Grupos de família cruzando para os EUA deve ser nova fase de crise migratória

Funcionários do Departamento de Segurança Interna alertam que próxima onda pode ser a maior em duas décadas

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Por Nick Miroff e Maria Sacchetti

WASHINGTON - A atenção do governo Biden ao longo da fronteira com o México nas últimas semanas tem se voltado para o número recorde de crianças e adolescentes migrantes que estão cruzando para os Estados Unidos sem seus pais, a uma taxa que excede em muito a capacidade do governo de cuidar deles.

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Mas, enquanto correm para aumentar a capacidade dos abrigos para esses menores, funcionários do Departamento de Segurança Interna (DHS, na sigla em inglês) estão alertando sobre o que consideram a próxima fase de uma onda de migração que pode ser a maior em duas décadas, impulsionada por um número muito maior de famílias.

O DHS espera que algo entre 500 mil e 800 mil migrantes cheguem como parte de algum grupo familiar durante o ano fiscal de 2021, que termina em setembro, uma quantidade que igualaria ou ultrapassaria o número recorde de entradas em 2019, de acordo com dados do governo analisados pelo Washington Post. As autoridades agora estão correndo para encontrar instalações para abrigar essas famílias antes de sua liberação, além de contratar funcionários adicionais para processar um aumento nos pedidos de ajuda humanitária e de asilo.

Funcionários do Departamento de Segurança Interna dos EUA alertam que próxima onda de imigração pode ser a maior em duas décadas Foto: Herika Martinez/AFP

A estimativa se baseia naquilo que já foi um aumento vertiginoso desde que o presidente Joe Biden assumiu o cargo, em 20 de janeiro. Este mês, o número de familiares colocados sob custódia da Alfândega e Proteção de Fronteiras (CBP, na sigla em inglês) deve chegar a quase 50 mil, contra 7 mil em janeiro, mostram os dados governamentais mais recentes. O maior total em determinado mês, 88.587, foi registrado em maio de 2019, durante um ano em que mais de 525 mil migrantes chegaram como parte de algum grupo familiar.

Grupos de famílias - às vezes totalizando cerca de 400 - têm aparecido este mês ao longo das margens do rio no sul do Texas, prejudicando a capacidade da CBP de transportar, processar e cuidar de tantos pais e filhos sem deixar outras seções da fronteira sem supervisão.

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Centenas de pais e filhos têm passado horas em uma estação de processamento ao ar livre, ao lado do Rio Grande, alguns dormindo no chão enquanto esperam que os agentes os levem formalmente sob custódia.

Roy Villareal, que se aposentou no ano passado após 33 anos na Patrulha de Fronteira, disse que cerca de 40% dos detidos sob custódia da CBP agora são crianças e famílias, mas consomem de 60% a 70% do tempo, atenção e papelada dos agentes.

“A segurança na fronteira cai tremendamente por causa disso”, disse ele, observando que os traficantes de drogas muitas vezes coreografam as travessias de grandes grupos de famílias para segurar os agentes em uma área enquanto transportam os narcóticos em outra.

Embora o governo Biden diga que sua política é “expulsar” famílias para o México sob uma ordem de saúde pandêmica, os dados mais recentes da CBP mostram que se rejeitam apenas cerca de 10% a 20% dessas famílias. O restante normalmente é liberado para os Estados Unidos, com uma notificação para comparecer ao tribunal, embora Biden tenha dito aos repórteres na semana passada que as famílias “devem todas voltar”.

No final de janeiro, poucos dias após o início do mandato de Biden, as autoridades mexicanas pararam de aceitar algumas famílias rejeitadas por agentes dos Estados Unidos, principalmente no Vale do Rio Grande do Sul no Texas, citando uma nova lei de proteção à criança que limitava sua capacidade de abrigo. A regra se aplica principalmente a famílias que chegam com crianças menores de 7 anos, de modo que pais com filhos pequenos correram para aquele trecho da fronteira nos últimos dois meses, na esperança de serem rapidamente liberados para os Estados Unidos.

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O governo Biden colocou algumas famílias que chegam ao sul do Texas em voos para outros setores da fronteira, como El Paso, e dali as devolveu para o México. Mas parece não haver uma determinação formal sobre quem tem permissão para entrar nos Estados Unidos e quem é selecionado para a expulsão, o que semeia confusão e angústia entre as famílias que não tiveram sorte.

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“Não se sabe qual população é transferida para El Paso”, disse um oficial da Patrulha de Fronteira dos Estados Unidos na última sexta-feira, 2, durante uma entrevista concedida sob a condição de que não fosse identificado.

Biden enviou diplomatas ao México na semana passada, em um esforço para fazer o presidente Andrés Manuel López Obrador aceitar o retorno de mais famílias expulsas da América Central, após um acordo que enviará milhões de doses excedentes da vacina AstraZeneca contra o coronavírus dos Estados Unidos para o México.

Mas não houve nenhum anúncio formal sobre a expansão da capacidade de abrigos mexicanos, e o extraordinário volume de pessoas que chegam ao sul do Texas muitas vezes deixa os agentes americanos sobrecarregados demais para preencher a papelada. Eles começaram a entregar formulários em branco a algumas famílias e lhes pedir que depois se reportassem ao Departamento de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos, uma prática que os funcionários da CBP dizem nunca ter aplicado em grande escala.

“Nossa política continua sendo que as famílias devem ser expulsas e, em situações em que a expulsão não é possível devido à incapacidade do México de recebê-las, sejam colocadas em processo de remoção”, disse Sarah Peck, porta-voz do DHS, referindo-se ao processo de deportação.

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Embora os grupos familiares não exijam o mesmo nível de cuidado que os menores desacompanhados, eles muitas vezes demandam estadias de curta duração em abrigos depois de serem liberados, bem como transporte para seu destino nos Estados Unidos. Durante o último grande afluxo de famílias em 2019, grupos sem fins lucrativos trabalharam com autoridades federais para abrigar famílias em hotéis, tendas e armazéns convertidos, um amplo esforço de ajuda humanitária que provavelmente precisará ser intensificado mais uma vez.

Enquanto o governo Biden expulsa algumas famílias, permite que quase todos os menores desacompanhados fiquem, então alguns pais estão optando por enviar seus filhos e filhas sozinhos através da fronteira. À medida que mais famílias têm permissão para ficar, espera-se que mais pais cheguem com seus filhos, em vez de se separarem.

Cris Ramón, consultora de imigração em Washington, disse que os dados da imigração mexicana no ano passado começaram a mostrar que estava se formando uma nova onda de migração, “não muito diferente da maneira como você vê a chegada de uma frente fria”. Mas nem os Estados Unidos nem o México parecem estar preparados.

“O momento em que o sistema de fronteira entra em colapso não é hora de olhar os dados e dizer que precisamos de uma resposta”, disse Ramón. “É tarde demais. Você precisa examinar os fundamentos dos dados regionais e começar a planejar com dois ou três meses de antecedência”.

Depois que o governo Obama enfrentou um pico de migração familiar em 2014, abriram-se grandes “centros residenciais para pais e filhos”, projetados para se parecerem com dormitórios, em vez de centros de detenção. Mas os tribunais limitaram a quantidade de tempo que os menores podem passar nesses locais, e o governo há anos vem tentando decidir com rapidez suficiente sobre seus pedidos de proteção humanitária.

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Esse sistema logo ficou sobrecarregado durante a onda de 2019, e tantas famílias chegaram ao mesmo tempo que o governo Trump teve que liberá-las rapidamente para os Estados Unidos, uma prática que ele ridicularizou como “pegue e solte”. Os números voltaram a cair depois que o presidente Donald Trump expandiu o programa “Fique no México”, que exigia que as famílias em busca de asilo esperassem fora do território dos Estados Unidos, muitas vezes em campos sombrios e perigosas cidades fronteiriças onde ficavam vulneráveis a sequestradores e extorsionários.

A Fiscalização de Imigração e Alfândega (ICE, na sigla em inglês) anunciou este mês que expandirá sua capacidade de abrigar famílias perto da fronteira EUA-México para mais de 3.700 leitos nas próximas semanas, incluindo 2.500 leitos em dois centros residenciais familiares existentes no sul do Texas, mostram os registros. A ICE também converteu seus dois maiores locais de detenção familiar em centros de processamento rápido para facilitar a liberação de pais com filhos em 72 horas.

Menos de 500 membros de famílias estavam sob custódia no início de março, mas o número subiu para 1.200 nos últimos dias.

A partir do início de abril, a ICE manterá mais de 1.200 membros de famílias em quartos de hotel sob um novo contrato de quase US $ 87 milhões com uma organização sem fins lucrativos chamada Endeavors. A ICE planeja liberar as famílias dos hotéis em até 72 horas, após realizar exames de saúde, teste de coronavírus e dar acesso a roupas, refeições, lanches e ligações telefônicas ilimitadas. A ICE também coordenará com as organizações sem fins lucrativos para encontrar abrigo, comida e transporte assim que forem liberados.

As autoridades alertaram que a maioria das pessoas detidas na fronteira ainda estão sendo expulsas sob a ordem de março de 2020 do Centro para Controle e Prevenção de Doenças, sob o inciso 42 do código de saúde pública.

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Mas isso não se aplicava à maioria das famílias em fevereiro, e o percentual expulso caiu ainda mais em março. Por e-mail, uma advogada do Departamento de Justiça disse aos defensores das crianças migrantes que planejava usar os hotéis como áreas de descanso para as famílias antes de liberá-las, por causa das “circunstâncias exigentes que ocorrem atualmente ao longo da fronteira sudoeste”.

“A expectativa é que a liberação ocorra o mais rapidamente possível e, exceto em casos muito raros, a custódia não durará mais do que 72 horas”, disse a advogada do Departamento de Justiça, Sarah Fabian, por e-mail de 6 de março, de acordo com os autos do tribunal.

Um veterano ex-funcionário do DHS disse que os planos de usar hotéis esgotariam rapidamente a capacidade e o orçamento, criando “um enorme desafio operacional”.

“Se eles têm 1.500 leitos de hotel, é meio dia de chegada quando estiverem em abril”, disse o ex-funcionário, que falou sob condição de anonimato. “Você terá situações em que as comunidades locais ficarão sobrecarregadas em seus próprios abrigos e nos centros de transporte que saem da fronteira”.

Villareal, que era chefe da Patrulha de Fronteira no movimentado setor de Tucson, no Arizona, disse que os agentes estão especialmente preocupados com o fato de que a prática de liberar famílias com papéis em branco e sem um aviso para comparecer ao tribunal irá gerar mais travessias ilegais.

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Ele disse que o governo Biden está certo em olhar para as causas básicas que levam as pessoas a deixar a América Central, mas advertiu que é necessária uma “abordagem mais holística”.

“Você precisa de fiscalização e também de investimento”, disse Villareal. “Temos que reconhecer que é um grande sistema, e os esforços fragmentados atacam apenas um dos aspectos”.

“Se você protege e investe na América Central e dá às pessoas a possibilidade de solicitar asilo em seus países de origem com mais vistos de imigrante, há um benefício de longo prazo, porque isso não apenas ajudará a proteger a fronteira, mas também vai formalizar melhor a migração legal”, acrescentou. “Mas se você quer promover a migração legal, não pode simplesmente fazer uma parte e não fazer a outra. Você tem que manter a segurança das fronteiras para ter uma estrutura de migração legal mais humana e robusta”.

Os pedidos de asilo e apelos humanitários de famílias liberadas da custódia irão se somar ao que já é um sistema de tribunal de imigração entupido por um acúmulo de mais de 1 milhão de casos. Dos cerca de 1 milhão de membros de famílias levados sob custódia pela CBP entre 2014 e o início de 2020, cerca de 6% foram repatriados para seus países de origem ou tiveram saída confirmada, e cerca de 5% receberam alguma forma de status legal, de acordo com estatísticas do DHS.

Os casos dos 89% restantes permanecem sem solução, entre eles 67% cujos pedidos estão pendentes e 20% que foram condenados a deixar o país, mas não têm saída confirmada, mostram os números / Tradução de Renato Prelorentzou.

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