Grávida diz que feto conta como passageiro ao ser multada por dirigir sozinha em faixa exclusiva

Mulher estava em faixa destinada a veículos com passageiros no Texas; argumento é baseado na reversão da Roe vs Wade, que mudou legislação sobre aborto nos EUA

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Por Timothy Bella

WASHINGTON POST - Uma mulher grávida multada por dirigir sozinha em uma faixa destinada a veículos com passageiros no Texas recorreu a infração com o argumento que, em razão da decisão sobre o caso Roe versus Wade ter sido derrubada, o feto que ela carrega é passageiro e, portanto, ela não deveria ser penalizada.

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Brandy Bottone dirigia recentemente pela Central Expressway, em Dallas, quando foi parada por um policial em um posto de checagem de Veículos em Alta Ocupação (HOV), para que o agente conferisse se havia pelo menos dois ocupantes no veículo, como determina a lei local. Quando o policial examinou seu carro, perguntou: “É só a senhora no veículo?”.

“E eu disse, ‘Não, há duas pessoas aqui’”, afirmou Bottone à emissora de TV KXAS. “E ele disse, ‘OK, mas onde está a outra pessoa?’.” Bottone, que tem 34 anos e estava grávida naquele momento, apontou para a própria barriga. “Minha bebê está bem aqui”, respondeu.

Imagem do dia 6 de maio de 2011 mostra placa indicando faixas exclusivas para veículos com mais de um passageiro em San Rafael, na Califórnia. Grávida foi multada no Texas ao ser flagrada sozinha e argumentou que feto era passageiro Foto: Justin Sullivan / AFP

Um dos policiais, segundo o relato, lhe disse que tinha de haver “duas pessoas em corpos distintos” no veículo, de acordo com o jornal Dallas Morning News, que revelou a notícia em primeira mão. Ainda que o código penal do Texas reconheça um feto como pessoa, o Código de Trânsito do Estado não reconhece.

“Um policial meio que tirou sarro de mim quando mencionei que se tratava de uma criança viva, de acordo com tudo o que tem acontecido com a reversão de Roe versus Wade. ‘Então não sei por que você não vê isso’, eu disse”, explicou ela ao jornal.

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Bottone recebeu uma multa de US$ 215 por dirigir sozinha em uma faixa que requer mais de um ocupante em cada veículo — uma punição da qual, segundo afirmou aos meios de comunicação locais, ela recorrerá na Justiça no próximo mês.

Ainda que o Departamento de Transporte do Texas não tenha indicado se pretende considerar alguma mudança no Código de Trânsito, o caso de Bottone poderia levar o Estado a “território desconhecido” após a decisão sobre o caso Dobbs versus Jackson Women’s Health Organization, de 24 de junho, afirmou ao Washington Post o advogado de apelações Chad Ruback.

“Considero o argumento dela criativo, mas não creio, com base na forma atual do Código de Trânsito do Texas, que esse argumento tenha capacidade de prosperar diante de um tribunal de apelações”, afirmou ele. “Dito isto, é totalmente possível ela encontrar um juiz que a premie por sua criatividade.”

“É uma situação bastante singular na jurisprudência americana”, acrescentou o advogado.

Bottone, de 32 anos, natural de Plano, Texas, não respondeu imediatamente a um pedido de comentário na manhã do sábado, 9. Não está claro se ela acionou algum advogado.

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Representantes do Departamento de Polícia do Condado de Dallas e do Departamento de Transporte do Texas não responderam imediatamente a pedidos de comentário.

Este caso ocorre num momento em que todos os cantos do país lidam com a reversão da decisão da Suprema Corte a respeito do direito ao aborto, mais de duas semanas atrás. O presidente Joe Biden proferiu um discurso emocionado na sexta-feira, anunciando uma série de medidas destinadas a impulsionar o direito ao aborto, respondendo crescentes demandas de ativistas para que ele adote uma ação mais corajosa e vigorosa.

Biden ter assinado um decreto executivo para melhorar o acesso a serviços de assistência médica reprodutiva foi uma manobra em geral elogiada por ativistas defensores do aborto, mas muitos afirmaram que isso fará pouco para ajudar mulheres em Estados onde o aborto for banido. O presidente reconheceu os limites de seus poderes executivos, classificando a decisão que derrubou Roe como “uma decisão terrível, extrema e, acredito, totalmente equivocada da Suprema Corte”.

“O que testemunhamos não foi um julgamento constitucional”, afirmou Biden. “Foi um exercício puro de poder político.”

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Texas é um entre 13 Estados que tinham “banimentos engatilhados”, destinados a entrar em vigor assim que Roe fosse derrubado, proibindo o aborto 30 dias após a nova decisão.

Foi o quase centenário banimento ao aborto no Texas que foi considerado inconstitucional no caso Roe versus Wade, uma decisão de 1973 da Suprema Corte que legalizou o aborto nacionalmente. Depois da Suprema Corte reverter a decisão sobre Roe no dia 24 de junho deste ano, por 5 votos a 4, o procurador-geral do Texas, Ken Paxton (republicano), aconselhou os procuradores do Estado a fazer vigorar a lei de 1925, que ele descreveu no Twitter como uma “lei 100% boa”. Grupos em defesa do aborto e clínicas abriram um processo argumentando que a legislação deveria ser interpretada como repelida e impraticável.

A juíza Christine Weems (democrata), do Condado de Harris, Texas, emitiu uma ordem temporária no mês passado para permitir que clínicas realizem abortos por pelo menos duas semanas sem enfrentar processos judiciais. A magistrada decidiu que o banimento anterior à decisão em Roe colocado em prática por Paxton e seus procuradores “congelaria inevitavelmente e irreparavelmente a provisão sobre abortos nas cruciais últimas semanas durante as quais o procedimento permanecerá disponível e lícito no Texas”.

A Suprema Corte do Texas deferiu a “moção temporária para assistência” garantida pela decisão de Weems na semana passada, após Paxton requisitar sua interdição.

Pessoas favoráveis a legalização do aborto protestam em Odessa, no Texas, contra proibição do procedimento Foto: Eli Hartman/Odessa American/AP

Multa foi cinco dias depois da Suprema Corte derrubar Roe

Cinco dias depois da decisão Roe vs Wade ser derrubada, Bottone estava com pressa para buscar o filho e decidiu dirigir pela faixa exclusiva para veículos com passageiros, já que “não podia atrasar nem um minuto”, segundo ela relatou ao Morning News.

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Bottone afirmou aos meios de comunicação locais que, ao tentar argumentar que seu feto era um passageiro, o policial não se mostrou aberto para o debate. “Ele falou tipo, ‘Não quero ter de lidar com isso… Senhora, a lei se refere a pessoas em corpos distintos’”, afirmou ela, segundo o jornal Houston Chronicle.

Bottone afirmou que um dos policiais lhe disse que a multa provavelmente seria cancelada se ela recorresse, mas que se incomodou com o fato da punição ter sido emitida, de acordo com o Morning News.

“Meu sangue ferveu. Como isso pode ser justo? De acordo com a nova lei, um feto é uma vida”, afirmou ela. “Sei que isso pode não importar para muita gente, mas como mulher, para mim isso foi chocante.”

Ruback disse ao Post que não sabe se o Texas ou outros Estados considerarão mudanças desse tipo aos seus códigos de trânsito.

“É inteiramente possível que Brandy peticione os parlamentares da legislatura estadual por essa mudança, mas não ouvi falar de nada a respeito”, afirmou Ruback, que não se envolveu no caso de Bottone. “Minha impressão é que ela teria ficado satisfeita se não tivesse sido multada. Mesmo assim, estamos vivendo tempos incomuns, sem dúvida.”

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Bottone disse à KXAS esperar que as leis do Texas sejam consistentes com a maneira com que as decisões judiciais reconhecem bebês ainda no útero.

“Realmente não acho isso certo, porque uma lei diz uma coisa, mas outra lei diz o contrário”, afirmou ela.

Bottone tem audiência marcada diante do tribunal em 20 de julho, data em torno da qual o nascimento de sua filha está previsto. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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