THE NEW YORK TIMES – Confesso que, enquanto observador de longa data do conflito árabe-israelense, eu evito agressivamente tanto os ativistas “Do rio até o mar” da esquerda pró-palestinos quanto os similarmente fanáticos partidários da extrema direita sionista que defendem a “Grande Israel” — e não apenas porque considero abomináveis suas visões exclusivistas para o futuro, mas também porque o repórter dentro de mim percebe sua cegueira para as complexidades do presente.
Eles não pensam na mãe judia que me contou em Jerusalém de um único fôlego que havia acabado de conseguir uma licença para portar armas de fogo para proteger seus filhos do Hamas; e então como ela confiava no professor palestino-árabe de seus filhos, que levou as crianças para o abrigo antibombas da escola durante um ataque aéreo recente do Hamas. Eles não pensam em Alaa Amara, o comerciante árabe-israelense de Taibe que doou 50 bicicletas de sua loja para crianças judias que sobreviveram ao ataque do Hamas contra suas comunidades fronteiriças, em 7 de outubro, teve seu comércio incendiado dias depois aparentemente por jovens árabes-israelenses nacionalistas linha-dura e viu uma campanha de crowdfunding organizada em hebraico e inglês levantar mais de US$ 200 mil para ajudá-lo a reconstruir aquela mesma loja dias depois.
Ao longo dos últimos 50 anos, eu vi palestinos e israelenses fazerem coisas terríveis uns aos outros. Mas este episódio que começou com o ataque selvagem do Hamas contra israelenses, incluindo mulheres, crianças pequenas e soldados, em comunidades na região vizinha à fronteira de Gaza e a retaliação israelense contra os combatentes do Hamas com base em Gaza que também matou, feriu e deslocou tantos milhares de civis palestinos — de recém-nascidos a idosos — é certamente o pior desde os tempos do Plano de Partilha da Palestina proposto pela ONU em 1947.
Mas defensores de todos os lados que leem esta coluna sabem que eu não estou aqui para anotar o placar. Meu foco sempre foi encontrar uma saída para que esse show de horror olho por olho, dente por dente acabe antes que todos fiquem cegos e desdentados.
Com esse objetivo, eu gastei bastante tempo da minha viagem a Israel e Cisjordânia este mês observando e investigando as verdadeiras interações cotidianas entre árabes e judeus israelenses. Essas experiências são sempre complexas, certas vezes surpreendentes, ocasionalmente deprimentes e, com mais frequência do que alguém possa pensar, inspiradoras. Porque revelam sementes de coexistência espalhadas por todo lado e suficientes para que ainda possamos sonhar o sonho impossível: que algum dia possa haver uma solução de dois Estados para os israelenses e os palestinos que vivem entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão.
Portanto, nesta semana da Ação de Graças, eu lhes peço para reservar alguns instantes aqui comigo, para refletirmos sobre essas pessoas e alguns atos extraordinários de resgate que elas praticaram em 7 de outubro — que lhes darão mais fé na humanidade que as manchetes em torno desta história jamais sugeririam.
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Para colocar de outra maneira, um amigo certa vez descreveu minha visão de mundo como um cruzamento entre Thomas Hobbes e Walter Mondale. Por vários dias durante a minha viagem, eu permiti ao Mondale dentro de mim perseguir lampejos de esperança irradiando na escuridão.
Esse processo começou assim que cheguei em Tel-Aviv, quando me sentei para conversar com Mansour Abbas, provavelmente o líder político israelense mais corajoso da atualidade. Abbas é um árabe-palestino e cidadão de Israel que calha de ser muçulmano e membro do Parlamento israelense, onde ele lidera o importante partido Lista Árabe Unida. A voz de Abbas é ainda mais vital neste momento porque ele não respondeu ao terrorismo do Hamas com silêncio. Abbas entende que, mesmo que seja correto ultrajar-se com a dor que Israel inflige nos civis de Gaza, reservar toda a nossa indignação para a dor de Gaza cria suspeições entre judeus de Israel e de todo o mundo, que notam quando nenhuma palavra é pronunciada a respeito das atrocidades do Hamas que desencadearam esta guerra.
A primeira coisa que Abbas me disse a respeito do massacre do Hamas foi: “Ninguém pode aceitar o que aconteceu naquele dia. E nós não podemos condenar este ato e dizer ‘mas’ — esta palavra, ‘mas’, tornou-se imoral.” (Pesquisas recentes mostram uma condenação esmagadora da comunidade árabe-israelense ao ataque do Hamas.)
Abbas percebe as complexidades experimentadas por aquela mãe judia de Jerusalém que nunca perdeu a confiança no professor árabe-israelense de seus filhos e aquele dono de loja de bicicletas que imediatamente estendeu a mão para aliviar a dor de crianças judias que não conhecia. Ao mesmo tempo, contudo, Abbas falou a respeito da dor excruciante que árabes-palestinos e beduínos israelenses sentem ao ver parentes seus castigados e mortos em Gaza.
“Uma das coisas mais difíceis hoje é ser árabe-israelense”, disse-me Abbas. “O árabe-israelense sente a dor duas vezes — uma como árabe, outra como israelense.”
Há uma peculiaridade nessa vizinhança: se a gente olha somente para um ou outro grupo através de um microscópio, dá vontade de chorar — o massacre brutal de judeus, a maneira terrível que os colonos supremacistas judeus tratam os palestinos; a lista é infinita. Mas se olhamos para essas histórias através de um caleidoscópio, observando a complexidade de suas interações, é possível ver a esperança. Se você quiser noticiar de maneira correta a realidade de israelenses e palestinos, sempre leve um caleidoscópio no bolso.
O que me traz às histórias dos árabes beduínos israelenses e o 7 de Outubro.
Cerca de uma semana após o início da minha viagem, eu recebi um telefonema do meu amigo Avrum Burg, ex-presidente da Knesset israelense, cujo avô era rabino-chefe de Hebron em 1929. Ele me contou que seu amigo Talab el-Sana — um árabe beduíno israelense que serviu com ele na Knesset e deu o voto de Minerva que formou a maioria que permitiu a Yitzhak Rabin fazer o acordo de paz de Oslo — queria me levar para conhecer alguns “beduínos virtuosos”; cidadãos de Israel de língua árabe, muçulmanos, mas fluentes em hebraico, que tinham desempenhado papéis heróicos salvando judeus do ataque do Hamas.
Se você quiser noticiar de maneira correta a realidade de israelenses e palestinos, sempre leve um caleidoscópio no bolso
Os beduínos israelenses são uma comunidade nômade que reside principalmente no Deserto do Negev e formam parte da minoria árabe-israelense — 21% da população do país — que se espalham por cidades e vilarejos de Israel. Atualmente aproximadamente 320 mil beduínos vivem em Israel, cerca de 200 mil em comunidades reorganizadas pelo governo e outros 120 mil em favelas improvisadas e não reconhecidas. Muitos beduínos serviram ao Exército israelense, com frequência como rastreadores, em razão de seu profundo conhecimento da geografia decorrente de gerações vagueando pelo deserto.
Bem, acontece que alguns beduínos israelenses que viviam próximo da fronteira ou trabalhavam em comunidades da região atacada pelo Hamas ajudaram a resgatar judeus; alguns beduínos foram sequestrados pelo Hamas junto com judeus e outros foram assassinados pelo Hamas porque o grupo terrorista optou por tratar todos que vivessem ou trabalhassem nos kibutzim israelenses e falassem hebraico como “judeus” — merecendo ser mortos.
E depois de 7 de outubro, alguns desses beduínos que salvaram judeus israelenses passaram a notar olhares hostis e insultos em voz baixa de judeus israelenses assumindo automaticamente que eles seriam simpatizantes do Hamas.
E todo esse tempo vítimas judias e beduínas do Hamas foram tratadas juntas em hospitais israelenses, onde quase a metade dos novos médicos é hoje árabe-israelense ou drusa, assim como 24% dos enfermeiros e aproximadamente 50% dos farmacêuticos.
Sim, um árabe beduíno israelense pode salvar um judeu israelense na fronteira de Gaza de manhã, ser discriminado por judeus nas ruas de Beersheba de tarde e gabar-se por sua filha — médica formada numa faculdade israelense — ter passado a noite em claro cuidando de pacientes judeus e árabes no Hospital Hadassah.
É complicado.
Conserto de abrigos
El-Sana e Burg levaram-me a dois vilarejos beduínos para me apresentar rapazes que tinham salvado judeus. Acompanhou-nos o urbanista israelense Ran Wolf, especialista na construção de espaços compartilhados — centros de inovação, centros culturais e mercados — para uso de judeus e árabes palestinos israelenses. Nós paramos na residência de Wolf em Tel-Aviv, no caminho, para pegar umas garrafas de água, onde ele me contou a seguinte história:
Após os foguetes do Hamas começarem a cair em Tel-Aviv em 7 de outubro, Wolf telefonou para o empreiteiro com que trabalha regularmente, Emad, um árabe-israelense de Jaffa, para lhe dizer que a porta do abrigo antibombas no porão de sua casa não fechava. “Esse problema estava acontecendo em muitos abrigos, e depois de 7 de outubro todos quiseram consertar”, afirmou Wolf. E quando perceberam que um pedreiro estava na vizinhança, seus vizinhos também lhe pediram para consertar suas portas.
“Emad é um bom amigo e se recusou a aceitar qualquer dinheiro por dois dias de trabalho”, afirmou Wolf. Tenha em mente, acrescentou ele, que Emad vive em Jaffa, ao sul de Tel-Aviv. Na guerra de 1948, o pai de Emad ficou em Jaffa e seu tio fugiu para Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza. “Então ele foi criado em Israel, mas metade da sua família vive hoje em Gaza”, afirmou Wolf. “E viu um míssil do Hamas cair a 200 metros da sua casa em Jaffa outro dia”, acrescentou.
Usem o caleidoscópio: hoje, refugiados palestinos de Jaffa que vivem sob o governo do Hamas em Gaza disparam foguetes contra palestinos de Jaffa que são cidadãos israelenses; e um deles consertou os abrigos antifoguetes de seus amigos em Tel-Aviv — de graça.
Quando nós chegamos a Rahat, a maior cidade beduína em Israel, no Deserto do Negev, El-Sana, sentado no banco de trás do carro, conseguiu contar uma história ainda mais marcante.
El-Sana contou que algumas das primeiras vítimas israelenses dos ataques de foguete do Hamas em 7 de outubro foram beduínos, muitos deles moradores de povoados não reconhecidos no Negev que não aparecem em mapas digitais. (O governo israelense não acompanhou seu crescimento populacional da mesma forma que na maioria das cidades judaicas.)
Essas localidades não têm abrigos antibombas públicos nem sirenes de alerta para proteger seus moradores quando os foguetes do Hamas começam a cair, mas — e é impossível inventar isso — El-Sana explicou que, quando o Hamas lança um foguete, o sistema antimísseis israelense Domo de Ferro traça imediatamente sua trajetória para determinar se o projétil de Gaza aterrissará num espaço povoado em Israel e matará pessoas ou em um lugar vazio ou no mar. Se o foguete rumar para algum ponto despovoado ou para o mar, o Domo de Ferro não desperdiça seus foguetes caros para interceptar projéteis baratos do Hamas.
Seis beduínos foram mortos por um foguete do Hamas que caiu no vilarejo de Al Bat — entre eles, dois irmãos, de 11 e 12 anos — porque o povoado beduíno não figura em nenhum mapa oficial de Israel presente na base de dados do Domo de Ferro, explicou El-Sana.
Enquanto isso, outros oito beduínos que trabalhavam em comunidades judaicas próximas a Gaza foram assassinados pelo Hamas e pelo menos sete beduínos, todos cidadãos israelenses, foram, acredita-se, sequestrados e levados para Gaza.
E dias depois alguns desses mesmos beduínos não hesitaram em ajudar a resgatar judeus israelenses juntamente com seus primos.
Resgate de judeus
El-Sana tinha me marcado uma entrevista no vilarejo de Al Zayada, um assentamento beduíno não reconhecido no Deserto do Negev, no lar não reconhecido de Youssef Ziadna, de 47 anos, um motorista de ônibus beduíno reconhecido por resgatar judeus em 7 de outubro. Ziadna contou que na sexta-feira, 6 de outubro, foi contratado para levar um grupo de jovens judeus para o festival ao ar livre de música trance Supernova Sukkot Gathering, em celebração ao feriado de Sucot, adjacente ao Kibutz Re’im, que é adjacente à fronteira com Gaza.
“Quando os deixei, nós combinamos que eu voltaria no sábado às 18h para pegá-los”, disse-me Ziadna. Mas no início da manhã do sábado, “eu recebi um telefonema de um deles, Amit”, que lhe pedia para ir buscá-los imediatamente, afirmou. “Eles estavam sendo atacados, ouvia-se tiros por todo lado.”
Ziadna disse que rumou imediatamente para a cena e, conforme se aproximou, viu “uma barragem de foguetes e muitos carros na direção contrária — escapando — piscando os faróis para que eu fizesse a volta. Algumas pessoas que tinham parado e saído do carro disseram que havia terroristas em Be’eri, então ‘vá embora daqui’. Eu saí do meu carro e me escondi na beira da estrada. Toda vez que eu levantava a cabeça atiravam em mim. Mas eu tinha prometido buscar essas pessoas, e estava a um quilômetro de distância”.
Ziadna afirmou que quando o ritmo dos disparos diminuiu um pouco, ele conseguiu voltar para seu miniônibus e usar o celular para se encontrar Amit e seus amigos — e qualquer outra pessoa que ele pudesse resgatar. Em vez de voltar pela estrada, onde “eu sabia que eles nos matariam”, afirmou Ziadna, “eu fui pelos campos”.
Como beduíno, Ziadna conhece intimamente o terreno que acabou salvando a todos. Ele conseguiu encontrar um atalho em meio aos campos e evitou a estrada principal, onde os terroristas do Hamas emboscavam quem fugia do festival musical. Muitos outros carros em fuga também deixaram a estrada principal e seguiram o miniônibus de Ziadna pelos campos, afirmou ele. O motorista contou para o Times of Israel, que publicou seu perfil, que levou cerca de 30 pessoas em seu veículo, cuja lotação máxima é de 14 passageiros.
Ziadna disse que, alguns dias depois, recebeu um telefonema de um número que não reconheceu, mas que acreditou ser de Gaza, e uma voz lhe disse em árabe: “Você é Youssef Ziadna? Você salvou vidas de judeus? Nós vamos matar você”. Ele relatou a ligação para a polícia israelense. Esta é apenas uma das razões, afirmou o motorista, para ele ainda precisar de telefonemas diários com um psicólogo para tentar superar o trauma de 7 de outubro.
Outro familiar em nosso encontro, Daham Ziadna, de 35 anos, afirmou que teve quatro parentes sequestrados pelo Hamas; um certamente foi morto e outros três ainda estão desaparecidos. Dois foram vistos pela última vez deitados no chão, num vídeo publicado pelo Hamas no TikTok, com dois combatentes armados ao lado. Para o Hamas, disse Daham, “todos que vivem em Israel são judeus”.
Daham disse-me que alguns dias antes tinha ido ao banco sacar dinheiro no caixa eletrônico e cruzou dois judeus israelenses na calçada. “Um tinha sotaque russo. Quando eles se aproximaram, o russo falou, ‘Eis aqui outro árabe’. Eu lhe disse: ‘Esses “árabes” de que você fala estavam na fronteira de Gaza em 7 de outubro lutando pelo o Estado israelense — defendendo judeus e árabes. E são pessoas como você que destroem o país, destilando veneno’.”
Árabes-israelenses vivem um cotidiano difícil, acrescentou ele: “Muitos judeus olham para nós como se todos fôssemos do Hamas, e quem apoia o Hamas olha para nós como se fôssemos judeus”.
A alguns quilômetros de lá, em Rahat, El-Sana me apresentou para a família Al-Qrinawi, cujos integrantes tinham sua própria história marcante para contar. O porta-voz da família, Ismail, relatou-me o drama sentado com seus primos diante de um prato gigante de arroz, frango e grão de bico.
Na manhã de 7 de outubro, conforme a notícia do ataque do Hamas se espalhou, eles souberam pelo grupo de WhatsApp da família que três primos que trabalhavam no refeitório do Kibutz Be’eri tinham sido sequestrados. Por volta das 10h, um familiar recebeu uma ligação de um número desconhecido, do telefone de uma mulher israelense chamada Aya Medan. Ela tinha encontrado um de seus primos desaparecidos, Hisham, e ambos estavam se escondendo juntos dos terroristas do Hamas no mesmo campo desértico próximo a Be’eri. Hisham usou o celular dela para pedir ajudar ao seu clã beduíno. Os outros dois primos tinham fugido em outra direção.
Seu tio, o patriarca do clã, ordenou que quatro sobrinhos fossem resgatar os parentes no Land Cruiser da família, já que normalmente leva 30 minutos para chegar à região onde eles estavam — mas não naquele dia. Eles pegaram duas pistolas e saíram a toda.
“Quando nos aproximamos, descobrimos que todas as estradas estavam fechadas”, disse-me Ismail. “Então nós fomos pelos campos e atravessamos um vale profundo para conseguir desviar. Nosso carro quase virou.”
Primeiro, “encontramos pessoas fugindo da festa”, afirmou ele. “Nós emprestamos nossos telefones para elas ligarem para os pais e garantimos que entrassem em outros carros, conduzidos por israelenses. Nós conseguimos resgatar 30 ou 40 pessoas da festa. Mas eu fiquei o tempo todo conversando com Aya, tentando localizar onde ela se escondia com Hisham”.
Estava demorando demais. Depois de duas horas e meia desviando de tiros e foguetes do Hamas, afirmou Ismail, eles conseguiram encontrar Aya e Hisham escondidos atrás de arbustos, bem próximo do Kibutz Be’eri. Eles tinham mandado uma foto de celular da área em que estavam se escondendo para facilitar sua localização. Minutos depois, relatou Aya ao Times of Israel, Hisham a tocou e disse, “Aya, eles estão aqui, eles estão aqui sim”.
Os primos abriram as portas do carro, Aya e Hisham entraram, e o clã beduíno valeu-se novamente de suas habilidades off-road para levá-los à segurança. Ou quase.
O momento mais assustador do dia, disse-me Ismail, ocorreu quando eles voltaram para a estrada principal. Eles foram parados em um posto de controle improvisado pelo Exército israelense, por soldados assustados, incapazes de distinguir à distância entre amigo e algoz. “Os soldados israelenses cercaram nosso carro, todos apontando armas contra nós. Eu gritei: ‘Nós somos cidadãos de Israel! Não atirem!’.”
Aya disse ao Times of Israel que um soldado israelense lhe perguntou se ela estava sendo sequestrada. “Não, eu sou de Be’eri, e eles vieram de Rahat nos resgatar”, disse ela.
Beduínos salvando judeus israelenses do Hamas sendo salvos por uma mulher judia de serem baleados pelo Exército israelense depois de resgatá-la… caleidoscópico.
Enquanto eu entrevistava o clã Al-Qrinawi, a família me apresentou Shir Nosatzki, uma das cofundadoras do grupo israelense Você Tem Olhado para o Horizonte Ultimamente?, que promove parcerias entre judeus e árabes. Imediatamente após saber de seu resgate, seu marido, Regev Contes, gravou um vídeo de 7 minutos em hebraico para contar a história da equipe beduína de resgate para os israelenses. Segundo o relado, o vídeo teve centenas de milhares de visualizações em Israel. Eu perguntei a Nosatzki por que eles gravaram o vídeo.
“Para mostrar que o 7 de Outubro não foi uma guerra entre judeus e árabes, mas entre a luz e a escuridão”, afirmou ela.
Antes de voltarmos para Tel-Aviv, El-Sana insistiu que fôssemos ao seu restaurante de kebab favorito em Rahat. Sentados à mesa: um beduíno israelense que tinha servido na Knesset, o neto do ex-rabino-chefe de Hebron e um colunista judeu do New York Times, de Minnesota, que trabalhou como correspondente em Beirute e Jerusalém nos anos 70 e 80 — compartilhando reflexões em uma mistura maluca de hebraico, árabe e inglês.
Entre os espetinhos de cordeiro e os pratos de hummus, nós chegamos à mesma conclusão: mesmo neste momento sombrio, nós tínhamos acabado de testemunhar algo enormemente importante — “sementes de coexistência na morte e na vida”, conforme colocou Burg, sementes que o Hamas se dedica a destruir. Essas sementes, acrescentou El-Sana, “deveriam nos dar esperança de que conseguiremos construir um futuro em comum com base em valores comuns que atravessam as fronteiras da etnicidade entre judeus e árabes”.
Eles estão certos. Essas sementes, por menores que possam ser, nunca foram mais importantes do que neste momento. Por quê? Porque esta guerra Israel-Hamas, acabe quando acabar, já foi tão traumática para todos que desencadeará o maior debate desde o plano de partilha da ONU, de 1947, a respeito da forma que as relações e as fronteiras entre israelenses e palestinos devem se constituir. Eu tenho certeza disso — porque menos que isso significará guerra permanente.
Eu já posso lhes dizer que haverá muitas vozes destrutivas nessa discussão: apologistas do Hamas, palestinos e árabes, que têm negado ou minimizado as atrocidades do grupo; colonos judeus supremacistas, ávidos para expandir sua presença não apenas na Cisjordânia, mas também, loucamente, até Gaza, e que não mostram nenhuma preocupação com o sofrimento devastador dos civis palestinos mortos na retaliação israelense; Binyamin Netanyahu, que sacrificará o futuro de Israel para permanecer no cargo e ficar fora da cadeia; e os idiotas úteis do Hamas no Ocidente, principalmente nas universidades, onde estudantes denunciam Israel e todo seu território como um empreendimento colonial enquanto entoam, “Do rio até o mar, a Palestina será livre”.
(Poupem-me da explicação segundo a qual esta frase seria um apelo à coexistência: eu estava em Beirute nos anos 70 quando ela se tornou popular e posso lhes assegurar que não se tratava de um chamado por dois Estados para dois povos. E se você tem um mantra que requer 15 minutos de explicação, você precisa de outro mantra.)
Com todas essas equipes de demolição esperando para trabalhar, nós precisaremos mais que nunca elevar as vozes autênticas da coexistência — líderes com a integridade desses beduínos israelenses prontos para fazer e dizer o que é certo não apenas quando a coisa não está fácil, mas também diante do perigo.
O que me traz de volta à Lista Árabe Unida, de Mansour Abbas.
Vozes de coexistência
Seu partido, falando amplamente, vem do mesmo braço da Irmandade Muçulmana na política palestina que o Hamas — mas em vez da violência e exclusão pregadas pelo Hamas, Abbas defende não violência e inclusão. Abbas foi um intermediador de poder importante para ajudar o ex-primeiro-ministro Naftali Bennett e o ex-ministro das Relações Exteriores Yair Lapid a forjar o governo israelense de unidade nacional em 2021. Netanyahu, sempre desagregador, derrubou aquele governo em parte com retóricas antiárabes e anti-islâmicas direcionadas a Abbas.
Abbas entende que coexistir significa dizer o que é certo — não apenas quando é difícil politicamente, mas também quando é perigoso. Depois de ver os vídeos do ataque do Hamas, na Knesset, ele declarou à emissora de rádio árabe Al-Nas: “Eu vi um pai com dois filhos entrar no abrigo antibombas ao lado de sua casa, e jogaram uma granada dentro. O pai saltou sobre a granada e foi morto, e as duas crianças se feriram, mas sobreviveram. O massacre contraria tudo que acreditamos, nossa religião, nosso Islã, nossa nacionalidade, nossa humanidade”. As ações do Hamas “não representam nossa sociedade árabe, nem nosso povo palestino, nem nossa nação palestina”.
Durante nossa entrevista, Abbas disse-me que nós precisamos de “uma nova retórica política” e não podemos ser atraídos para as jogadas do passado. “Essa narrativa ‘do rio ao mar’ não ajuda”, afirmou ele. “Isso é um erro. Se querem ajudar os palestinos, discutam uma solução de dois Estados e paz e segurança para todas as pessoas.”
É por este motivo, acrescentou Abbas, que “eu estou trabalhando em um plano que começa com o fim da guerra atual e termina com a criação de um Estado palestino contíguo a Israel”.
Abbas conhece bem as dificuldades do caminho adiante. Eu também não tenho ilusões. E concluo minha recente jornada com duas lições. A primeira é que esta guerra em Gaza está longe de terminar. Israel acredita que não haverá paz em Gaza enquanto o Hamas estiver no poder por lá.
Mas a segunda é que, da mesma forma que a Guerra do Yom Kippur produziu o alvorecer do tratado de Camp David e da mesma forma que a desumanidade da Primeira Intifada e da reação israelense levou aos Acordos de Oslo, dos horrores do 7 de Outubro algum dia surgirá outra tentativa de construir dois Estados para estes dois povos autóctones. De outra forma, esse canto do mundo se tornará inabitável para qualquer pessoa em sã consciência. Hoje há gente demais com armas poderosas demais.
E quando esse dia chegar, será necessário um construtor de pontes como Mansour Abbas — que entende a verdadeira natureza caleidoscópica dessa terra e a conexão autêntica de ambas as comunidades a ela — para germinar as sementes da coexistência que ainda estão por lá, apesar de enterradas mais profundamente que jamais estiveram. Abbas, Youssef Ziadna, a família Al-Qrinawi, Aya Medan, meus amigos Avrum, Talab e Wolf serão os resgatistas. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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