A confirmação de Alemanha e EUA sobre o envio de tanques pesados para a Ucrânia animou estrategistas militares de Kiev, que vislumbraram nas novas armas prometidas pelos aliados da Otan o potencial de definir os rumos da guerra, prestes a completar um ano. Embora comemorado, o novo pacote de ajuda ocidental ― que além dos tanques inclui sistemas de defesa antiaérea e toneladas de munição e equipamento ― não são uma garantia de sucesso no front, segundo analistas independentes, que afirmam que a vantagem tecnológica pode não ser suficiente para superar os desafios logísticos, geográficos e os números das forças russas.
“A questão central [para 2023] é: A Ucrânia conseguirá furar as defesas russas? Ela pode de alguma forma fazer a Rússia recuar, a um custo aceitável, com os novos equipamentos enviados pelos EUA e pela Otan? E se eles não conseguirem, isso significa que equipamentos ainda mais modernos serão enviados? Ou há um limite para a ajuda americana e ocidental?”, questionou Eric Gomez, diretor de Estudos de Política de Defesa do Cato Institute, um think tank americano.
Na análise de Gomez, embora a tecnologia militar enviada pelo Ocidente no atual pacote garanta às tropas ucranianas a superioridade bélica em termos de qualidade, a eficácia contra a quantidade russa, mesmo com equipamentos inferiores, pode não ser suficiente.
Em relação aos tanques, por exemplo, apontados como peças fundamentais para um avanço apoiado de tropas nas circunstâncias atuais do conflito, a Ucrânia deve contar com pelo menos 59 veículos pesados (14 Leopard 2 da Alemanha, 14 Challenger 2 do Reino Unido e 31 M1 Abrams dos EUA) ― o que equivale, aproximadamente, a quantidade de blindados em um batalhão do Exército americano. O número é maior quando somados países europeus que também enviarão seus Leopard 2, mas a entrega não deve ultrapassar em muito uma centena.
“Individualmente, eles são de melhor qualidade do que os russos tem disponível. Mas a qualidade supera os números?”, disse Gomez, acrescentando: “Com a velocidade com que equipamentos militares estão sendo danificados ou destruídos nesta guerra, quanto tempo esses novos tanques vão durar em combate?”.
Analistas militares têm dificuldades em apontar a quantidade exata de tanques destruídos no primeiro ano de conflito na Ucrânia, mas uma estimativa apresentada pela revista Forbes, em outubro do ano passado, indicava que, apenas do lado russo, cerca de 1 mil tanques haviam sido retirados de combate, forçando Moscou a recorrer a modelos mais antigos, da década de 1960, para suprir necessidades imediatas da campanha militar.
“Um pequeno número de Himars é uma boa opção, porque você consegue utilizá-los de longe, o que os torna alvos difíceis de destruir para a Rússia. Mas Bradleys [veículos blindados prometidos pelos EUA] vão estar bem no front, tentando quebrar as linhas inimigas. Eles provavelmente serão destruídos rápido”, disse Gomez.
Posições no combate
O tabuleiro do campo de batalha na Ucrânia mudou radicalmente nos últimos meses, desde que a Ucrânia lançou uma contraofensiva que retomou a região de Kharkiv e a porção ocidental de Kherson, incluindo a capital. Com o recuo das tropas russas para posições defensivas e com a chegada do inverno do Hemisfério Norte no fim do ano passado, os avanços se tornaram mais lentos, e os reagrupamentos do lado russo deixaram as defesas mais sólidas.
“Estamos diante de uma guerra que lembra a 1ª Guerra, uma guerra de trincheiras”, afirmou o professor de Relações Internacionais Gunther Rudzit, da ESPM. “Quando os tanques de combate começaram a ser empregados no finalzinho da 1ª Guerra, eles viraram o jogo. Com essa comparação, você entende o pedido desesperado da Ucrânia para a Otan enviar os tanques”, acrescentou.
Para Entender
Na estratégia da guerra, os tanques e veículos blindados enviados pelo ocidente teriam a função de abrir caminho para o avanço das tropas russas, cuidando do serviço pesado contra os tanques inimigos, posições de artilharia e posições defensivas impossíveis de se conquistar apenas com tropas de infantaria, a um custo viável. Acontece que, com a reconfiguração do território após a ofensiva de setembro, pesam contra Kiev alguns aspectos geográficos que estavam a seu favor.
“A Ucrânia vai enfrentar os mesmos problemas que a Rússia na frente sul da guerra, porque vai precisar atravessar o rio Dnieper. Concentrar tropas para atravessar o rio torna tudo que estiver ao alcance um alvo fácil para a artilharia russa que Moscou ainda dispõe. Isso limita as opções militares a uma ação mais ao norte, contra a região do Donbas”, explicou Rudzit.
Oficiais militares ucranianos há muito dizem que precisam de pelo menos 300 tanques ocidentais para fazer a diferença na guerra. Isso “são muitos tanques em nível nacional”, de acordo com uma análise na quarta-feira da Janes, a empresa de inteligência com sede em Londres.
Os militares europeus estão mantendo pelo menos 2.000 tanques Leopard 2 – e centenas de outros tipos de tanques de batalha ocidentais. Os russos também têm milhares de tanques disponíveis no que se tornou uma guerra de desgaste rápido, disse ao Washington Post David Silbey, um historiador militar da Cornell University especializado em análise do campo de batalha.
“O Ocidente nunca conseguirá uma correspondência de um para um para esses números”, disse Silbey. “Mas, dada a vantagem de qualidade do Leopard ou Abrams até mesmo sobre o tanque russo mais moderno, se o Ocidente pudesse fornecer de 500 a 1.000 tanques, isso faria uma enorme diferença para os ucranianos e para a guerra.”
Combate nos céus
Antes dos tanques, o grande alvo da cobiça ucraniana era o sistema de defesa aérea Patriot, de fabricação americana, que Kiev argumentava ser o equipamento mais necessário imediatamente, para conter os ataques aéreos de Moscou. Assim como no caso dos veículos pesados, a liberação dos Patriot foi marcada por uma negociação relutante, tanto pela análise técnica quanto geopolítica.
“O Patriot não é a melhor bateria antiaérea que existe. Ao que tudo indica, os S-400 são até mais eficientes que elas, que servem para defesa regional e não nacional”, disse Rudzit, em uma argumento muito similar ao ecoado pelo Pentágono durante as negociações. “Em um território como o da Ucrânia, duas baterias, que é o que deve ser enviado, não é suficiente para cobrir o país”.
O uso das baterias ainda não está claro. O professor aponta que uma estratégia possível é posicionar uma delas na capital, a fim de impedir bombardeios à infraestrutura crítica da maior cidade do país. A outra, no entanto, poderia ser utilizada de forma móvel, a apoiar movimentações ofensivas, protegendo equipamentos de disparos de artilharia ou ataques aéreos.
Entregando armas sem escalar o conflito
Toda liberação de um novo armamento para a Ucrânia é precedida por uma série de cálculos geopolíticos em Washington, Londres e Bruxelas. Tanto no caso dos Patriot. como dos tanques Leopard e M1 Abrams, mais recentemente, envolvem uma série de negociações intrabloco, com consultas entre os líderes ocidentais, tentando prever a reação da Rússia em cada cenário, a fim de evitar uma escalada da guerra.
Com os tanques, a solução demorou mais de uma semana pelo receio da Alemanha em tomar a dianteira no assunto. O arranjo só saiu quando os EUA atenderam à demanda do chanceler Olaf Scholz de um envio conjunto de tanques - ou seja, para os Leopard entrarem na guerra, os M1 precisariam entrar também.
Sem se referir à exigência alemã, Joe Biden mencionou nominalmente conversas com Scholz, Emmanuel Macron, Rishi Sunak e Giorgia Meloni antes de anunciar o envio dos Abrams para a Ucrânia. No mesmo discurso, o presidente americano afirmou, repetidamente, que a entrega dos equipamentos significava um apoio defensivo à Ucrânia.
“É disso que se trata: ajudar a Ucrânia a defender e proteger a terra ucraniana. Não é uma ameaça ofensiva para a Rússia”, disse Biden. E reiterou: “não há ameaça ofensiva à Rússia”.
Questões de logística
Na guerra, muitas vezes menos é mais. No caso da Ucrânia, antes da ofensiva que recuperou grandes porções de território, a maior concentração de tropas em uma faixa mais estreita que a atual facilitava a defesa, incluindo o fato das linhas logísticas mais curtas ― com tropas mais próximas, deslocar um equipamento, mantimentos ou reforços era menos trabalhoso.
Com a extensão dos domínios, esse ônus se inverteu em certa medida, uma vez que o território a ser defendido pela Ucrânia aumentou e o russo diminuiu, adensando a distribuição das tropas.
Dentro desse contexto, algumas das novas armas cedidas a Kiev, apesar de aumentar o poder de fogo, aprofundam a complexidade das operações na guerra. A eficácia dos M1 Abrams, por exemplo, dependerá da capacidade das forças ucranianas abastecerem os tanques com combustível de jato, além de outras necessidades de manutenção que podem limitar o real impacto dos blindados.
Um fator que é unanime entre os analistas é que, a medida que armas mais modernas são enviadas para Kiev, maior fica se torna a dependência de Kiev dos aliados ocidentais para manter sua campanha militar ― e essa ajuda certamente tem um teto, que começa a ser discutido.
“A Ucrânia agora é dependente da Otan. Ela não tem a capacidade de construir fábricas em seu território, destruído pela guerra, para abastecer suas próprias necessidades. Isso significa que quanto mais a guerra avançar, mais os fabricantes alemães, americanos, franceses e etc. terão que desviar mais equipamento para Kiev, desabastecendo outros aliados estratégicos, como Taiwan, e de seus próprios países. Por quanto tempo isso é sustentável?”, pergunta Gomez.
“Essa guerra está mostrando que em um conflito moderno entre grandes potências tem um consumo de munição altíssimo, o que já preocupa principalmente governos europeus sobre seus estoques. Sabe essa história de se mobilizar para a guerra? Não vai mais dar tempo”, disse Rudzit.
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