Governo Trump declara imigrantes como mortos para forçar saída dos EUA

Pessoas colocadas no registro de óbitos não podem receber salários ou benefícios sociais. Servidor de carreira que se opôs ao plano foi afastado e alertas sobre a fragilidade do sistema foram ignorados

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Por Hannah Natanson (The Washington Post), Lisa Rein (The Washington Post) e Meryl Kornfield (The Washington Post)

WASHINGTON - Dois dias depois que a Administração da Previdência Social rotulou proposital e falsamente 6,1 mil imigrantes vivos como mortos, seguranças chegaram ao escritório de um respeitado executivo sênior na sede da agência em Woodlawn, Maryland.

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Greg Pearre, que supervisionava uma equipe de centenas de especialistas em tecnologia, havia se posicionado contra o plano do governo Donald Trump de incluir os nomes dos imigrantes no banco de dados de óbitos da Seguridade Social. A medida impediria essas pessoas de receber salários legalmente e, esperavam as autoridades, as incentivaria a deixar o país.

Pearre entrou em conflito especialmente com Scott Coulter, o novo diretor de tecnologia da informação indicado por Elon Musk. Pearre disse a Coulter que o plano era ilegal, cruel e corria o risco de declarar pessoas erradas como mortas, segundo três fontes familiarizadas com os acontecimentos. Mas suas objeções não foram bem recebidas por algumas das nomeações políticas do governo Trump. Assim, na quinta-feira, os seguranças no escritório de Pearre disseram que era hora de ele ir embora.

Servidor de que se opôs a declarar imigrantes como mortos foi escoltado do seu escritório em Maryland e afastado do cargo.  Foto: Wesley Lapointe/The Washington Post

Eles o escoltaram para fora do prédio, encerrando uma intensa batalha interna sobre a estratégia — impulsionada pelo Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), de Musk, e pelo Departamento de Segurança Interna — de adicionar milhares de imigrantes, de adolescentes a octogenários, ao arquivo de óbitos da agência. Esse banco de dados é usado por órgãos públicos, empregadores, bancos e proprietários de imóveis para verificar o status de funcionários, residentes, clientes e outros.

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O episódio também ocorreu após alertas de altos funcionários da Seguridade Social de que o banco de dados era inseguro e podia ser facilmente editado sem comprovação de morte — uma vulnerabilidade que, segundo funcionários, o governo Trump explorou agora.

Nem os alertas nem a remoção de Pearre haviam sido divulgados até então. Este relato de como o governo Trump pressionou a Seguridade Social a declarar erroneamente milhares de imigrantes vivos como mortos baseia-se em entrevistas com 15 pessoas, incluindo atuais e ex-funcionários da agência, muitos dos quais falaram sob anonimato por medo de retaliações, além de mais de duas dezenas de páginas de documentos obtidos pelo Washington Post.

Especialistas em administração pública, direitos do consumidor e direito imigratório disseram que a ação da administração é ilegal. Declarar pessoas vivas como mortas retira suas proteções legais de privacidade — e fazer isso intencionalmente equivale a falsificar registros públicos. Além disso, há o dano direto aos afetados, que passam a não conseguir trabalhar legalmente nem acessar benefícios a que teriam direito. A própria Seguridade Social já reconheceu que uma declaração incorreta de óbito é um golpe “devastador”.

“Esse é um passo sem precedentes”, disse Devin O’Connor, pesquisador sênior no Centro de Prioridades Orçamentárias e Políticas (Center on Budget and Policy Priorities), um centro de estudos progressista. “A administração basicamente parece dizer que tem o direito de declarar pessoas vivas como mortas. É difícil acreditar, mas isso traz riscos e consequências enormes.”

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A secretária de imprensa da Casa Branca, Karoline Leavitt, disse que, ao adicionar os nomes ao banco de dados de óbitos, “o governo Trump está protegendo cidadãos americanos legais e seus benefícios duramente conquistados da Seguridade Social, e garantindo que imigrantes ilegais não recebam tais benefícios econômicos. Quem discordar das políticas de bom senso desta administração pode procurar outro emprego.”

A Seguridade Social, que desmantelou seu setor de imprensa após meses de turbulência em razão do declínio nos serviços, não respondeu aos pedidos de comentário.

Coulter, fundador de uma empresa de investimentos nomeado para o cargo em 27 de março, desligou o telefone ao ser contatado por um repórter do Post.

Pearre recusou-se a comentar. Ele ingressou na Seguridade Social logo após a faculdade, subindo de um cargo inicial em TI até o de executivo sênior responsável por vastos bancos de dados da agência. Após ser removido do cargo, foi colocado em licença remunerada, possivelmente encerrando sua carreira de 25 anos.

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‘Você se torna financeiramente paralisado’

Funcionários da Seguridade Social começaram a soar o alarme sobre a falha urgente no banco de dados de óbitos em fevereiro, segundo uma fonte e registros obtidos pelo Post.

Eles perceberam que qualquer pessoa com as devidas permissões podia marcar alguém como morto — sem qualquer comprovação, como atestado de óbito ou registros médicos. Em e-mails e reuniões, alertaram que o sistema era vulnerável a manipulações.

Parte da preocupação era que alguém mal-intencionado, com acesso aos sistemas, pudesse marcar grupos inteiros de pessoas vivas como mortas para puni-las. Alguns temiam especificamente que a administração Trump pudesse usar essa base de dados contra desafetos do presidente.

A direção da agência afirmou que estava analisando o problema e considerando uma solução que exigiria provas adicionais antes de incluir nomes no banco de óbitos, de acordo com a fonte e os registros.

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Mas nenhuma medida foi adotada.

Segundo o advogado Jim Francis, especialista em direitos do consumidor, ser incluído no registro de óbitos tem consequências severas, como impedir alguém de viver normalmente nos EUA. Francis, que recentemente processou a Seguridade Social por declarar erroneamente uma mulher como morta, observou que a agência vende seus dados a credores, seguradoras e empresas de relatórios de crédito.

“É a fonte que o mundo todo usa. Por isso, se estiver errada, o impacto é devastador”, disse ele. “De um dia para o outro, você literalmente fica financeiramente paralisado.”

Tom Kind, aposentado de 90 anos de Denver, vivenciou esse “pesadelo” quando foi erroneamente incluído no banco de dados. Ele perdeu o acesso a benefícios e plano de saúde, e precisou comparecer pessoalmente a uma unidade da agência para provar que ainda estava vivo. “Não é nada divertido”, disse ele.

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Na mesma época em que funcionários alertavam sobre o risco de exploração do sistema, o Departamento de Segurança Interna e o DOGE chegaram à agência. Logo, seus representantes começaram a explorar como usar os bancos de dados da Seguridade Social para identificar e deportar imigrantes sem documentos.

Menos de uma dúzia de funcionários de carreira foi designada para trabalhar com a equipe de Musk, de acordo com uma autoridade que deixou a agência naquele momento. Os funcionários de carreira, disse a fonte, estavam preocupados que talvez estivessem ajudando em algo ilegal, com alguns questionando se poderiam ser presos por isso.

Militares patrulham a fronteira entre Estados Unidos e México. Ao declarar imigrantes como mortos, governo Donald Trump pretende forçá-los a deixar o país. Foto: Ross D. Franklin/Associated Press

Em março, o foco do DOGE em questões de imigração estava claro, de acordo com duas pessoas com conhecimento das atividades da equipe. Os representantes do Departamento de Eficiência Governamental estavam fazendo muitas perguntas sobre quais tipos de dados sobre endereço, salário e dados fiscais eles poderiam acessar e como essas informações poderiam ser usadas para determinar o status de cidadania, disseram as fontes.

Um funcionário preferiu se demitir a continuar envolvido no que ele considerava uma tentativa ilegal de reorientar a agência para a aplicação da lei de imigração.

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O Departamento de Segurança Interna, por sua vez, fez solicitações menos intrusivas inicialmente, de acordo com um funcionário e os registros obtidos pelo The Post. Os representantes da agência passaram fevereiro e março vasculhando registros no E-Verify, o programa de verificação de emprego, para identificar números de Seguro Social que poderiam ser fraudulentos, de acordo com os registros. Então, entraram em contato com a Seguridade Social pedindo ajuda para evitar esse tipo de fraude, mostram os registros.

O Departamento de Segurança Interna também solicitou que a equipe da Seguridade Social entregasse os endereços de imigrantes sem documentos para que o serviço de Imigração e Alfândega dos EUA (ICE na sigla em inglês) pudesse localizá-los para deportação, disse o ex-funcionário.

Não foi a primeira vez que as autoridades do governo Trump tentaram fazer com que a Seguridade Social entregasse algumas das informações de identificação pessoal mais sensíveis para facilitar as deportações. Durante o primeiro mandato, um assessor da Casa Branca solicitou os nomes e números do Seguro Social de empregadores que supostamente contrataram imigrantes sem documentos, ainda de acordo com o ex-servidor.

Na época, a Previdência Social disse que não. Eles determinaram que a pesquisa violaria a lei, disse o ex-funcionário. Então a questão foi abandonada.

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Mudança nas exigências do governo

Desta vez, não houve resistência.

Nas últimas semanas, os pedidos do Departamento de Segurança Interna mudaram, de acordo com um antigo funcionário. Agentes da Imigração se reuniram com representantes do DOGE para discutir como atingir a meta de expulsar dezenas de milhares de imigrantes que o ICE estava lutando para apreender e deportar, disse uma fonte.

A proposta evoluiu para a ideia de colocar esses imigrantes no banco de dados de mortos.

Leland Dudek, comissário interino que foi elevado de uma posição do baixo escalão após demonstrar lealdade pública ao DOGE, inicialmente teve dúvidas sobre a legalidade do plano, segundo duas fontes. Então, a secretária de de Secretária de Segurança Interna, Kristi Noem, interviu e ele concordou em seguir adiante.

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Na segunda-feira, Dudek assinou dois memorandos com Noem permitindo a ação no banco de dados, de acordo com quatro pessoas com conhecimento sobre a questão. Dudek se recusou a comentar o episódio.

Secretária de Segurança Interna Kristi Noem em entrevista coletiva. O departamento está envolvido nos esforços para declarar imigrantes como mortos.  Foto: Alex Brandon/Associated Press

No dia seguinte, 6,1 mil nomes, em sua maioria hispânicos, e seus respectivos números de Seguro Social foram adicionados ao registro de óbitos, de acordo com os registros analisados pelo The Post.

A Casa Branca disse que os cerca de 6 mil imigrantes têm ligações com atividades terroristas ou registros criminais. O governo não forneceu evidências dos supostos crimes ou vínculos com terroristas, mas disse que alguns estão incluídos em uma lista de vigilância do FBI.

Os imigrantes adicionados ao registro de óbitos incluem menores de idade com 13, 14 e 16 anos, bem como uma pessoa de 80 anos e algumas de 70, de acordo com os registros obtidos pelo Post.

Desde então, alguns servidores bateram os nomes e os números do Seguro Social de alguns dos imigrantes mais jovens com os dados que a agência costuma usar para pesquisar antecedentes criminais e não encontraram evidências de ilícitos ou problemas com a política, de acordo com funcionários.

Entre as pessoas visadas estavam imigrantes com números válidos de Seguro Social que haviam perdido o status legal, como aqueles que participaram de programas de trabalho da era Joe Biden encerrados sob o novo governo, segundo um funcionário da Casa Branca.

Dentro da Previdência Social, o escritório do conselheiro geral está preparando um parecer que considerará o uso sem precedentes do banco de dados de óbitos pelo governo Trump uma violação da lei de privacidade, de acordo com uma pessoa com conhecimento da declaração. O parecer questionará o fato de a agência declarar consciente e falsamente que pessoas vivas estão mortas, disse a fonte.

Na sexta-feira, um grupo de sindicatos e uma organização de defesa que estão processando a Administração da Previdência Social argumentou, em novo processo judicial, que a agência havia violado uma restrição temporária ao adicionar nomes ao registro de óbitos. A ordem impedia o DOGE de acessar os sistemas com informações de identificação pessoal.

Enquanto isso, o esforço para incluir os imigrantes que estão vivos no banco de dados de óbitos continua. Na quinta-feira, a Previdência Social adicionou 102 nomes, segundo os registros.

Este conteúdo foi traduzido com o auxílio de ferramentas de Inteligência Artificial e revisado por nossa equipe editorial. Saiba mais em nossa Política de IA.