Em quase seis meses como presidente, o americano Joe Biden não alterou substancialmente a política dos Estados Unidos para Cuba e nem deve fazer mudanças de rota tão cedo. A avaliação é do especialista no assunto e professor da American University William LeoGrande, um dos co-autores do livro Back Channel to Cuba: The Hidden History of Negotiations between Washington and Havana. Ao Estadão, LeoGrande diz que a política externa de Biden para a ilha tem sido pautada pelas questões domésticas.
Segundo ele, ainda que o regime cubano evite novos protestos, não conseguirá resolver os problemas econômicos que geram a insatisfação na população, que se vê diante de um novo "Período Especial", com os apagões de energia elétrica e escassez de medicamentos e alimentos.
Começo com a pergunta mais básica: o que explica os protestos de domingo em Havana?
A principal razão é o desespero econômico. Há carência de alimentos, medicamentos, eletricidade e combustível. O governo cubano está basicamente quebrado, não tem mais fontes de moeda estrangeira. A pandemia acabou com a indústria do turismo, o governo Trump cortou as remessas dos cubano-americanos, os embarques de petróleo venezuelano caíram 50%, por causa dos problemas na Venezuela. Todas as principais fontes de moeda estrangeira de Cuba estão bloqueadas agora. E assim o governo não consegue importar alimentos, remédios e combustível.
Acrescente a isso, é claro, a própria pandemia. Cuba tinha feito um bom trabalho na contenção da pandemia. Fecharam a ilha completamente no ano passado, tinham medidas de quarentena obrigatórias muito restritas para pessoas com teste positivo. E como eles têm um sistema de saúde preventiva, puderam fazer o rastreamento de contatos. As coisas estavam relativamente bem, sob controle, e começaram a se abrir novamente. Agora, a variante Delta foi detectada lá e há propagação comunitária, sem que o sistema de saúde tenha recursos para lidar com isso.
Qual o papel do maior acesso à internet, desde 2015, nesse processo?
Por muito tempo, os cubanos tiveram pouco acesso à internet -- por razões econômicas e políticas. Mas, nos últimos anos, a disponibilidade se expandiu muito rapidamente. Em Cuba, onde as associações voluntárias independentes não são legais, as redes sociais tomaram esse lugar e se tornaram um instrumento de mobilização para a ação no mundo real.
O sr. mencionou a política do governo Trump, que reverteu os avanços do governo Obama no diálogo com o regime cubano. Biden prometeu mudanças. Como vê a política do atual presidente para Cuba?
Até agora, o governo Biden não fez absolutamente nada. Eles deixaram todas as sanções de Trump em vigor. O Departamento de Estado disse que aplaude os cubanos por tentarem ajudar uns aos outros. Ainda assim, os EUA mantêm de pé a proibição de remessas que impede os cubano-americanos de ajudarem suas famílias na ilha. Simplesmente não faz sentido. Sobre as manifestações, o governo Biden disse o que já se esperava: que apoia o povo cubano e pede que o governo não use força contra manifestantes pacíficos. É perfeitamente compreensível, mas não há reconhecimento por parte do governo de que suas políticas contribuíram para a crise que está ocorrendo.
O que esperar a partir de agora do governo Biden com relação a Cuba?
O argumento humanitário é que o governo americano deveria liberar as remessas financeiras e permitir que os cubano-americanos ajudem suas famílias. E há o argumento a favor da ajuda humanitária direta em torno da pandemia. Parte do argumento a favor disso é que a pressão para a crise migratória está aumentando com a situação atual de Cuba. Por outro lado, qualquer coisa que Biden faça agora será denunciada pelos republicanos como a salvação do regime cubano de um suposto leito de morte.Não acredito que o regime cubano esteja à beira do colapso, mas é assim que os republicanos irão enquadrá-lo. E até agora a política externa de Biden é movida pela política interna, e não pela situação em Cuba. Portanto, não acredito que veremos uma mudança tão cedo.
Acredita que o governo cubano conseguirá contornar a insatisfação ou que protestos seguirão?
As organizações dissidentes na ilha tentarão repetir o cenário de domingo e dar início a um ciclo de manifestações. O governo obviamente chamou seus próprios apoiadores às ruas para impedir que isso aconteça. Temos que ver se a estratégia do governo será bem-sucedida ou não. Mas ainda que o governo seja capaz de impedir qualquer manifestação adicional, como a de domingo, não estará realmente seguro até resolver os problemas econômicos e oferecer algum alívio às pessoas. E a questão é que a maior parte desses problemas está realmente fora do controle. Se o governo não tem dinheiro, não poderá importar alimentos e remédios.
Há coisas que estão aumentando a frustração das pessoas. Uma delas é a sensação de que a pandemia ficou fora de controle após a crença de que estava sob controle. A segunda são os apagões elétricos. Isso é algo que os cubanos não veem desde a década de 1990, após o colapso da União Soviética. Ter apagões significa correr o risco de perder toda a comida que você tem na geladeira, que provavelmente demorou horas em uma fila tentando comprar. Significa que você está preso em Cuba em julho, sem ventilador ou ar condicionado. A vida fica especialmente difícil. O governo tem dito "não estamos em mais um Período Especial". Mas os apagões são sinais, para as pessoas comuns, de que talvez estejamos entrando em outro "Período Especial", que foi uma década de privação muito grande que as pessoas tiveram que suportar.
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