Guerra na Ucrânia: Rússia quer anexações e pode enfrentar terrorismo dentro do país; leia análise

Exército russo atravessou as fronteiras do país vizinho em 24 de fevereiro, depois de Putin proferir um discurso agora considerado infame

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Por Ishaan Tharoor

THE WASHINGTON POST - Esta semana marca seis meses do início da mais recente invasão russa à Ucrânia. A guerra resultante tem dominado as manchetes internacionais, perturbou cadeias globais de fornecimento e galvanizou um novo espírito de solidariedade no Ocidente. Para muitos europeus, este momento marcou “um ponto de inflexão na história” — conforme declarou o chanceler alemão, Olaf Scholz, nas semanas iniciais do conflito.

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As dimensões morais e cruas da guerra — o desavergonhado e destrutivo avanço russo e a corajosa resposta ucraniana — abriram os olhos das elites europeias que vinham buscando acordos pacíficos com a Rússia. O que decorreu veio numa escala que não era vista no coração da Europa em décadas. E realmente colocou fim ao que Jeremy Cliffe definiu na revista The New Statesman como “o otimismo fácil dos anos imediatos ao fim da Guerra Fria”. Mas ele acrescentou que, ainda que nos movamos “na direção de algo novo”, seus contornos “ainda são nebulosos”.

O nevoeiro da guerra ainda é espesso sobre a Ucrânia. Além das paisagens recortadas por trincheiras no país e das cidades costeiras bloqueadas ou arrasadas, um confronto entre ideologias e até mesmo visões da história ainda transcorre. Resistindo a curvar-se às ambições neoimperialistas do presidente russo, Vladimir Putin, os ucranianos encontram-se na linha de frente de uma guerra global entre democracia e autocracia. Esta visão é ecoada por seus aliados no Ocidente, incluindo o próprio presidente americano, Joe Biden, que declarou em março que a Ucrânia está travando “a grande batalha pela liberdade (…) entre a liberdade e a opressão, entre a ordem com base em regras e uma outra, governada pela força bruta”.

Mães com seus recém-nascidos seguem de elevador até um abrigo antiaéreo organizado abaixo de um hospital infantil durante um alarme antiaéreo em Odessa, Ucrânia  Foto: EFE - 22/08/2022

Putin, evidentemente, vê as coisas de outra maneira. O Exército russo atravessou as fronteiras do país vizinho em 24 de fevereiro, depois de Putin proferir um discurso agora considerado infame — uma fala impregnada de ressentimento histórico e revisionismo, classificando a Ucrânia como uma nação cujo regime “nazista” atuava como peão do Ocidente.

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Putin vociferou contra a expansão da Otan no Leste Europeu e alertou sobre uma “anti-Rússia” emergindo em lugares que eram “nosso território histórico”. E isso não bastava: fazer Kiev se curvar ao jugo russo não tratava apenas de aplacar a influência do Ocidente, mas de redimir a tragédia da queda da União Soviética, que, afirmou Putin, perturbou “o equilíbrio das forças no mundo”.

O reequilíbrio imaginado por Putin não saiu da maneira que os formuladores no Kremlin pensaram que sairia. A Ucrânia resistiu bravamente à invasão e forçou as tropas russas a um ignominioso recuo após uma campanha fracassada com objetivo de capturar Kiev. Em vez de ser disciplinada, a Otan se expandiu, trazendo Suécia e Finlândia para baixo do guarda-chuva da mais proeminente aliança militar do mundo.

Nos Estados bálticos, autoridades locais começaram a desmantelar monumentos da era soviética. A guerra catalisou um processo postergado havia muito de “descolonização” da Ucrânia e de alguns de seus vizinhos, que agora parecem ávidos para extirpar os clamores impostos sobre os seus países pelo legado de submissão a Moscou.

Preço

O custo das sanções do Ocidente sobre a economia da Rússia tem sido severo: metade das reservas do país em moeda estrangeira foi congelada, centenas de empresas ocidentais se retiraram do mercado russo, e exportações cruciais de petróleo e gás natural estão agora sendo liquidadas para compradores oportunistas, a preços com desconto. As agências de inteligência dos Estados Unidos calculam que até 80 mil soldados russos podem já ter morrido nos combates. Analistas ocidentais também acreditam que a máquina de guerra russa está severamente desgastada, com estoques de munição baixando.

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Mas isso é pouco consolo para os ucranianos, que pagam um preço quase insondável para defender o direito de existência de seu país. Seis meses de guerra testemunharam milhares de mortos e milhões de exilados. As forças russas perpetraram supostas atrocidades e crimes de guerra. Agora, os russos estão entrincheirados ao longo de uma grande fatia do sul e do sudeste da Ucrânia, e analistas preveem adiante uma longa e amarga guerra de desgaste.

Seis meses após o início da guerra, a mensagem ucraniana para as elites ocidentais mudou pouco. “Tudo o que precisamos é de armas, e, se vocês tiverem oportunidade, forcem (Putin) a se sentar à mesa de negociação comigo”, afirmou o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, em uma recente entrevista aos meus colegas, reiterando os frequentes pedidos de seu país por armas e munições mais avançadas. Esse equipamento dá a Ucrânia mais poder no campo de batalha e possivelmente ocasionará negociações futuras com um regime russo mais fustigado.

Apesar de atrasos e dificuldades logísticas, esse apoio — liderado pelos EUA — tem chegado à Ucrânia. O governo Biden destinou até aqui mais de US$ 10 bilhões de ajuda em segurança a Kiev, ao mesmo tempo que coordena e mobiliza um apoio mais amplo entre a Otan e a União Europeia. De Washington a Varsóvia, legisladores acreditam que a Ucrânia deve receber as ferramentas para alcançar uma vitória militar decisiva, mesmo que esse desfecho continue não passando de uma perspectiva distante.

Menina em de um equipamento militar russo destruído na Rua Khreshchatyk, em Kiev, que foi transformada em um museu militar ao ar livre antes do Dia da Independência da Ucrânia, em 24 de agosto Foto: Dimitar Dilkoff/AFP - 20/08/2022

Mas essa persistência poderá esmorecer: Na Europa, a aproximação do inverno (Hemisfério Norte) e a sombria certeza sobre preços estratosféricos da energia levantam dúvidas sobre a capacidade do Ocidente manter nos próximos seis meses a mesma determinação em apoio ao esforço de guerra da Ucrânia que manteve no semestre recente.

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A centralidade dos EUA em ajudar a Ucrânia a manter a linha é um lembrete de que, apesar de toda a retórica a respeito da Europa entrar em uma admirável nova era, as equações do antigo século 20 ainda se aplicam: Quando se trata da geopolítica no continente, a superpotência americana desempenha um papel primordial.

Ainda assim, nenhum governo é capaz de administrar, sozinho, os choques mais amplos da guerra, que incluem sobressaltos na cadeia global de fornecimento agrícola que levam às alturas os preços dos alimentos em partes da África e pressionam governos em todo o Sul da Ásia. Como resultado, autoridades de nações não ocidentais expressam frequente espanto com o zelo demonstrado pelas capitais ocidentais, onde falar de compromissos e concessões à Rússia é um anátema. “O que mais nos intriga é a ideia de que um conflito como este está, essencialmente, sendo estimulado a continuar infinitamente”, afirmou à agência Reuters um graduado diplomata africano em Nova York.

Sem fornecimento de gás, moradoras cozinham no pátio de sua casa em Siversk, na região de Donetsk, em meio à invasão russa da Ucrânia Foto: Anatoli Stepanov/AFP - 20/08/2022

Para a frustração de diplomatas ucranianos, cada vez menos autoridades africanas defendem o óbvio argumento de que a Rússia deveria simplesmente retirar suas tropas do território soberano de outra nação. Não está claro se o isolamento da Rússia se ampliará ou se estreitará nos próximos meses. Tanto Putin quanto o presidente chinês, Xi Jinping, envolvido em sua própria escalada de confrontação com os EUA sobre Taiwan, estão planejando comparecer este ano à cúpula do G-20, que reunirá governantes das maiores economias do mundo na Indonésia.

O presidente indonésio, Joko Widodo, espera que isso não dissuadirá líderes como Biden de comparecer ao evento. “A rivalidade entre os grandes é realmente preocupante”, afirmou Widodo à Bloomberg News na semana passada. “O que queremos para esta região é que ela seja estável e pacífica, para que possamos construir crescimento econômico. E não penso apenas na Indonésia: outros países asiáticos também querem a mesma coisa.”

A estabilidade, contudo, poderia se provar esquiva. À medida que a guerra na Ucrânia se arrasta, especialistas temem um arco maior de risco e retaliação — que envolveria ataques destrutivos contra áreas civis, conspirações de assassinato e sabotagem dentro do território inimigo e a sempre presente ameaça do erro de cálculo nuclear. “Após longos seis meses de guerra”, observou o comentarista geopolítico Bruno Maçães, nos resta “a sensação de que isso é só o começo”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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