Crise econômica pós-pandemia da covid-19, ataques à democracia e protestos. A América Latina começa o ano com desafios importantes e uma nova configuração política, com governos de esquerda eleitos na maior parte da região. Segundo a diretora para as Américas da Human Rights Watch, Tamara Taraciuk, o momento é um teste para a região mostrar o respeito aos direitos humanos independente de ideologias políticas.
“A realidade é que se você vai defender os direitos humanos, não deveria importar a ideologia das vítimas nem dos governos responsáveis”, afirma Tamara em entrevista ao Estadão. A diretora falou sobre as declarações da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e os problemas enfrentados em países como Venezuela e Cuba.
Quais são os principais desafios da região neste momento?
Estamos enfrentando um risco enorme à democracia na região. Temos em um extremo, as ditaduras de Venezuela, Cuba e Nicarágua, mas não só isso. Em muitos países, líderes que chegaram ao poder depois de eleições democráticas, começam a atacar as instituições democráticas essenciais, como a independência do judiciário, a imprensa independente e a sociedade civil. E aí todos esses líderes, independente de ideologia, têm o mesmo livro autoritário.
Outro tema são os problemas crônicos da região, que pioraram depois da pandemia. A pobreza, a desigualdade, a insegurança. E se você não tem governos democráticos, atuando dentro dos limites da democracia, para solucionar esses problemas crônicos que são a preocupação principal do povo, os líderes autoritários podem muito mais facilmente apresentar soluções que parecem simples, mas na realidade são muito abusivas, como as políticas de segurança de El Salvador. Os governos da região precisam mostrar que a democracia pode resolver os problemas do povo e a solução é mais democracia e não menos.
Um desses problemas crônicos é o aumento da fome. Qual é o desafio nesse sentido?
Quando se pensa em direitos humanos, automaticamente se pensa em direitos civis e políticos. Mas há uma ampla gama de direitos humanos que incluem o direito à alimentação, à saúde, à educação. E os governos têm a obrigação de abordar esses problemas e, progressivamente, melhorar a situação da população. O que a HRW faz é demarcar onde os governos não estão atuando. Um exemplo é a Venezuela. O último informe das Nações Unidas mostra que 6,5 milhões de venezuelanos têm problemas de acesso à alimentação. O desafio para nós é mostrar que não é a consequência de um desastre natural, mas de políticas públicas.
Falando da Venezuela, a crise se arrasta há mais de 10 anos e parece que a pressão com os informes de direitos humanos não tem surtido efeito. O que fazer?
O risco no caso da Venezuela é a normalização da crise. Temos há muito tempo três crises simultâneas ocorrendo lá: a repressão e ataque a opositores, não só políticos, mas qualquer pessoa que pense ou fale contra o governo; a crise humanitária, com as dificuldades para acessar serviços de saúde e alimentação; e temos a crise de migração, consequência da crise econômica, política e de direitos humanos. Mais de 7,1 milhões de venezuelanos deixaram o país desde 2014.
Essa situação continua. Mas existe uma ideia de que a economia melhorou, então a situação não é mais tão ruim. Como mudar essa sensação de normalização? A negociação entre governo e oposição é um mecanismo que só vai funcionar se o governo se sentir pressionado. E essa pressão tem relação com o uso inteligente de sanções, que só são úteis se geram incentivos para que as negociações continuem. Outro ponto são as investigações internacionais, que também mantêm a pressão. O terceiro elemento, que toca no governo Lula, é a relação bilateral e a necessidade do regime Maduro de obter legitimidade internacional. Aqui, Lula, Petro (presidente da Colômbia), têm a possibilidade de usar o relacionamento com ele (Maduro) de maneira inteligente. Falar com o governo Maduro não é ruim, o problema é o conteúdo. E essas conversas devem incluir a agenda de direitos humanos sobre a base do que realmente está acontecendo no país.
Nesse sentido, como a senhora vê a última declaração da Celac?
É uma declaração curiosa, de um bloco com Nicarágua, Cuba e Venezuela falando em defesa dos direitos humanos. O tema Celac, um bloco político agora mais de esquerda, não deveria ser uma contradição com a crítica ao desrespeito aos direitos humanos. O melhor exemplo é o Chile. (O presidente) Boric é de esquerda e tem falado bem claramente sobre os abusos na Nicarágua, em Cuba e na Venezuela. Existe neste momento uma oportunidade de defesa das instituições, dos direitos humanos. A realidade é que se você vai defender os direitos humanos, não deveria importar a ideologia das vítimas nem dos governos responsáveis.
E as críticas feitas pelo bloco ao embargo à Cuba e às sanções contra a Venezuela?
O embargo tem décadas e nunca funcionou para melhorar a situação de direitos humanos em Cuba. Então, poucas pessoas e governos podem dizer as duas coisas: que o embargo é prejudicial, mas que em Cuba o governo viola direitos humanos. Podemos dizer as duas coisas sem sermos contraditórios e a HRW tem dito isso. Somos contra o embargo, que só ajuda a encontrar uma desculpa para justificar os problemas na ilha que são responsabilidade de quem governa.
Na Venezuela, existem sanções individuais contra funcionários venezuelanos acusados de corrupção e violações dos direitos humanos, que não têm nenhuma consequência na situação humanitária. E existem as sanções econômicas. Aqui temos feito um estudo que mostra que elas dificultam algumas transações para levar dinheiro à Venezuela. Mas o fato é que a emergência sanitária é anterior à sanções. Por isso, é preciso pensar como usar essas sanções. Não podem ser um mecanismo para punir o Maduro, mas uma estratégia e usadas de forma que a imposição ou levantamento de sanções gerem os incentivos corretos para mudar a posição do regime de Maduro.
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A ameaça à democracia do Brasil continua?
As instituições democráticas têm respondido aos terríveis e graves ataques à democracia do governo anterior durante o período eleitoral, e até antes. Isso foi bem importante. O trabalho do Supremo Tribunal Federal, das instituições, ao proteger a democracia. Mas o risco não termina de um dia para o outro, particularmente porque ainda há uma sociedade bem polarizada que precisa de instituições fortes. Por isso, é importante que a resposta seja dentro dos limites da lei, respeitando o devido processo legal de todos. Isso vai fortalecer a democracia a longo prazo.
Em 2019, vimos diversos protestos e a atuação abusiva das polícias. Como desenvolver políticas de segurança que respeitem os direitos humanos?
Esse é um problema que tem ocorrido em vários países, como Chile, Colômbia e Peru. O que vemos são protestos cada vez mais violentos e esses crimes devem ser investigados pelo Ministério Público. Mas a resposta vem, muitas vezes, mais forte do que deveria porque existem estandartes internacionais para o uso da força. Obviamente a polícia pode se proteger, mas a resposta deve ser proporcional. Sair matando pessoas na rua não parece ser proporcional.
A solução é ter protocolos de atuação sobre os critérios para uso da força, um treinamento razoável e investigações e punições aos responsáveis por abusos. O que tentamos fazer depois desses casos foi promover reformas das polícias, dos sistemas de investigação interna e investigações criminais. O Chile é um bom exemplo. Saiu de uma crise forte nas ruas colocando na mesa a reforma Constitucional e reformas da polícia. Foi o governo anterior, de centro-direita, que começou essa resposta e o atual governo continua.
Qual é o risco da continuidade da política de segurança de El Salvador?
(O presidente) Bukele começou tomando as instituições democráticas e depois aproveitou esse controle para adotar um regime de exceção, que permitiu, desde de março do ano passado, deter mais de 61 mil pessoas, sendo 1.600 crianças, sem o devido processo legal. Mais de 90 pessoas foram mortas dentro do sistema penitenciário em circunstâncias que não foram devidamente investigadas e muitos desses casos sugerem responsabilidade do Estado. Essa não é a resposta a um problema legítimo de insegurança. É preciso ter investigações criminais, dirigidas aos níveis mais altos, é preciso medidas sociais para dar trabalho e estudos aos jovens. Bukele é bem popular em El Salvador e controla a mensagem do que está acontecendo de maneira que incentiva outros governantes da região a copiarem o modelo. A exportação do modelo de Bukele é um risco para a região. É um país que nitidamente não recebe a atenção internacional que deveria.
Quando falamos em política exterior consistente em matéria de direitos humanos, seja do Lula, seja do Petro, por exemplo, o que gostaríamos de ver é uma crítica a todas essas políticas abusivas. É um enorme desafio, mas é um teste para a região.
Depois de 5 meses do governo Petro na Colômbia, a HRW vê avanços nos processos de paz?
Já foi um avanço termos a eleição democrática e nenhum problema na passagem de poder. Havia um risco de que as coisas fossem diferentes e ter ocorrido tudo de forma tranquila foi importante para a institucionalidade. Petro herdou um país com altos índices de violência, com assassinatos de líderes sociais e deslocamentos pela violência. Segundo os dados, os níveis de violência chegaram aos níveis de 2012, quando começou o processo de paz com as Farc. A principal prioridade do governo deve ser ter uma política de segurança clara, o que inclui a negociação com o ELN e outros grupos criminosos, mas é difícil negociar com grupos que não têm uma estrutura clara. O que aconteceu em dezembro, com o governo dizendo que tinha acertado um cessar-fogo bilateral e em seguida o ELN desmentindo isso, não ajuda nesse processo.
Todas essas questões levam ao aumento da imigração aos EUA. Os números devem continuar aumentando?
Sim, porque os motivos que levam as pessoas a saírem de suas casas continuam sendo os mesmos, ou piores. Se as circunstâncias nos países de origem não mudarem, a saída vai continuar. Aí temos também a dificuldade que essas pessoas têm em obter status legal em diferentes países da região, os enormes desafios que enfrentam na viagem - Darién é o pior exemplo, os número não param de aumentar -, mas tudo isso está relacionado com as políticas migratórias dos EUA, que são horríveis. Diante do aumento das chegadas aos EUA, o governo Biden manteve políticas abusivas e essa ideia de terceirizar a política migratória na América Latina principalmente por meio do México. Esse é um problema regional que só pode ser resolvido com uma resposta regional, que ainda não temos.
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