THE WASHINGTON POST, PORTO PRÍNCIPE - Dezenas de pessoas foram mortas durante os últimos dias de confrontos violentos entre gangues rivais em Cité Soleil, a maior favela de Porto Príncipe, e milhares mais ficaram presas dentro de casa, sem comida ou água, vítimas da crescente insegurança e crises humanitárias na sitiada nação caribenha.
Enquanto as gangues se enfrentam do lado de fora, Florient Clebert, seus quatro filhos e uma filha estão presos dentro de casa há dias. Eles viram vários vizinhos serem mortos. Seu irmão foi baleado na cabeça na semana passada e não pôde ser tratado em um hospital.
Agora a família está ficando sem comida. Clebert, professor substituto desempregado de 39 anos, não conseguiu ir ao banco para sacar dinheiro. Enquanto isso, as forças do governo parecem não fazer nada. “Somos as massas e estamos abandonados”, disse ele ao The Washington Post na quinta-feira, 14, com a voz trêmula enquanto os tiros soavam ao fundo.
Jöel Janéus, prefeito de Cité Soleil, disse que muitos dos mortos ainda não foram contados, mas mais de 50 pessoas foram mortas e mais de 110 ficaram feridas desde que a atual onda de violência eclodiu na semana passada. Ele disse que as gangues queimaram a maioria dos corpos, e muitas famílias têm poucas respostas sobre o paradeiro de seus entes queridos.
O gabinete do primeiro-ministro Ariel Henry e o Ministério do Interior entraram em contato com autoridades locais, disse Janéus ao The Washington Post, mas tomaram poucas medidas para acabar com o derramamento de sangue. Ele disse que gastou dinheiro do próprio bolso em comida e água para os moradores porque o gabinete do prefeito não tem dinheiro.
Janéus disse que ele estava escondido. “Estou recebendo muita pressão e ameaças”, disse ele.
A carnificina em Cité Soleil, uma comunidade de mais de 260 mil pessoas na baía de Porto Príncipe, é parte de uma onda de violência e sequestros por gangues armadas em meio à instabilidade política agravada após o assassinato ainda não resolvido há um ano do presidente Jovenel Moïse.
As Nações Unidas disseram esta semana que 1,5 milhão de pessoas em Porto Príncipe estão presas, “privadas de serviços básicos e de sua liberdade de movimento”, pela violência das gangues. O Conselho de Segurança da ONU deve votar na sexta-feira sobre a extensão de sua missão política no Haiti.
A violência em Cité Soleil eclodiu na semana passada entre coalizões de gangues em guerra: G-Pèp e G-9, uma federação de nove gangues liderada por Jimmy Chérizier. Os Estados Unidos impuseram sanções a Chérizier, um ex-policial que atende pelo apelido de “Barbecue” (”churrasco”, em inglês), por supostamente liderar grupos armados em “ataques coordenados e brutais em bairros de Porto Príncipe”.
Em um vídeo compartilhado nas redes sociais nesta semana, Chérizier segurava uma arma longa e proclamou: “A luta para libertar o país está lançada contra sequestradores e ladrões”.
A Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos do Haiti disse que mais de uma dúzia de pessoas desapareceram em Cité Soleil e que mais de 120 casas foram destruídas por incêndio criminoso ou por máquinas pesadas que, segundo ela, o Centro Nacional de Equipamentos forneceu ao G-9.
Kington Louis, diretor geral do National Equipment Center, disse ao The Washington Post que as alegações são falsas. Ele disse que um dos carregadores do centro foi sequestrado pelas gangues que assassinaram o motorista quando ele se recusou a fazer o que eles exigiam.
A Médicos Sem Fronteiras pediu às gangues que poupassem os civis. A organização disse que as necessidades de comida, água e assistência médica são agudas no Brooklyn, um bairro isolado de Cité Soleil de onde moradores não podem sair desde 8 de julho.
“Ao longo da única estrada para o Brooklyn, encontramos cadáveres em decomposição ou sendo queimados”, disse Mumuza Muhindo, chefe da missão do grupo no Haiti, em comunicado. “Podem ser pessoas mortas durante os confrontos ou tentando sair que foram baleadas. É um verdadeiro campo de batalha”.
Um terminal de combustível perto de Cité Soleil suspendeu temporariamente as entregas nesta semana, agravando a escassez de combustível em todo o país e provocando protestos que bloquearam as principais estradas da capital. As entregas de combustível foram retomadas na quinta-feira.
Janéus, o prefeito, foi pessoalmente afetado pela crescente insegurança. Em novembro, bandidos armados invadiram sua casa em Croix-des-Bouquets, um bairro a leste de Porto Príncipe que é um reduto da notória gangue 400 Mawozo, e sequestraram sua esposa.
Amigos, familiares e moradores de Cité Soleil ajudaram-no a recolher o resgate de US$ 40.000 (cerca de R$ 216 mil) que a gangue exigiu. Janéus disse que negociou com Germine “Yonyon” Joly, líder dos 400 Mawozo, que comandava as operações da quadrilha de uma prisão de Porto Príncipe pelo celular.
Joly foi transferido para os Estados Unidos em maio para enfrentar acusações por seus supostos papéis em uma conspiração criminosa para violar as leis de exportação dos EUA por contrabando de armas de fogo para o Haiti e uma conspiração para cometer o sequestro de 17 missionários de uma organização de caridade americana com sede em Porto Príncipe no ano passado.
“Meus três filhos estão agora nos EUA”, disse Janéus, “mas minha esposa está comigo no Haiti. Embora ela esteja vendo um psicólogo, ela ainda está instável desde o sequestro”.
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