Governo polonês tenta impor narrativa contestada sobre Holocausto a museus, historiadores e escolas

Ação governamental inclui troca de diretores de instituições ligadas à preservação histórica, perseguições a pesquisadores independentes e mudanças no currículo escolar

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Foto do author José Fucs
Atualização:

VARSÓVIA – A cruzada empreendida pelo governo da Polônia e pelo Partido Lei e Justiça (PiS, na sigla em polonês), do primeiro-ministro Mateusz Morawiecki, para tentar impor sua narrativa alternativa sobre o Holocausto, atinge a produção acadêmica, as escolas, os monumentos e a gestão de museus relacionados ao tema.

Museu da História dos Judeus Poloneses (Polin), em Varsóvia: por não 'comprar' a narrativa oficial, o historiador Dariusz Stola, ex-diretor da instituição, teve sua indicação para um novo mandato no comando rejeitada pelo governo Foto: ESTADAO

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Desde a chegada do PiS ao poder, há oito anos, o governo tem promovido uma verdadeira “caça às bruxas” contra os diretores de instituições ligadas à preservação da história do Holocausto que não “compraram” a narrativa oficial, centrada na exaltação do “heroísmo” dos poloneses na Segunda Guerra Mundial, na ‘desjudaização’ do genocídio nazista e no “esquecimento” da colaboração de muitos poloneses com os alemães.

Ainda que muitos museus tenham autonomia formal, eles dependem, muitas vezes, de verbas públicas para manter suas atividades e ficam vulneráveis à interferência do governo na gestão. Muitos de seus dirigentes têm de passar pelo crivo do Ministério da Cultura e do Instituto da Lembrança Nacional (IPN, em polonês), um órgão responsável pela publicação do maior volume de textos históricos do país, pela produção de filmes e games e pela definição do que os estudantes devem aprender sobre história nas escolas.

“Os museus poloneses se transformaram num campo de batalha entre políticos e historiadores”, dizem os pesquisadores Andreas Edges, da Universidade de Munique, e Irmgard Zündorf, do Centro de História Contemporânea, de Postdam, na Alemanha, em artigo publicado na revista História Pública Internacional, órgão oficial da Federação Internacional de História Pública.

Um dos casos mais representativos da “caça” deflagrada pelo governo na área envolveu o historiador Dariusz Stola, ex-diretor do aclamado Museu Polin, em Varsóvia, que apresenta uma exposição multimídia permanente de classe mundial sobre os mil anos de história dos judeus na Polônia. Em fevereiro de 2021, Stola acabou renunciando ao cargo após o governo se recusar, por cerca de oito meses, a confirmar sua indicação para um novo mandato no comando do museu, feita pelos conselheiros da instituição.

Stola, que dirigia o Polin desde a sua inauguração, em 2014, já estava na mira das autoridades por ter criticado publicamente a chamada “Lei do Holocausto”, aprovada em 2018, que prevê a punição de quem atribuir os crimes nazistas ao Estado e à nação polonesa, e “caiu em desgraça” de vez em 2020, quando a instituição realizou uma exposição para marcar os 50 anos da campanha antissemita lançada pelo regime comunista da Polônia, em 1968. No fim da exposição, havia um painel com frases antissemitas e xenófobas anônimas proferidas na Polônia entre 1968 e 2018, mas pelo menos duas delas foram reconhecidas como sendo de integrantes do PiS, enfurecendo integrantes do partido e do governo.

Outro caso de grande repercussão envolveu a demissão, em 2017, de Paweł Machcewicz, ex-diretor do Museu da Segunda Guerra Mundial, em Gdansk, cidade portuária no norte do país onde nasceu o movimento sindical Solidariedade. Para justificar a demissão de Machcewicz, que não encampava a narrativa oficial em relação ao Holocausto, o ministro da Cultura da Polônia, Piotr Glinski, disse que queria alguém na direção do museu que apresentasse “um ponto de vista polonês”. Segundo Glinski, a exposição permanente do museu deveria destacar “o amor mútuo” e não o antagonismo entre os poloneses e os judeus.

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Ordens do Estado

Na academia, a situação não é diferente, levando a reduções nas bolsas de pesquisadores independentes e gerando questionamentos generalizados sobre a real liberdade existente hoje na pesquisa histórica na Polônia. “De acordo com a política do PiS, o historiador só pode ser um serviçal que refaz e remodela a história conforme as ordens do Estado”, afirma Joanna Michlic, especializada no estudo dos judeus na Polônia e no leste europeu, em artigo publicado na revista do Instituto de Pesquisas do Holocausto, da Universidade de Haifa, em Israel.

O episódio mais emblemático da perseguição aos pesquisadores, que teve ampla ressonância internacional, envolveu o historiador Jan Grabowski, da Universidade de Ottawa, no Canadá, e a socióloga Barbara Engelking, fundadora e diretora do Centro Polonês de Pesquisa do Holocausto, sediado em Varsóvia, ambos poloneses.

Autores do livro Noite sem fim – O destino dos judeus em regiões selecionadas da Polônia ocupada, publicado em 2018, que aborda a participação de cidadãos do país no genocídio nazista, eles se tornaram alvo de um processo por difamação,por afirmar na obra que Edward Malinowski, então prefeito do vilarejo de Malinowo, localizado a 110 km de Varsóvia, tinha entregado aos nazistas um grupo de judeus que estava escondido na área.

Embora não tenha sido movida diretamente pelo governo, mas pela sobrinha octogenária do ex-prefeito, Filomena Leszczyńska, a ação contou com o apoio financeiro da Liga Antidifamação Polonesa, que tem fortes laços com caciques do PiS. Em comunicado divulgado na época, segundo reportagem da revista Time, a organização afirmou que os autores haviam comprometido não apenas a reputação do ex-prefeito, mas também “a de outros poloneses e talvez até a da Polônia”.

Atmosfera de medo

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Apesar de terem perdido a ação em primeira instância, por “divulgar informações imprecisas”, os dois pesquisadores – criticados fortemente pela mídia pública polonesa, colocada a serviço da narrativa oficial pelo governo – acabaram revertendo a decisão nas cortes superiores.

“Para mim, o real objetivo do processo não era resgatar o nome de um homem ou preservar a sua reputação, mas intimidar pesquisadores do Holocausto, para injetar uma atmosfera de medo na Polônia e para fazer os estudantes e os educadores pensarem duas vezes se vão abordar em seus trabalhos tópicos que podem desafiar a versão da história patrocinada pelo governo”, disse Gabrowski em artigo publicado no jornal The New York Times em 2022, com o título A nova onda de revisionismo do Holocausto.

A ofensiva do governo polonês para impor sua narrativa da história levou também à mudança de currículo nas escolas. Em 2017, o Ministério da Educação reduziu o tempo dedicado ao estudo obrigatório do Holocausto, instituído em 1999, e modificou o tema das aulas, para enfatizar o salvamento de judeus por poloneses, em vez focar na tragédia judaica, como acontecia antes.

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Visitas de estudantes poloneses aos campos de extermínio estão na mira do Ministério da Educação do país  Foto: ESTADAO

O ministério está desestimulando as visitas aos antigos campos de concentração e de extermínio, que chegaram a receber cerca de 100 mil estudantes poloneses em 2014, antes da ascensão ao poder do PiS, de acordo com a Aliança Internacional de Lembrança do Holocausto, e retirou do currículo as aulas sobre racismo e preconceito, sob a alegação de que “os poloneses não precisam disso porque a Polônia já é um Estado tolerante”. O Museu Polin foi excluído da lista de instituições recomendadas pelo órgão para visitas de professores e estudantes.

Até as tradicionais visitais de estudantes israelenses aos antigos campos de concentração e de extermínio criados pelos alemães na Polônia foram afetadas pela nova postura do governo em relação ao Holocausto. Diante da declaração do vice-ministro do Exterior da Polônia, Pawl Jablonski, de que as visitas não eram feitas “de maneira apropriada”, Israel decidiu suspender as viagens – que chegaram a ter a participação de 40 mil estudantes por ano – em meados de 2022.

‘Ódio à Polônia’

“Nós estamos lidando com um sentimento antipolonês em Israel e uma das razões para isso é a forma como os jovens israelenses são criados e educados. Essa propaganda, baseada no ódio à Polônia, entra na cabeça dos jovens desde os primeiros anos nas escolas”, afirmou Jablonski, na época. “Eles queriam ditar o que é permitido e o que não é no ensino das crianças israelenses que vão para a Polônia e não podíamos concordar com isso”, disse o então-ministro de Relações Exteriores de Israel, Yair Lapid.

As viagens só foram retomadas recentemente, depois que Israel concordou com a exigência de que os estudantes visitem pelo menos um dos 32 locais recomendados pelo governo polonês, entre os quais figuram um memorial que homenageia as vítimas da repressão soviética no país e diversos museus dedicados à história da Polônia.

Nos últimos anos, o número de monumentos e memoriais dedicados aos poloneses que arriscaram suas vidas ou morreram ao proteger os judeus dos nazistas se multiplicou. Muitas vezes, eles são instalados nos mesmos locais dos memoriais judaicos ao Holocausto e até em campos de concentração e de extermínio.

No fim de 2021, por exemplo, o ferroviário Jan Maletka, um polonês de 21 anos morto pelos nazistas em 1942, por dar água para os judeus que aguardavam o desembarque dos vagões de carga que os levaram ao campo de extermínio de Treblinka, ganhou um monumento em sua homenagem no local. “Estima-se que 900 mil judeus morreram em Treblinka. Ao mesmo tempo, nós estamos aqui para homenagear a morte de um homem, 900 mil judeus e um homem”, afirmou Magdalena Gawin, vice-ministra da Cultura da Polônia, na inauguração do monumento, de acordo com Jan Grabowski, que estava presente no evento.

‘Polcausto’

Em outra iniciativa destinada a homenagear os poloneses que perderam a vida ao ajudar judeus durante a ocupação alemã, o Ministério da Cultura da Polônia anunciou, em 2019, o apoio ao projeto Called by name (Chamados pelo nome), desenvolvido pelo Instituto Pilecki, uma organização não governamental que tem fortes ligações com o governo e com o PiS. Até a ideia de construir um museu para o “Polcausto”, uma combinação de Polônia com Holocausto, chegou a ser ventilada, mas acabou não prosperando diante dos protestos que se seguiram ao anúncio da proposta.

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* O repórter José Fucs viajou à Polônia a convite do Memorial do Holocausto de São Paulo.

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