Quando o assunto é o Hamas, a diplomata Revital Poleg, que participou em 1993 das negociações do Acordo de Oslo, é taxativa: não há conversa ou negociação possível com o grupo terrorista islâmico.
“Estamos falando de um grupo terrorista e com terrorista não se negocia”, diz a colaboradora do instituto Brasil-Israel, em entrevista ao Estadão. “O Hamas está usando os próprios palestinos como escudo.”
A diplomata era consultora-geral do ministério de Relações Exteriores de Israel durante as assinado em 1993. A negociação previa retirada das forças israelenses da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, que passariam a ser governadas pela Autoridade Palestina. O que se seguiu a partir de então, no entanto, não foi como esperado pelos negociadores.
Israel saiu de Gaza em 2005 e, no ano seguinte, o Hamas derrotou o Fatah e assumiu o controle do enclave. A Cisjordânia seguiu sob controle formal da Autoridade Palestina e do Fatah, mas nos últimos anos os assentamentos judaicos na região cresceram e hoje um acordo que contemple a solução de dois Estados nunca esteve tão distante.
Para a diplomata, o atentado de sábado do Hamas contra Israel, que até agora deixou mais de 800 mortos, é sem precedentes e terá um efeito muito grande para a sociedade israelense.
Leia abaixo o principais trechos da entrevista.
Como a guerra tem impactado Israel neste momento?
É um pouco cedo para saber onde vamos. Esse é só o início da guerra, infelizmente. Já houve operações de vários tipos, mas desta vez é diferente e a estimativa é de que vai demorar porque estamos falando de um ataque sem precedentes.
Se olharmos só para o número de mortos, neste momento, já é o maior entre todos os conflitos anteriores. Claro que a guerra do Yom Kippur, que ocorreu exatamente há 50 anos, deixou mais vítimas em números absolutos, mas durou três semanas. Agora, em dois dias já chegamos a um número inacreditável de mortos.
Nesse sentido, o efeito para a sociedade israelense é, sem dúvida, muito grande. Cada um de nós, se não tem um familiar, tem um amigo, o familiar de um amigo [entre as vítimas]. Está muito difícil para todos, principalmente no sul, mas todo país está abalado. Eu moro na cidade de Kfar Saba, que fica bem no centro do país, e, mesmo assim, ouvimos sirenes. É muito diferente que que acontece na fronteira com Gaza, mas, a qualquer momento, pode tocar uma sirene e nós precisaremos nos proteger. Milhares de foguetes já foram disparados e isso está longe de chegar ao fim.
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A senhora enxerga a possiblidade de um cessar-fogo, de uma saída diplomática para guerra?
Neste momento, não estamos falando em processo de paz. E também depende de quem são os atores quando falamos de paz.
A Autoridade Palestina não está envolvida nisso. Mesmo com eles, os processos de paz estão praticamente inexistentes há anos, já eram muito difíceis, mas o Hamas nunca reconheceu sequer o direito de Israel de existir. Luta contra a existência de Israel e com o apoio do Irã, que também não aceita o Estado israelense. Estamos falando de coisas totalmente diferentes do que pode ou poderia acontecer com a Autoridade Palestina.
Não acho que podemos estabelecer alguma saída diplomática com terroristas, não é uma questão de querer. O ponto é que com terroristas você não fala. Há trinta anos, quando começou o processo de Oslo, havia uma intenção pelo menos, havia uma vontade. Não estamos na mesma situação. O próprio Hamas não dialoga nem com a Autoridade Palestina.
De um lado, estamos falando de um Estado legítimo, diplomático e aberto enquanto do outro temos um grupo que quer aniquilar Israel.
A Autoridade Palestina e o Hamas não são a mesma coisa. O Hamas é grupo terrorista do pior nível, não temos diálogo com terroristas.
Revital Peleg, diplomata israelense
Embora o ataque não se justifique, o cerco aos palestinos na Faixa de Gaza é apontado como um dos motivos para a escalada da tensão...
Israel saiu da Faixa de Gaza em 2005, há 18 anos, quando a Autoridade Palestina controlava a região. Essa, inclusive foi uma das primeiras áreas de gestão palestina previstas pelo acordo de Oslo. Acontece que nas eleições internas [em 2007] assumiu o Hamas, que não queria a Autoridade Palestina, queria controlar Gaza para lutar contra Israel.
E isso é terrível, porque o mundo não se lembra disso, mas o Hamas está dominando o seu próprio povo, usando os palestinos como escudos. Se escondem dentro de escolas e hospitais, de modo que os próprios palestinos sofrem. Não é verdade que Israel domina a Gaza. Temos acordos no sentido de que dezenas de milhares de palestinos estão chegando para trabalhar em Israel. É suficiente? Não é, mas é o que podemos oferecer, além do fornecimento de água e energia. Israel acha que a população palestina em Gaza está sofrendo, primeiramente, pela própria liderança. Isso o mundo tem que reconhecer.
Para o Hamas, o importante é erradicar Israel. Essa é a ideologia deles. Não é fazer o bem para os cidadãos. No início, até foi assim, ganharam as eleições assim. Mas foi um truque para chegar ao poder e mandar para fora a própria Autoridade Palestina. É uma história muito complicada, eu entendo que nem todo mundo tem esse conhecimento, mas é preciso reconhecer que se trata de um grupo terrorista, que tem promovido crimes contra humanidade.
Isso é muito triste porque a população palestina tampouco tem que sofrer. Os civis têm que viver tranquilamente, com segurança, seja em Israel ou em qualquer outro lugar do mundo. Imagina que você está na Faria Lima [em São Paulo], toca uma sirene, precisa correr para se abrigar de um foguete. Isso não é normal. Eles atacaram os cidadãos que estavam vivendo tranquilamente, que não fizeram nada, com um único objetivo de matar os israelenses.
Hoje é Israel, amanhã podem ser outros lugares, outros grupos. Terror é terror, não obedece fronteiras.
Pelo simbolismo da data do ataque e pelo fator surpresa, surgiram comparações coma guerra do Yom Kippur. É possível traçar paralelos?
Infelizmente, foi o dia seguinte aos 50 anos da guerra do Yon Kippur, que deixou muitas feridas em Israel, tem o fator surpresa que é semelhante, mas fora isso é totalmente diferente. A guerra do Yon Kippur foi entre países, entre exércitos. Aqui estamos falando de um ataque sem precedentes, injustificado, contra civis, contra pessoas comuns.
Por isso, não podemos comparar com a guerra do Yom Kippur, que foi triste, foi difícil, mas foi uma guerra entre Estados encerrada por uma negociação de paz. Aqui estamos falando de um grupo terrorista, que mata bebes, idosos, famílias inteiras. Claro que guerra é sempre horrível, mas tirando o fator surpresa, não é a mesma coisa que aconteceu no Yom Kippur.
A surpresa, inclusive, chamou muita atenção porque Israel tem um dos Exércitos mais bem preparados do mundo.
Depois temos que tentar entender de onde veio o erro, mas isso será em outro momento. Agora, estamos em guerra, há muitos mortos, muitos feridos. O ataque foi em pleno sábado, um dia de festa, era um dia tranquilo, ninguém imaginava que algo poderia acontecer. Acho que neste momento, ninguém sabe explicar. Depois vamos pensar nisso, mas agora é um momento de união.
Apesar da surpresa do ataque, o conflito escalava há meses. A comunidade internacional falhou em prevenir que chegasse a esse ponto?
Esse é primeiramente um assunto entre Israel e a Autoridade Palestina. Se chegássemos de novo ao ponto de negociar, o apoio internacional seria relevante, mas não é o caso neste momento. Quando discutimos o acordo de Oslo, foram os israelenses e os palestinos que sentaram a mesa. Outros países apoiaram, mas fora da sala. Se nós pudermos voltar a esse ponto, claro, seria o outro processo, mas só então poderíamos discutir a cooperação internacional necessária. A situação mudou muito nesses 30 anos, mas o conflito ficou e, agora, em dias de guerra, não dá para pensar nisso.
O que mudou nesses 30 anos? Como estamos agora diante de um novo conflito?
Para lembrar, o ponto de partida, foi a Conferência de Barcelona, de 1991, que embora não seja considerada um grande sucesso, foi ali que entendemos que era o momento de diálogo. Foi a partir daí que começou o processo que culminou em 1993. Os dois lados estavam dispostos e, mesmo assim, não foi fácil, não era um diálogo de amigos, era um diálogo duro, em que cada um tinha que guardar as suas posições. E foi um longo processo.
A Autoridade Palestina é um resultado do processo. Hoje não parece, mas há 30 anos foi uma mudança grande. Foi estabelecida a Autoridade Palestina, o Parlamento, e algumas cidades passaram a ser autogovernadas, o que representava certa autonomia para os palestinos. A ideia era que dentro de cinco anos poderíamos chegar a uma solução.
Infelizmente a promessa de abandonar o terrorismo, não se cumpriu. Houve uma onda de violência que causou muita resistência de Israel, especialmente por parte da direita israelense, contra o processo de negociação. Até que chegamos em um ponto que primeiro-ministro Yitzhak Rabin foi assassinado [morto a tiros em 1995 por Yigal Amir, um judeu de extrema direita]. Isso praticamente encerrou o processo, não chegamos onde gostaríamos.
Como a guerra muda o cenário regional a partir de agora?
O Oriente Médio não é monolítico, nunca foi, e mudou muito nos últimos anos. Israel passou a ter relações diplomáticas que nunca teve. Primeiro, claro, com o Egito, em 1979, depois com a Jordânia, em 1994, como resultado imediato dos processos de Oslo. Já foi uma mudança enorme e, nos últimos anos, em 2020, foram assinados acordos com os países do Golfo, com Marrocos. Acho que isso não será afetado pelo conflito. Espero que essas relações sejam mantidas.
Tem também a Arábia Saudita, que está em processo de negociação, mediado pelos EUA, para estabelecer relações diplomáticas com Israel. Essa é a nova realidade, não só para os israelenses, mas para o mundo. Ainda não sabemos, mas há indícios de que o Irã estaria por trás do que acontece agora em Israel. Acho que um dos motivos para o Hamas promover esse ataque, incentivado por Teerã, foi justamente a possibilidade de acordo com a Arábia Saudita. Eles querem impedir isso.
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