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Glamour da visita de Kim Jong-un a Putin não esconde realidade sombria na Ucrânia; leia análise

Putin precisa de armas e pode estar disposto a violar sanções da ONU para consegui-las na Coreia do Norte

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Por Adam Taylor

Apesar de todo o infausto glamour da visita de Kim Jong-un à Rússia — o trem à prova de balas, a reunião num remoto porto espacial, o jantar com salada de pato e massa recheada de carangueijo — muitos especialistas acreditam que a visita evidencia uma realidade obscura da matemática da guerra na Ucrânia: o Exército russo está gastando projéteis de artilharia a um ritmo que não é capaz de sustentar, e é crucial para Vladimir Putin encontrar uma solução para este cálculo no próximo estágio do conflito.

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Após a invasão do ano passado e o fracasso em sua tentativa de conquistar Kiev, o objetivo a curto prazo do chefe do Kremlin passou a ser manter o território que conseguiu capturar, construindo posições fortificadas numa tentativa de esmagar a contraofensiva ucraniana. Ainda que muito se comente a respeito do impacto de drones e equipamentos de embaralhamento eletrônico, tão importante quanto — ou mais — tem sido o uso da tecnologia que é, com frequência literalmente, da era soviética: minas e artilharia.

No intensamente disputado sul ucraniano, “há um tiroteio (…) pesadamente dependente de artilharia”, disse a repórteres o porta-voz de segurança nacional da Casa Branca, John Kirby, na quarta-feira, sugerindo que o fornecimento de munição de artilharia foi provavelmente crucial para a visita de Kim à Rússia.

Analistas têm descrito as unidades de artilharia russas em particular como surpreendentemente habilidosas, um contrapeso em relação a áreas mais caóticas do Exército de Moscou. Uma análise recente do Royal United Services Institute, um centro de análise britânico, constatou que unidades de artilharia russas aderiam particularmente a uma estratégia de tentativa e erro na definição de alvos, em certas ocasiões conseguindo atingir sua meta em três minutos — “essencialmente o limite do que seria fisicamente possível”, dado o tempo que o sistema leva para disparar.

Putin e Kim durante reunião na Rússia  Foto: Mikhail Metzel, Sputnik, Kremlin Pool Photo via AP

O custo da guerra de artilharia

Mas esse uso pesado de artilharia tem um custo. Estimativas ocidentais recentes sugerem que a Rússia disparou 11 milhões de projéteis na Ucrânia no ano passado. Jack Watling, pesquisador sênior de guerra terrestre no Royal United Services Institute, disse a colegas meus que existem estimativas prevendo que os russos dispararão outros 7 milhões de cartuchos este ano. Gastando munição a essa taxa, apenas produção dificilmente é capaz de atender à demanda.

Relatos de autoridades ocidentais sugerem que, ainda que a Rússia tenha incrementado impressionantemente sua produção militar, sua capacidade de fabricação de projéteis de artilharia não passa de 2 milhões de unidades ao ano. Numerosos relatos de escassez têm surgido entre militares russos: o líder do Grupo Wagner, Ievgeni Prigozhin, morto em agosto, vinha reclamando de uma “fome de projéteis” no front nas proximidades da cidade de Bakhmut, provocada pelo envio de apenas 800 projéteis por dia às suas tropas quando elas precisavam, segundo seu relato, de 80 mil cartuchos diários.

Com carência na produção doméstica, a Rússia pode se voltar para importações. Os aliados da Ucrânia tentaram aumentar a produção de projéteis de artilharia de calibre 155mm para manter as armas de Kiev disparando — com resultados dúbios. Mas Moscou não tem muitas fontes a que se voltar. A Rússia usa principalmente projéteis de 152mm que desenvolveu durante a era soviética, mas poucos de seus ex-aliados europeus lhe venderiam seus estoques neste momento.

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A União Soviética forneceu armamentos aos países que buscou influenciar no passado, criando Estados clientes que dependiam das armas de Moscou. De muitas maneiras, hoje a situação se inverteu, com os russos sendo forçados a pedir ajuda a países para os quais anteriormente fornecia armamentos.

Por que Putin precisa de Kim?

A Coreia do Norte, que comprou licenças de fabricação de armas soviéticas nos anos 60, começou rapidamente a produzir em uma escala enorme não apenas para atender à sua demanda doméstica após o armistício da Guerra da Coreia, mas também para comércio internacional. As exportações norte-coreanas de armamentos continuaram após a queda da União Soviética, entrando na clandestinidade em face às duras sanções da ONU destinadas a bloqueá-las.

Dada a proximidade da capital sul-coreana, Seul, a Coreia do Norte também coloca foco na fabricação de artilharia para seu próprio Exército. Um relatório de 2020 do instituto de análise americano RAND estimou que há aproximadamente 6 mil sistemas de artilharia com alcance sobre centros urbanos sul-coreanos. Joseph Dempsey, pesquisador associado para análise militar e de defesa do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, disse recentemente à Associated Press que a Coreia do Norte “pode representar a maior fonte de legado compatível de munição de artilharia fora da Rússia”.

A quantidade exata de munições que a Coreia do Norte poderia fornecer em qualquer acordo imaginável é desconhecida. Kirby disse no ano passado que a Rússia provavelmente esperava receber “literalmente milhões de cartuchos, foguetes e projéteis de artilharia da Coreia do Norte”, mas nenhum detalhe firme de um eventual contrato emergiu.

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Seja qual for a quantidade fornecida por Pyongyang, o produto poderá desapontar em termos de qualidade. A Coreia do Norte, isolada e colocada sob sanções, tem colocado foco principalmente em desenvolver seus programas de armas nucleares e mísseis balísticos nos anos recentes, deixando sua munição da era soviética pegar poeira. Análise de um fogo de barragem registrado em 2010 na ilha sul-coreana de Yeonpyeong pelo website de vigilância à Coreia do Norte 38 North constatou que metade dos projéteis caiu no mar, fracassando em atingir seu alvo; e um quarto que atingiu não explodiu.

Violações de regras da ONU

Putin, até aqui, deixou transparecer a negociação apenas indiretamente. Após se encontrar com Kim no Cosmódromo de Vostochni, na região de Amur, o presidente russo sugeriu que a Rússia poderia trabalhar com a Coreia do Norte apesar das sanções colocadas por numerosas resoluções do Conselho de Segurança da ONU. “Há certas restrições, e a Rússia as atende. Mas há coisas que podemos conversar”, disse Putin a repórteres.

A primeira resolução do Conselho de Segurança impondo sanções contra a Coreia do Norte, de 2006, proíbe que o país exporte “sistemas de artilharia de alto calibre”, assim como “qualquer material relacionado”. A Rússia, membro permanente do Conselho de Segurança, apoiou essa resolução; o próprio Putin estava presente quando a sanção foi imposta.

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A Rússia pode já ter violado o bloqueio. Os EUA afirmaram no ano passado que a Rússia já tinha recebido alguns carregamentos de munição de artilharia da Coreia do Norte, mas naquele caso o governo norte-coreano foi acusado de mandar apenas “milhares” de projéteis, no que seria comparavelmente um fornecimento menor. A Rússia também já recebeu drones fabricados no Irã, o que as potências ocidentais afirmam violar o embargo de armas sobre o país persa.

Não está claro o que a Coreia do Norte ganharia em troca de qualquer contrato de fornecimento de armas para a Rússia, mas especula-se que Pyongyang poderia buscar armamentos mais modernos de Moscou ou mais cooperação econômica, como um acordo que determine que a Rússia receberá mais trabalhadores norte-coreanos que poderão mandar dinheiro para seu governo sem divisas.

Seja o que for, para Putin o acordo valerá a pena. Depois de fracassar em tomar a Ucrânia rapidamente no ano passado, a Rússia parece estar se preparando para um conflito arrastado, na esperança de que Kiev e seus aliados se cansem primeiro. Autoridades ocidentais surpreenderam-se com a amplitude dos esforços que a Rússia já realizou para contornar sanções e continuar fabricando armas. Qualquer contrato de fornecimento de artilharia da Coreia do Norte se enquadraria no mesmo padrão. Talvez seja desespero. Mas também pode ser considerado determinação. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*Adam Taylor escreve sobre assuntos internacionais no Washington Post

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