KHERSON - A posição das forças armadas russas na trincheira em Kherson foi abandonada por cerca de três semanas – desde que as forças da Ucrânia venceram uma batalha e empurraram os russos para mais longe, nesses vilarejos fora da cidade de Kherson, no sul da Ucrânia. O que resta é um veículo blindado queimado, maços de cigarros vazios, vários potes de vegetais em conserva fechados e outros itens que os russos deixaram para trás.
Alexander, o comandante do batalhão ucraniano na área, pegou a comida e apontou a rotulagem ucraniana. “Estes provavelmente foram roubados dos aldeões”, disse ele.
Ele atravessou o túnel de terra e levantou um par de valenki – um tipo tradicional de botas de feltro que muitos russos usam em suas casas de campo no inverno. Estava enojado que os soldados invasores tivessem a audácia de se aconchegar aqui.
Uma troca de tiros de artilharia pode ser ouvida à distância – um lembrete de que, embora os ucranianos tenham expulsado os russos, a linha de frente se moveu minimamente nas semanas seguintes.
A cidade portuária de Kherson, no Mar Negro, ao norte da península da Crimeia, anexada à Rússia, foi a primeira grande cidade ocupada pelos russos na guerra. Nos quase dois meses desde então, as forças ucranianas lançaram vários contra-ataques e recuperaram algumas aldeias na região. Mas mesmo quando os combates entram em uma nova fase – a Rússia disse que sua “operação militar especial” agora se concentrará na região leste de Donbas, na Ucrânia – a cidade de Kherson continua sendo uma área chave no sul do país sob controle russo.
E com os militares russos e ucranianos parecendo estar em posições defensivas, é improvável que Moscou abandone o controle a curto prazo.
Quando o presidente russo, Vladimir Putin, anunciou a invasão da Ucrânia, ele afirmou que os “planos de Moscou não são ocupar” o país. Mas as forças russas ergueram a bandeira tricolor sobre o prédio da administração regional de Kherson. A ombudsman de direitos humanos da Ucrânia, Liudmila Denisova, escreveu no Facebook que Moscou planeja realizar um referendo na área em maio para tentar legitimar que as pessoas desejam se separar da Ucrânia. O Kremlin empregou uma tática semelhante com um referendo disputado na Crimeia após a invasão em 2014 e subsequente anexação.
“No início, eles tentaram atacar nossas posições usando veículos blindados, tanques e artilharia”, disse Alexander, que forneceu apenas o primeiro nome e patente à reportagem do Washington Post, de acordo com as regras de segurança dos militares ucranianos.
“Mas agora eles pararam de fazer isso”, acrescentou. “Eu acho que é porque eles estão esperando. Eles provavelmente entendem agora que não têm chance de controlar toda a Ucrânia.”
Nos primeiros dias da guerra, as forças russas que estavam baseadas na Crimeia rapidamente superaram as tropas ucranianas em menor número em Kherson e capturaram a cidade de cerca de 300 mil habitantes e grande parte dos arredores. A suspeita de Alexander é de que os russos não tentem avançar de suas posições agora. Em vez disso, eles vão se entrincheirar, forçando a Ucrânia a manter algumas forças na região sul, mesmo que as principais batalhas se desloquem para o leste do país.
Mas a área também tem importância a longo prazo para Moscou. Inclui o Canal da Crimeia do Norte, com 402 quilômetros de extensão, que liga a Crimeia ao rio Dnieper, na Ucrânia. O canal era a principal fonte de água da Crimeia até que Putin o anexou em 2014 e a Ucrânia construiu às pressas uma barragem para bloquear seu fluxo. Desde então, passados oito anos, a resultante escassez de água na Crimeia tem sido um ponto de tensão entre a Rússia e a Ucrânia.
O controle de Kherson também oferece aos russos uma outra ligação terrestre importante entre as bases militares na Crimeia ao leste da Ucrânia. “Neste momento, as tropas russas estão tentando se reagrupar e criar algum tipo de canal logístico para abastecimento”, disse Alexander.
Alexander estava participando de um programa de treinamento na base do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA em Quantico, Virgínia, quando a Rússia atacou seu país em 24 de fevereiro. Em duas semanas ele estava no campo de batalha da Ucrânia e eventualmente chegou em Kherson para lutar no norte da região.
Na semana passada, ele dirigiu por uma estrada lamacenta para visitar o posto agora deserto dos russos, onde eles haviam montado um ponto de controle de trânsito. Andando pela trincheira, ele vasculhou o que foi deixado para trás, incluindo roupas, um vaso sanitário que provavelmente foi saqueado da vila próxima e uma garrafa de vodca vazia. “Você pode ver aqui o estilo de vida russo típico”, disse Alexander. “Eles sempre bebem vodka.”
Guerra na Ucrânia
Em uma casa próxima, Nikolai e Liudmilia, um casal de aposentados próximos aos 60 anos de idade, mostraram o telhado danificado pelo bombardeio da artilharia russa. Enquanto os ataques continuam ao redor, eles dormem no porão de um vizinho – mesmo depois da vila ser libertada da ocupação russa. Pela manhã, voltam para casa para alimentar seus animais de fazenda e cuidar do jardim de tulipas, que de alguma forma sobreviveu ao bombardeio.
Nikolai aprendeu a dizer a diferença entre fogo de entrada e de saída, mas ele ainda se encolhe a cada explosão que pode ser ouvida. “Não se preocupe, eles estarão cada vez mais longe em breve,” Alexander disse ao casal. “Vamos empurrá-los de volta.”
Na cidade de Krivi Rih, cerca de 48 quilômetros ao norte da fronteira da região de Kherson, milhares de pessoas que saíram da cidade maior aguardam exatamente isso. Larisa Sidorenko, que administra um centro para refugiados, disse que a maioria das pessoas de Kherson que passam pelo centro fica em Krivi Rih em vez de se mudar para o oeste do país - considerado mais seguro porque fica mais longe da fronteira russa. Eles continuam otimistas de que os militares ucranianos prevalecerão e que poderão voltar para casa em breve, disse ela.
Anna Latanishina, 36, fugiu de Kherson com uma família de 12 pessoas no total no primeiro dia da guerra. Desde então, ela se tornou a chefe de um dormitório Krivi Rih que foi convertido em um lar para os refugiados. Ela pediu às 56 crianças do prédio que fizessem desenhos representando seu amor pela Ucrânia e depois as exibiu no saguão.
Vários dos desenhos mostram tanques verdes com bandeiras ucranianas. Uma criança desenhou um coração – metade azul e a outra metade amarela, as cores da bandeira – e escreveu “83 quilômetros” no topo. Latanishina disse que é a distância entre krivi Rih e a cidade de Kherson.
Embora Latinishina tenha feito uma cara alegre para seus próprios filhos, assegurand que Krivi Rih é um lar temporário, quase dois meses de guerra a forçaram a aceitar que sua cidade natal pode estar perdida para ela por muito mais tempo do que ela esperava.
“Tenho certeza de que não poderemos voltar este ano”, disse Latanishina. “Comecei a dizer à minha irmã: ‘Aprenda a amar esta cidade e imagine-se aqui’. Porque não voltaremos para casa em Kherson em breve”.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.