Giorgia Meloni, Tolkien, ‘Senhor dos Anéis’: como a fantasia inspira a possível nova líder da Itália

Giorgia Meloni, a política nacionalista mais bem colocada nas pesquisas para se tornar a próxima premiê italiana, considera a obra um texto sagrado

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Por Jason Horowitz

ROMA — Giorgia Meloni, a líder da direita radical posicionada para se tornar a próxima premiê da Itália, costumava se fantasiar de hobbit. Quando era uma jovem ativista do pós-fascista Movimento Social Italiano, ela e seus colegas de militância adotavam apelidos como Frodo e Hobbit — reverenciando O senhor dos anéis e outras obras do escritor britânico J.R.R. Tolkien. Eles visitavam escolas fantasiados e se reuniam para ouvir “soar o chifre de Boromir” em tertúlias culturais. Ela frequentou o “Campo Hobbit” e cantou acompanhada pela banda folk extremista Compagnia dell’Anello, ou Sociedade do Anel.

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Isso pode parecer fruto de alguma paixão juvenil, mais um trabalho normalmente associado a épicos da fantasia e filmes de alto orçamento do que militância política. Mas, na Itália, O senhor dos anéis é, há meio século, um elemento central sobre o qual descendentes do pós-fascismo reconstruíram a identidade da ultradireita, mirando uma era mítica e tradicionalista em busca de símbolos e heróis em busca de criar mitos isentos de tabus fascistas.

“Acredito que Tolkien seria capaz de expressar melhor do que nós as crenças dos conservadores”, afirma Meloni, de 45 anos. Mais do que sua série de livros favorita, O senhor dos anéis é também seu livro sagrado. “Não considero ‘O senhor dos anéis’ fantasia”, afirmou ela.

Giorgia Meloni, líder do partido de extrema direita Irmãos da Itália Foto: Gianni Cipriano/NYT

O universo agrário de Tolkien, repleto de mocinhos virtuosos defendendo seus reinos idílicos e arborizados de hordas de orcs obscuros e violentos, há décadas ocasiona debates eruditos — e convenções — a respeito das inclinações ideológicas e conceitos de raça do autor, assim como sua visão sobre modernidade e globalização. Mais recentemente as obras de Tolkien também proveram campo fértil para nacionalistas que se veem refletidos em seus arquétipos heroicos.

Mas na Itália as aventuras de Bilbo Baggins e os mapas de Mordor formaram várias gerações de jovens pós-fascistas, incluindo a de Meloni — que, segundo sugerem firmemente as mais recentes pesquisas, emergirá da eleição do próximo domingo como a primeira premiê mulher da Itália; e primeira descendente do pós-fascismo a assumir a função.

Meloni — que lidera o partido da direita radical Irmãos da Itália, pediu um bloqueio naval para impedir o fluxo de imigrantes ilegais e alerta seus apoiadores a respeito de forças conspiratórias obscuras de banqueiros internacionalistas — leu pela primeira vez Tolkien, um conservador que certa vez chamou Hitler de “aquele tampinha imoderado”, aos 11 anos. E se tornou fanática por fantasia.

Por volta de seus 20 anos, ela se identificava em salas de chat com o apelido “Khy-ri”, definindo-se como o “pequeno dragão da undernet italiana”. Mais recentemente, ela batizou sua conferência política de “Atreju” (segundo transcrição para língua italiana de “Atreyu”), o herói da História sem fim, obra que se tornou conhecida em um filme cult dos anos 80 que contou com a participação de um personagem animatrônico voador meio dragão meio cão labrador.

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Como ministra do governo, em 2008, Meloni posou para a foto de um perfil publicado por uma revista ao lado de uma estátua do feiticeiro Gandalf. Em 2019, ela homenageou o personagem de mangá Capitão Harlock, o “pirata do espaço”, qualificando-o como “símbolo de uma geração que desafiou a apatia e a indiferença das pessoas”. No mês passado, ela lamentou que sua intensa agenda de campanha a impediu de maratonar a nova série Anéis de Poder, da Amazon.

Mas o interesse de Meloni em outros mundos tem a ver tanto com política quanto com gosto pessoal.

“O gênero da fantasia na Itália sempre foi cultivado pela direita”, afirmou Umberto Croppi, ex-integrante do Movimento Social Italiano que atualmente dirige uma associação nacional de entidades públicas e privadas da indústria cultural italiana. Ele afirmou que ambos os mundos compartilham uma “visão de espiritualidade contra o materialismo, uma visão metafísica da vida contra as formas do mundo moderno”.

O mundo moderno não funcionou tão bem para os fascistas ultraconservadores que permaneceram leais a Hitler e Mussolini depois de o governo oficial da Itália mudar de lado e passar para as mãos dos Aliados durante a 2.ª Guerra.

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Depois da guerra, muitos desses fascistas se arrebanharam no Movimento Social Italiano, mas os esforços do partido de se reintegrar às instituições italianas eventualmente fracassavam. Os jovens do movimento, sentindo-se excluídos da sociedade civil, mergulharam na edição italiana de O senhor dos anéis prefaciada por Elémire Zolla, filósofo considerado referência pela direita radical que argumentava que Tolkien falava “sobre tudo o que nos confronta todos os dias”.

Isso ressoou dentro de um pequeno grupo na Frente da Juventude do partido farto da dominância cultural da esquerda. Eles se consideravam — conforme colocou um de seus líderes, Generoso Simeone — “habitantes da mítica Terra Média, também lutando contra dragões, orcs e outras criaturas”. Em busca de uma alternativa mais palatável do que citar discursos de Mussolini e pichar suásticas — que, apontou Croppi, “eram fáceis de reproduzir em muros”—, em 1977 eles criaram o festival Campo Hobbit.

“A ideia de chamar de Campo Hobbit veio de uma estratégia real”, afirmou Croppi, um dos fundadores do festival. A ideia era superar símbolos antigos e capitalizar sobre o isolamento do partido, seu pequeno porte e a narrativa dele ser vítima de esquerdistas violentos; para tornar herói “não o guerreiro Aragorn, mas o pequeno hobbit”. “Queríamos nos livrar dessa ideia heroica militarista.”

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Um apoiador de Giorgia Meloni veste uma camiseta do Hobbit em um dos comícios da candidato ao cargo de premiê da Itália Foto: Gianni Cipriano/NYT

A velha guarda do partido ficou perplexa. Mas com o apoio dos linha-dura, os festivais Campo Hobbit emergiram como pedras de toque formativas para jovens ativistas. Bandeiras com cruzes celtas, que se fundiam perfeitamente com a estética de Tolkien, tremulavam. A banda Sociedade do Anel tocava canções sobre identidade europeia, incluindo uma que se tornou o hino da Frente de Juventude do partido, Tomorrow Belongs to Us (O amanhã pertence a nós) — música que ecoa a balada Tomorrow Belongs to Me (O amanhã pertence a mim), que é cantada por um membro da Juventude Hitlerista em uma cena aterradora do filme Cabaret. Croppi reconheceu que os campos eram prenhes de saudações fascistas, mas argumentou que elas eram “irônicas”.

Quando Meloni entrou na história, como ativista adolescente da Frente da Juventude na Roma dos anos 90, a direita radical — especialmente na capital — ainda estava tomada por uma mentalidade entrincheirada, lutando para romper com a geração anterior.

Francesco Lollobrigida, um dos líderes do partido de Meloni, Irmãos da Itália (e também cunhado dela), afirmou que ele e outros desejam desde os ano 80 “romper com os padrões de um partido que ainda tinha dentro de si pessoas que haviam pertencido à República Social, feito parte do fascismo”.

Meloni, sentada diante dele, concordou. “Houve um desejo de se livrar daquilo”, afirmou ela.

Em 1993, Meloni compareceu a novamente ao Campo Hobbit, que ela qualificou como um “laboratório político”, durante o qual ela cantou com a Sociedade do Anel e discutiu cultura e livros. “Nós lemos de tudo”, afirmou Meloni.

A livraria preferida da direita radical em Roma se chama Europa, fica diante dos muros do Vaticano. Durante uma visita recente, a Livraria Europa exibia títulos como “Os meninos de Mussolini” e “As origens ocultas do nazismo”. Uma foto de Hitler vigiava a caixa registradora ao lado de um mostruário de canetas.

A Livraria Europa possui uma seção dedicada a Julius Evola, um filósofo italiano esotérico, cercado de tabu e afiliado ao nazismo que se transformou no teórico favorito de terroristas pós-fascistas na Itália e nostálgicos antiburguesia. Evola argumentava que progresso e igualdade são ilusões venenosas.

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“É um pouco enfadonha”, afirmou Lollobrigida sobre a obra de Evola.

Meloni gesticula enquanto dá um discurso em um comício em Roma Foto: Alberto Pizzoli/AFP

Meloni afirmou que, em vez de Evola, um escritor mais influente na época foi Ernst Junger, um ex-soldado alemão, mais mainstream, que buscou extrair sentido da guerra mas também glorificava o combate.

Para Meloni, porém, nenhuma dessas obras se equipara a O senhor dos anéis. Ela disse que aprendeu de anões, elfos e hobbits o “valor da especificidade”, com “cada ser indispensável pelo fato de ser particular”. Ela extrapolou isso para uma lição a respeito de proteger as nações soberanas da Europa e suas identidades singulares.

Nos anos 90, depois de se tornar líder da juventude da Aliança Nacional, partido que sucedeu ao Movimento Social Italiano, Meloni inaugurou seu próprio festival político, que afirmou ser “similar” ao Campo Hobbit. Mas desta vez ela batizou o evento de Atreju. “O símbolo foi de um menino em luta contra o niilismo, contra o Nada que avança”, afirmou ela.

Meloni fez piada dizendo que os italianos mal conseguem pronunciar Atreju, mas afirmou que suas convenções anuais, incluindo a primeira, em 1998, que teve como tema os perigos da globalização, tiveram alcance. “Quisemos dizer que a globalização tem que ser controlada”, afirmou ela. ”Se você olhar em volta, estávamos certos, não?”, acrescentou ela.

Na convenção Atreju de 2018, o convidado de honra, Stephen Bannon, circulou entre pôsteres patriotas dos “heróis da Itália” e estandes que vendiam camisetas com temática de Evola, assim como seus livros. Os apoiadores de Meloni interpretaram seus chamados em defesa da Itália — contra a imigração em massa e a substituição dos italianos nativos pelos invasores — como um grito de guerra pela proteção da Terra Média. Este mês, em um comício na Sardenha, Davide Anedda, de 21 anos, líder da juventude local dos Irmãos da Itália, usava uma camiseta com a palavra “Hobbit”.

“Se você não é do nossos mundo, é muito difícil para você entender”, afirmou Anedda, explicando que Hobbit foi uma banda de rock pós-fascista da direita radical e que Tolkien escreveu “uma parte fundamental da nossa história” — que para a Itália, talvez seja parte de seu futuro.

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Meloni, que parece posicionada para colocar no dedo seu próprio anel precioso depois de décadas nas trincheiras da política, afirmou que o entendimento que tem sobre o poder e sua capacidade de corromper e isolar uma pessoa é “ligado proximamente à leitura de Tolkien”. “Considero o poder algo muito perigoso”, afirmou ela. “Considero-o um inimigo, não um amigo.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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