THE NEW YORK TIMES - Como muitas outras pessoas na guerra na Ucrânia, o paramédico militar Olexander Shadskikh, de 23 anos, foi forçado a enfrentar sua própria mortalidade. Mas um outro medo também veio à sua mente: E se ele for morto e o namorado dele não descobrir a tempo para conseguir comparecer ao seu funeral?
Segundo as regras do Ministério da Defesa ucraniano, o Exército tem a obrigação de informar pais e cônjuges dos soldados a respeito de suas mortes. Mas em um país que não reconhece casamentos nem uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, a regra não se aplica a casais gays. Shadskikh teme que, se ele não voltar vivo para casa, seu namorado, que ele pediu para ser identificado apenas pelo nome próprio, Vitalik, não saberá a respeito de sua morte a tempo de dizer o último adeus.
“Minha mãe não sabe que Vitalik existe”, afirmou ele. “Quero contar para ela quando voltar para casa.”
Defensores dos direitos de pessoas LGBT+ afirmaram que Shadskikh é um entre centenas — possivelmente milhares — de recrutas gays submetidos a uma ausência de direitos jurídicos que atendam eles e seus parceiros, que subitamente passou a representar um desafio palpável no período de guerra. Na Ucrânia, gays não têm direito automático de visitar um parceiro internado, compartilhar propriedade de imóveis com o parceiro, cuidar do filho do parceiro que morreu, solicitar o corpo do parceiro morto na guerra para sepultá-lo nem coletar benefícios do Estado relativos à morte do parceiro.
Mas a guerra está dando ímpeto a uma iniciativa para legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, com uma petição recentemente chegando ao gabinete do presidente Volodmir Zelenski solicitando que casais gays tenham os mesmos direitos de casais heterossexuais, incluindo direito a se casar.
“Neste momento, cada dia pode ser o último”, afirma a petição, que reuniu aproximadamente 30 mil assinaturas, o suficiente para acionar uma análise do presidente.
Para lembrar
A autora da petição é a professora de inglês Anastasia Sovenko, de 24 anos, que vive no sul da Ucrânia e se identifica como bissexual. Ela afirmou que se sentiu compelida a redigir a petição depois de ler um artigo a respeito de soldados heterossexuais que se apressam para casar com suas namoradas antes de partir para a guerra — e se sentir triste, enfurecida e frustrada em razão de casais gays não terem essa opção.
“Eles não conseguirão visitar sua alma-gêmea no hospital se algo acontecer”, afirmou Sovenko. “Se eles tiverem um filho, o filho será tirado do pai que estiver vivo, pois deve ficar com a mãe que o deu à luz. Porque segundo a lei, eles não são família. São apenas dois estranhos. E esta poderia ser sua última oportunidade na vida para se casar.”
Zelenski pode se recusar a atuar sobre a petição ou endossá-la redigindo um projeto de lei para estabelecer direitos de pessoas LGBT+ e mandá-lo para votação no Parlamento, onde seu partido, Servo do Povo, possui uma maioria significativa. Ele também pode passar o tema adiante, para debate no Parlamento. O gabinete de Zelenski não respondeu a vários pedidos de comentário.
Qualquer tentativa de mudar a lei enfrenta um enorme impedimento na Constituição ucraniana, que declara que “o casamento tem como base o livre consentimento de uma mulher e um homem”. Emendar a Constituição requer dois terços dos votos dos parlamentares.
Defensores dos direitos de pessoas LGBT+ dizem ter esperança de que Zelenski, um ex-comediante que qualifica a guerra em seu país como uma luta global pelos valores da democracia liberal e cujo país recentemente se candidatou para aderir à União Europeia, use o casamento igualitário como um tema capaz de melhorar as credenciais de liberdade da Ucrânia e ajudá-la a se aproximar do Ocidente.
Inna Sovsun, especialista em políticas públicas da Escola de Economia de Kiev que atua como legisladora pelo partido progressista Holos, de oposição e favorável aos direitos LGBT+, afirmou que o Parlamento continua profundamente dividido em relação a direitos de casais gays, com a maioria dos parlamentares indecisa a respeito do assunto. Mas ela afirmou que Zelenski poderá persuadir os céticos caso se posicione energicamente a favor da lei.
Defensores de direitos afirmaram que pessoas LGBT+ na Ucrânia enfrentam discriminação rotineiramente, apesar de não tão amplamente quanto na Rússia, e eventos em celebração ao orgulho gay têm sido acompanhados de ameaças de violência de manifestantes antigays e grupos de extrema direita.
As atitudes sociais têm mudado na Ucrânia, onde a homossexualidade deixou de ser criminalizada em 1991, mas a amplitude dessa mudança não é evidente. Milhares de pessoas dançaram nas ruas durante a Parada do Orgulho Gay do ano passado em Kiev. O movimento pelos direitos das pessoas LGBT+ foi energizado pela revolução Maidan, de 2014, que tirou do poder o então presidente ucraniano pró-Moscou e ajudou a estreitar os laços entre ativistas pró-gays e outros ramos da sociedade civil.
O tema na guerra
Uma pesquisa que entrevistou duas mil pessoas pelo telefone em maio, realizada pelo Instituto Internacional de Sociologia de Kiev, mostrou que, ao longo dos seis anos recentes, o número de ucranianos com uma “visão negativa” sobre a comunidade LGBT+ caiu de 60% para 38%. Mas uma pesquisa do Pew Research Center realizada em 2019 constatou que 69% dos ucranianos afirmam que a sociedade não deveria aceitar a homossexualidade.
Georgii Mazurashu, parlamentar do partido de Zelenski que propôs uma lei contra propaganda homossexual, afirmou que a maioria dos ucranianos se opõe ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ele afirmou que uma legislação determinando direitos a pessoas LGBT+ mandaria um “sinal alarmante para a sociedade e nossos valores tradicionais”. Aludindo à guerra, ele acrescentou, “Temos outros problemas incomparavelmente mais urgentes e sérios”.
Mas a guerra e a morte estão fazendo o tema emergir.
Oleksa Lungu, de 22 anos, afirmou que uma das decisões mais difíceis que ele já teve de tomar foi se compareceria ou não ao funeral de seu ex-namorado, Roman Tkachenko, de 21 anos, que foi morto em batalha em maio, próximo a Kharkiv. “Como eu ia explicar para a mãe dele quem eu era, o que estava fazendo por lá?”, perguntou Lungu. “Como eu conheci o Roman?”
Por fim, ele decidiu ir ao funeral.
“Não éramos casados, não estávamos em um relacionamento muito longo, então é claro que eu não estava esperando ter qualquer tipo de direito sobre o corpo dele”, afirmou Lungu. “Mas eu quis vê-lo antes dele ser enterrado para sempre.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL