Guerra da Rússia na Ucrânia transforma o Ártico em campo de batalha entre Moscou e a Otan

Conflito colocou as fronteiras congeladas entre a Noruega e a Rússia em alerta máximo, ao mesmo tempo em que aumentou a importância geoestratégica do Ártico

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Por Emily Rauhala

VARDO, Noruega — Os policiais trajando agasalhos leves pareciam nervosos quando cutucaram a janela do nosso carro alugado. Eles imaginavam o que nós estaríamos fazendo aqui, nesta ilha tão ao norte do Círculo Polar Ártico, a 6,5 mil quilômetros de Washington e perto de onde a Rússia estaciona alguns de seus mais sofisticados submarinos. Haveria alguma razão para estarmos tirando fotos das enormes estações de radar brancas instaladas na Noruega para vigiar a península russa de Cola?

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“Estamos checando tudo em virtude da situação política”, afirmou um dos policiais.

Há vários anos, autoridades de segurança e inteligência europeias e americanas têm mantido uma vigilância maior na faixa do planeta localizada ao norte do Círculo Polar Ártico, sabendo que o gelo polar derreterá abrindo novas rotas de comércio, impulsionará uma corrida por recursos naturais e reformulará a segurança global. Autoridades ocidentais viram a Rússia reativar bases militares da era soviética e a China planejar uma “Rota da Seda Polar”.

Vardo, na Noruega, abriga os radares Globus I, II e III financiados pelos EUA. Foto: Sébastien Van Malleghem/The Washington Post

Mas a guerra na Ucrânia e a dramática deterioração nas relações do Ocidente com Moscou colocaram os gelados territórios fronteiriços entre Noruega e Rússia em alerta elevado, ao mesmo tempo que elevaram a importância geoestratégica do Ártico.

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O resultado é um incremento no interesse militar, diplomático e de inteligência capaz de engendrar uma reencarnação do “Grande Jogo”, a competição do século 19 entre os Impérios Britânico e Russo por influência na Ásia.

Em razão da guerra na Ucrânia ter diminuído as forças militares convencionais da Rússia e estropeado sua economia, os armamentos russos no Ártico tornaram-se mais críticos. “O Ártico adquire importância porque as bombas nucleares são importantes”, afirmou o major-general Lars Sivert Lervik, comandante do Exército norueguês.

Enquanto isso, a Otan aumentou sua presença no norte, com a Finlândia e possivelmente a Suécia em seguida juntando-se à sua vizinha Noruega na aliança.

Nesta primavera (Hemisfério Norte), um porta-aviões dos Estados Unidos aportou na Noruega pela primeira vez em 65 anos, fazendo uma escala em Oslo antes de participar de exercícios com os aliados da Otan no norte. Por volta da mesma época, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, fez um giro pela região e anunciou que os EUA reabrirão um posto diplomático em Tromso, uma cidade costeira no Ártico norueguês. O diplomata americano com chegada prevista para o próximo mês será o primeiro instalado na região desde os anos 90.

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Dramas diplomáticos e intrigas não faltam.

Edifício-sede do Secretariado do Conselho do Ártico em Tromso Foto: Sébastien Van Malleghem/The Washington Post

O Conselho Ártico, um fórum intergovernamental que promove cooperação, está alvoroçado porque sete de seus países-membros se recusam a cooperar em nível político com o oitavo integrante do grupo, a Rússia, o que prejudica a cooperação em relação a temas críticos, como mudanças climáticas.

No ano passado, os meios de comunicação noruegueses noticiaram drones perambulando por aeroportos e instalações de processamento de petróleo e gás natural, expulsões de diplomatas suspeitos de espionagem e o caso de um homem acusado de coletar dados de inteligência ilegalmente passando-se por um pesquisador brasileiro a serviço de uma universidade norueguesa.

Para os aliados da Otan, “o amarelo piscante virou sinal vermelho, e nós precisamos dar mais atenção” à situação, afirmou uma graduada autoridade dos EUA que conversou com a reportagem sob condição de anonimato para discutir o pensamento da aliança. “Os países precisam compartilhar mais informações a respeito de ações desestabilizadoras, sobre coisas que lhes pareçam estranhas; e nós precisamos ser menos ingênuos e ficar mais atentos.”

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De uma torre de vigilância próxima ao Porto de Kirkenes, jovens soldados noruegueses perscrutavam o outro lado da fronteira, a vastidão natural da Rússia, vigiando a paisagem de verão de colinas redondas e pinheiros baixos — uma vista que só se altera com a passagem das estações.

Em janeiro, não muito longe daqui, um homem que alegava ter abandonado o grupo mercenário Wagner, atravessou da Rússia correndo sobre o rio congelado na calada da noite polar. Desde então, afirmaram os soldados, tudo tem estado tranquilo.

Guardas de fronteira na estação de Jarfjord patrulham um ambiente natural complicado; No verão, eles viajam em quadriciclos; no inverno, eles usam motos de neve Foto: Sébastien Van Malleghem/The Washington Post

Para Lervik, o comandante do Exército norueguês, a tranquilidade na fronteira norte não é particularmente reconfortante. As capacidades militares da Rússia no norte, incluindo armas nucleares, seguem intactas e muito perigosas, afirmou ele.

As autoridades ocidentais também se preocupam com a possibilidade da Rússia bloquear rotas de frete marítimo comercial ou navios da Marinha dos EUA a caminho da Europa, particularmente em uma passagem marítima conhecida como “hiato Groenlândia, Islândia e Reino Unido (GIUK)”, a linha que separa os mares na Noruega e do Norte do Oceano Atlântico.

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“A capacidade da Rússia de perturbar o reforço é um desafio real para a aliança”, afirmou uma graduada autoridade de inteligência dos EUA, também falando sob condição de anonimato para discutir questões de segurança.

Há também preocupação de que Moscou tenha mapeado infraestruturas submarinas críticas e poder realizar sabotagens contra a Europa. No mês passado, a Otan lançou um centro para proteção de tubulações e cabos submarinos.

O diretor de política de defesa do Ministério da Defesa da Finlândia, Janne Kuusela, afirmou que o risco de confronto militar convencional no Ártico permanece baixo, mas que não descartaria a possibilidade de um conflito nos próximos anos. “Todos vemos como a Rússia está agindo”, afirmou ele.

A fronteira com a Rússia Foto: Sébastien Van Malleghem/The Washington Post

Na redação do Barents Observer, o editor-chefe do jornal, Thomas Nilsen, abriu um mapa. O jornalista apontou o local em que nós estávamos em Kirkenes, a poucos quilômetros da fronteira russa. E do outro lado, a Península de Cola, base da Frota do Norte da Marinha da Rússia e de alguns de seus armamentos aéreos e navais mais avançados, incluindo os elementos principais de sua capacidade de contra-ataque nuclear.

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Quatro mapas explicam como Suécia e Finlândia são capazes de alterar a segurança da Otan. Nilsen fez riscou a carta para mostrar o que o que a Rússia considera seu bastião e onde seus submarinos podem se esconder. Mas afirmou que está igualmente preocupado a respeito do que a Rússia está fazendo em território norueguês, tanto às claras quanto furtivamente.

“Há maneiras de mandar ‘homenzinhos verdes’ e transformar este local em uma zona-tampão para a Rússia”, afirmou ele, referindo-se a soldados armados sem insígnia de afiliação. “O jogo é esse.”

No ano passado, Nilsen fez uma reportagem a respeito de um bispo russo que quis construir uma capela próxima aos radares de Vardo — um sistema de monitoramento financiado pelos EUA que vigia a cidade há décadas. Membros da Igreja Ortodoxa Russa, que possui laços históricos com os serviços russos de inteligência, escreveu ele, também estavam interessados em estudar o abastecimento de água de Kirkenes.

Thomas Nilsen, editor do Barents Observer, em Kirkenes, Noruega x Foto: Sébastien Van Malleghem/The Washington Post

O inspetor de fronteiras norueguês Frode Berg, que passou 23 meses preso numa cadeia de Moscou sob acusações de espionagem, afirmou que a Noruega ainda não está preparada para possíveis operações russas.

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Berg, que admitiu ter cooperado com a inteligência norueguesa e viajava à Rússia como mensageiro, foi libertado numa troca de prisioneiros. Agora, de volta a Kirkenes, ele se preocupa com a falta de alarme. “Em virtude do que aconteceu comigo, eu consigo perceber espiões”, afirmou ele. “Outras pessoas fecham os olhos.”

O homem que se identificou como o pesquisador brasileiro José Assis Giammaria, de 37 anos, tinha ido a Tromso supostamente estudar a segurança no Ártico — o que fez sentido, já que Tromso é um polo de pesquisa e diplomacia sobre a região polar.

Mas quando as autoridades norueguesas o prenderam, em outubro, afirmaram que ele é, na realidade, o russo Mikhail Mikushin, de 44 anos. Seu período anterior em universidades canadenses, sugeriram as autoridades, foi parte de um esforço para desenvolver uma história de fundo para sua identidade falsa. “Nós estamos bastante certos de que ele não é brasileiro”, afirmou, no outono passado, Thomas Blom, do Serviço de Segurança Norueguês.

A prisão provocou estarrecimento em Tromso, uma cidade em que a “excepcionalidade ártica” — a ideia de que a região pode estar protegida da política — ainda surte influência.

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O especialista em assuntos árticos Marc Lanteigne trabalha na Universidade de Tromso Foto: Sébastien Van Malleghem/The Washington Post

Por mais de três décadas, pesquisadores e diplomatas radicados no norte argumentaram que o trabalho crítico de proteger o Ártico deveria se colocar à parte da política — “alta latitude, baixa tensão”, conforme gostam de afirmar os noruegueses.

Mas o caso de espionagem e a discórdia diplomática no Conselho Ártico — cujo secretariado fica em Tromso — apontaram para um ressurgimento da competição entre grandes potências na região.

“Nossa principal missão é manter o conselho intacto, sobrevivendo”, afirmou Morten Hoglund, presidente das Autoridades Sênior do Ártico, do Conselho Ártico.

Marc Lanteigne, professor associado de ciência política da Universidade de Tromso e especialista em assuntos árticos, afirmou que pode ser impossível preservar o fórum. “Se estamos lidando com um congelamento — por falta de termo melhor — de longo prazo, nós poderemos precisar de um outro fórum para discutir as mudanças climáticas e os navios atravessando o Ártico”, afirmou ele.

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“Nós de fato vamos ver mais equilíbrio de poder tácito nesta parte do mundo”, acrescentou ele. “E eu me pergunto se Tromso está pronta para isso.”

Lanteigne é membro do grupo de pesquisa Zona Cinzenta, da Universidade de Tromso, que estuda ameaças híbridas. Antes de sua prisão, Giammaria (também conhecido como Mikushin) figurou na lista de acadêmicos do grupo. Lanteigne riu da ironia de um suposto espião russo infiltrado fingir-se de pesquisador de ameaças híbridas. “Foi uma ilustração realmente interessante de como, quando falamos de segurança, a questão não é apenas segurança militar”, afirmou ele. “De repente, nós testemunhamos um exemplo gritante.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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