pedir uma reconsideração das sanções contra a Rússia. Meloni reconheceu que seu outro parceiro de coalizão, o ex-premier Silvio Berlusconi, a colocou “em dificuldades como mulher” durante os escândalos das orgias “bunga bunga”, quando ela ainda era uma jovem ministra.
Nenhum de seus parceiros, ela suspeita, quer uma mulher no comando. “Gostaria de dizer: ‘Não, não é um problema que eu seja mulher’, disse Meloni. “Mas não tenho mais certeza sobre isso.”
Em 2019, sua defesa linha-dura da família tradicional e contra o casamento e a adoção LGBTQ – embora ela seja uma mãe solteira – levou palavras suas a inspirarem uma mixagem de DJs. “Eu sou Giorgia, sou uma mulher, sou uma mulher. Sou mãe, eu sou italiana, eu sou cristã.”
O remix viralizou, e Meloni o adotou, usando-o em seu livro best-seller “Eu sou Giorgia”.
Meloni cresceu sem o pai, que quando ela era criança partiu para as Ilhas Canárias, onde ela aprendeu espanhol durante as visitas no verão. Depois de um incêndio que ela e sua irmã mais velha acidentalmente começaram, sua mãe, que a certa altura escreveu romances para sobreviver, mudou a família para o bairro de classe trabalhadora e de esquerda de Garbatella, em Roma.
Meloni era acima do peso e introvertida. Aos 15 anos, quando era uma fã de livros de fantasia e de Michael Jackson, com quem ela aprendeu seu bom inglês, encontrou o que ela chamou de segunda família na Frente Juvenil do Movimento Social Italiano, de tendência pós-fascista.
Ela passou a se considerar um soldado enfrentando guerras ideológicas, muitas vezes violentas e às vezes fatais, numa Roma onde tudo, desde jogos de futebol até escolas de ensino médio, era politizado. O líder de seu partido foi a Israel para renunciar aos crimes do fascismo ao mesmo tempo em que ela ascendia rapidamente, tornando-se mais tarde a ministra mais jovem da República.
Enquanto o populismo varria a Itália na última década, Meloni adotou tons mais duros e criou a formação de extrema direita Irmãos da Itália. Ela disse que se ressentiu de seus membros serem descritos como “imbecis nostálgicos”, porque ela trabalhou duro para expurgar os fascistas e construir uma nova História.
Como Salvini, ela transformou suas contas de mídia social em um mobilizador das massas. Na cidade de Vinci, acusou os franceses de tentarem reivindicar Leonardo da Vinci como um deles. Ela foi a uma destilaria de grappa para chamar o então presidente da UE, Jean-Claude Juncker, de bêbado. Ela alertou sobre um “império” de “invasores” composto pelo presidente Emmanuel Macron da França, Angela Merkel da Alemanha, Soros e Wall Street.
Em sua conferência política anual em 2018, recepcionou Steve Bannon e disse que apoiava seu esforço “para construir uma rede que ultrapasse as fronteiras europeias” e que “olha com interesse para o fenômeno de Donald Trump” e para o “fenômeno de Putin na Rússia.” Ela acrescentou: “E quanto maior a rede fica, mais feliz eu fico.”
Mas, prestes a comandar a Itália, Meloni mudou. Depois de anos bajulando Le Pen, ela de repente se distanciou (“não tenho relações com ela”, disse). O mesmo para Orbán (“Não concordei com algumas posições que ele tinha sobre a guerra na Ucrânia”). Ela agora chama Putin de agressor antiocidental e disse que continuará “plenamente” a enviar armas ofensivas para a Ucrânia.
Mas os críticos dizem que ela revelou seu verdadeiro eu durante um discurso recente em uma conferência de apoio ao partido de extrema direita espanhol Vox.
“Não há mediação possível. Sim para a família natural. Não aos lobbies LGBT”, gritou em espanhol. “Não à violência do Islã, sim a fronteiras mais seguras, não à imigração em massa. Sim ao trabalho para nosso povo. Não às grandes finanças internacionais.”
Depois, em entrevista, disse que “seu tom estava muito errado”. “Mas acontece comigo quando estou muito cansada”, disse ela, acrescentando que sua entrega apaixonada “se torna histérica”.
Há coisas das quais ela não vai desistir, incluindo o símbolo do partido, uma chama tricolor. Muitos historiadores dizem que evoca as cintilações sobre o túmulo de Mussolini.
A chama, disse ela, “não tem nada a ver com o fascismo, mas é um reconhecimento da jornada feita pela direita democrática em nossa história republicana”.
“Não apague a chama, Giorgia”, gritou um apoiador enquanto Meloni comandava o palco em Cagliari, onde reservou sua injúria mais forte aos ataques esquerdistas que, segundo ela, tentavam retratá-la como “um monstro”. “Eles não me assustam”, ela gritou, sobre os cantos de “Giorgia, Giorgia, Giorgia”. “Eles não me assustam.”
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