BRASÍLIA - O governo Luiz Inácio Lula da Silva rompeu o silêncio nesta sexta-feira, dia 1º, e reagiu à série de provocações do regime do ditador Nicolás Maduro, da Venezuela, ao presidente brasileiro e integrantes do Palácio do Planalto e do Itamaraty. Por meio de nota, o governo Lula se disse surpreso com o “tom ofensivo” contra o País e seus símbolos nacionais, adotado por Maduro e seus asseclas do chavismo.
“O governo brasileiro constata com surpresa o tom ofensivo adotado por manifestações de autoridades venezuelanas em relação ao Brasil e aos seus símbolos nacionais”, disse o comunicado, divulgado pelo Itamaraty. “A opção por ataques pessoais e escaladas retóricas, em substituição aos canais políticos e diplomáticos, não corresponde à forma respeitosa com que o governo brasileiro trata a Venezuela e o seu povo.”
A reação ocorre um dia depois de forças de segurança da Venezuela publicarem nas redes sociais uma montagem com a silhueta de Lula, com o rosto na penumbra, e a bandeira do Brasil ao fundo. A imagem tinha o aviso: “Quem se mete com a Venezuela se dá mal...”
O comunicado da chancelaria brasileira não faz referência direta ao presidente, tampouco a autoridades de primeiro escalão do governo que foram nos últimos dias alvo de acusações e, como definiram políticos da oposição na Câmara, de chacota e humilhação, disparadas por parte de próceres do chavismo.
Mais sobre a crise diplomáica
O procurador-geral Tarek William Saab, homem de confiança de Maduro, acusou Lula de ser um “agente cooptado pela CIA” - a agência de inteligência dos Estados Unidos - e de inventar o acidente doméstico para faltar à reunião do Brics na Rússia. Em verdade, Lula sofreu uma queda no banheiro do Palácio da Alvorada, levou pontos na cabeça e deixou de viajar de avião por recomendação médica.
O presidente da Assembleia Nacional, Jorge Rodríguez, propôs que Celso Amorim, outrora enviado a Caracas como interlocutor privilegiado do governo brasileiro, fosse declarado persona non grata na Venezuela. Amorim foi acusado, em comunicado emitido pelo chancelaria venezuelana, chefia por Yván Gil, de ser “mensageiro do imperialismo norte-americano”.
Já o ministro Mauro Vieira (Relações Exteriores) foi acusado de mentir pelo próprio Maduro. O ditador disse cobrou o chanceler brasileiro e ouviu dele a versão falsa de que o País não havia vetado o ingresso da Venezuela no Brics, durante a Cúpula de Líderes de Kazan, na Rússia. Segundo Maduro, o ministro quase “desmaiou” quando o encontrou nos corredores da reunião e saiu correndo.
O ditador também acusou o embaixador Eduardo Saboia, secretário de Ásia e Pacífico no Itamaraty, de ter um passado “obscuro”, “intransigente”, “fascista” e “bolsonarista”. Como principal negociador do País no Brics, cargo conhecido como “sherpa”, ele foi o primeiro a comunicar a objeção brasileira. Saboia seguiu instruções de alto nível enviadas pelo próprio Lula ao Itamaraty.
Saboia já exercia o cargo durante o governo Jair Bolsonaro. Em 2013, ele ficou marcado por ter promovido a fuga da Bolívia do então senador Roger Pinto Molina, o que desagradou aos presidentes de então, a petista Dilma Rousseff e o líder cocalero boliviano Evo Morales.
Segundo diplomatas, a decisão de reagir agora foi motivada por essa série de declarações, algumas sem base na realidade, e não apenas pela montagem divulgada pela Polícia Nacional Bolivariana da Venezuela. A forma e o conteúdo da reação vinham sendo discutidas nos bastidores ao longo da semana, entre Itamaraty e Palácio do Planalto.
Ambiente de crise
Incomodado, Celso Amorim quis consultar o próprio Lula sobre o que fazer, segundo diplomatas. O ambiente era de crise, embora o ex-ministro tenha achado graça da acusação de que age teleguiado pelos EUA.
Assessores de Amorim diziam que ele dera com risadas da acusação, motivada pela interlocução frequente com Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca. Ao revés, o assessor especial de Lula é frequentemente apontado no Brasil como porta-voz do antiamericanismo no governo brasileiro.
Os termos contra ele foram considerados pesados no Palácio. Ele defendia que, apesar dos desentendimentos, era necessário manter canais de interlocução com o regime, e tinha sinalizado essa abertura durante audiência com deputados.
Amorim chegou a dizer que mantinha relação de “coleguismo” com Maduro, por ambos terem sido chanceleres juntos, e que o ditador o recebera na própria residência oficial em Caracas.
Tanto no Planalto quanto no Itamaraty havia consenso de Maduro ordenou a ofensiva irritado com o fato de ter sido barrado no Brics, uma derrota diplomática pessoal do ditador. Ele tentou virar o jogo voando até a Rússia, em vão. Foi a primeira vez que o governo Lula contrariou o interesse da Venezuela na arena internacional.
Inicialmente, a decisão era de não responder, mas mudou para uma avaliação de que era preciso manifestar, de forma sóbria e diplomática, descontentamento e veicular a versão brasileira. Isso porque os ataques e ofensas continuaram, mesmo sem resposta do lado brasileiro, demonstrando uma intenção do chavismo de escalar a crise.
Mal-estar crescente
A nota do Itamaraty marca mais um episódio da crise diplomática entre os países, algo que o ex-chanceler Celso Amorim, assessor especial de Lula e seu mais influente conselheiro em assuntos externos, classificou como “mal-estar” na relação entre os governos.
Tudo começou quando o governo Lula deixou de reconhecer a alegada reeleição de Maduro, em julho, diante dos indícios de fraude eleitoral e da ausência de transparência na publicação de dados que corroborassem a versão oficialista, de órgãos controlados pelo chavismo. A campanha já havia sido marcada por entraves à plena participação da oposição.
O Brasil afirma que Maduro prometeu divulgar as atas eleitorais - que segundo ele atestariam sua vitória - o que jamais ocorreu. Diante da quebra de confiança, Lula deixou de reconhecer a reeleição e não atendeu mais aos pedidos de conversa de Maduro.
O ditador promoveu repressão de protestos com violência, prendeu e perseguiu opositores, o que levou ao exílio na Espanha de Edmundo González, candidato da oposição reconhecido como vencedor por parte do Ocidente.
O Brasil seguiu cobrando transparência nos dados, como um dos países que enviou representantes para acompanhar a votação e havia sido fiador dos Acordos de Barbados. Esses entendimentos entre chavismo e oposição, assinados em 2023, levaram à suspensão das sanções dos Estados Unidos com compromisso de que o regime promovesse eleições livres, justas e transparentes. Também foram descumpridos.
Convocação de embaixadores
Ao contrário do que fez na expulsão mútua de embaixadores, quando do desentendimento com o ditador da Nicarágua Daniel Ortega, Lula agora agiu diferente. Com Maduro, decidiu não devolver, por enquanto, a convocação para consultas do embaixador venezuelano em Brasília, Manuel Vadell, e o chamado para reprimenda recebido por Breno Herman, encarregado de negócios da embaixada brasileira em Caracas.
A embaixadora brasileira Glivânia Maria de Oliveira está em período de férias e, até segunda ordem, voltará a Caracas, segundo integrantes do Itamaraty e do Palácio do Planalto. A situação, porém, pode ser reavaliada a depender da evolução da crise diplomática.
O governo Lula tem buscado preservar seus canais mínimos em Caracas. Isso por causa da extensão dos interesses em solo venezuelano.
Além dos interesses em negócios e comércio de alimentos para abastecer o país vizinho, existem 13 mil brasileiros vivendo na Venezuela e cerca de 500 mil venezuelanos no Brasil.
A Venezuela possui dívida ativa com o País: deve US$ 1,2 bilhão ao Brasil em parcelas atrasadas de financiamentos e US$ 400 milhões em juros - o governo Lula quer cobrar e retomar os pagamentos.
O Estado de Roraima depende da transmissão de energia da Venezuela.
Os países compartilham fronteira de 2 mil quilômetros e precisam cooperar contra narcotráfico, garimpo clandestino e crimes ambientais, migração ilegal e situação de comunidades indígenas.
Além disso, o País foi um dos que mais recebeu fluxo de refugiados, com quase 700 mil cruzando a fronteira seca desde 2018.
O Brasil ainda mantém de forma precária a proteção da embaixada da Argentina, com ao menos seis opositores asilados dentro, apesar de o regime chavista ter revogado o status concedido antes ao Brasil para representar os interesses de Buenos Aires.
Desde a volta de Lula ao poder, laços foram sendo restabelecidos, com o petista emprestando prestígio político e patrocinando uma tentativa de reabilitar Maduro. Isso abriu caminho para a reabertura da embaixada e consulados brasileiros na Venezuela e também para o envio de novos representantes diplomáticos, inclusive adidos militares do Exército.
Se a crise preocupa parte do governo, também há quem celebre o distanciamento de Maduro, já que a relação amistosa e a transigência com abusos da ditadura vizinha, por simpatia ideológica, atrai críticas e desgaste de imagem a Lula, inclusive com repercussões domésticas.
Leia abaixo a íntegra da nota publicada pelo Ministério das Relações Exteriores
O governo brasileiro constata com surpresa o tom ofensivo adotado por manifestações de autoridades venezuelanas em relação ao Brasil e aos seus símbolos nacionais.
A opção por ataques pessoais e escaladas retóricas, em substituição aos canais políticos e diplomáticos, não corresponde à forma respeitosa com que o governo brasileiro trata a Venezuela e o seu povo.
O Brasil sempre teve muito apreço ao princípio da não-intervenção e respeita plenamente a soberania de cada país e em especial a de seus vizinhos.
O interesse do governo brasileiro sobre o processo eleitoral venezuelano decorre, entre outros fatores, da condição de testemunha dos Acordos de Barbados, para o qual foi convidado, assim como para o acompanhamento do pleito de 28 de julho.
O governo brasileiro segue convicto de que parcerias devem ser baseadas no diálogo franco, no respeito às diferenças e no entendimento mútuo.
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