Guerra na Ucrânia se tornou primeira grande luta anticolonial do século 21; leia artigo

Ao cruzar as fronteiras da Ucrânia e abusar de sua soberania nacional, a Rússia destruiu a âncora central da ordem liberal internacional pós-2ª Guerra

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Por George O. Liber*

Em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia - membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas e o maior país do mundo - violou um dos princípios fundamentais das Nações Unidas: o respeito às fronteiras internacionais.

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Ao cruzar as fronteiras da Ucrânia e abusar de sua soberania nacional, a Rússia destruiu a âncora central da ordem liberal internacional pós-2ª Guerra, criada para estabelecer a paz mundial e resolver reivindicações rivais de territórios por novos estados emergentes na era da descolonização europeia.

A Rússia não apenas desencadeou a maior crise humanitária desde 1945, mas também o aumento radical dos preços do petróleo, gás natural e grãos em todo o mundo, especialmente nos países mais pobres da África e do Oriente Médio.

Pessoas prestam homenagem a voluntários ucranianos mortos na guerra, na Praça da Independência, em Kiev Foto: Dimitar Dilkoff/AFP - 7/3/2023

Esta guerra nunca foi sobre a incursão limitada de um país em outro, para tomar uma pequena quantidade de território físico, para defender minorias russas “oprimidas” ou para “desnazificar” o governo democraticamente eleito da Ucrânia.

Em vez disso, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, buscou – e ainda busca – a “morte do Estado” da Ucrânia, para apagá-lo dos mapas do mundo e incorporá-lo completamente em seu próprio país.

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No processo, ele também espera aniquilar o maior número possível de apoiadores da independência ucraniana. Visando a infraestrutura civil e encorajando execuções em massa de não combatentes, estupros em massa, deportações e fugas para o exterior, ele espera restaurar a Rússia não apenas como uma grande potência, mas como uma potência imperial. Esta guerra tornou-se a primeira grande luta anticolonial do século 21.

Quando a Ucrânia apareceu no cenário mundial após o colapso da União Soviética, em 25 de dezembro de 1991, tornou-se o maior Estado totalmente dentro da Europa (com 375 mil km², muito menor que o Brasil) e adquiriu o terceiro maior arsenal nuclear do mundo (depois dos EUA e da Federação Russa).

O novo Estado permaneceu altamente dependente de seu vizinho russo, prejudicado por seu legado comunista e pelas políticas imperiais russas e soviéticas do passado, forçando os ucranianos a se aculturar e assimilar a língua e a cultura russas.

Na independência, as línguas ucraniana e russa dominaram as diferentes regiões do país. A maioria das áreas de língua russa no cinturão de ferrugem no leste permaneceu mais contrária às reformas de livre mercado do que a maioria das áreas de língua ucraniana no oeste.

A independência não estabeleceu automaticamente uma identidade estatal ucraniana integrada, nem curou a polarização regional do país, como as eleições parlamentares e presidenciais entre 1991 e 2012 demonstraram vividamente.

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Farol político

Mas a Ucrânia nunca esteve à beira de uma guerra civil, como afirmaram muitos observadores estrangeiros. As diferenças regionais e ideológicas do país apresentaram problemas significativos no governo do sistema político, mas não ameaçaram necessariamente a existência do Estado ucraniano nem impediram a possível consolidação de uma democracia liberal no futuro.

Desde 1991, este Estado soberano teve eleições presidenciais, parlamentares e locais comprovadamente livres e justas, monitoradas por milhares de observadores eleitorais internacionais, incluindo eu.

Seus cidadãos elegeram seis presidentes diferentes representando diferentes partidos políticos de diferentes regiões que competiram ativamente pelos eleitores (os russos tiveram apenas três).

A Ucrânia tem uma mídia livre; todas as plataformas expressam um conjunto divergente de opiniões políticas expressas em russo e ucraniano. Há liberdade de religião sem igreja patrocinada pelo Estado.

Menina ucraniana brinca com celular em abrigo para refugiados da guerra Foto: Attila Kisbenedek/AFP - 2/3/2023

Fora dos estados bálticos, a Ucrânia tinha a sociedade civil mais vibrante da antiga União Soviética. Tornou-se um farol político para aqueles que viviam sob regimes pós-soviéticos autoritários e um lar para muitos russos liberais e belarrussos que fugiram de suas pátrias opressivas.

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Nos últimos 30 anos, os cidadãos da Ucrânia - ucranianos, sua grande população russa e de língua russa, judeus, tártaros da Crimeia e outros - diferenciaram-se da Rússia política, cultural e religiosamente.

O pluralismo político acidental estabelecido na Ucrânia pós-soviética na década de 90, a Revolução Laranja (2004) e a Revolução da Praça Maidan (2013-2014) facilitaram esse divórcio. A recusa da elite governante russa em aceitar a independência da Ucrânia ou os ucranianos como membros iguais da família mundial de nações acelerou esse processo.

A mitologização da Rússia de suas origens no passado medieval e na Rússia de Kiev (império medieval fundado pelos vikings no século 9º), sua expansão contínua por uma Eurásia em grande parte desprovida de fronteiras naturais, a emergência da União Soviética como potência mundial, o culto da Grande Guerra Pátria (como os russos chamam a 2ª Guerra) e a reabilitação de Stalin como o grande líder militar durante esta guerra reforçaram a crença popular – como Putin afirmou em 2021 – de que russos e ucranianos são um só povo.

De acordo com esse ponto de vista, “a verdadeira soberania da Ucrânia só é possível em parceria com a Rússia”. Para justificar essas alegações, a mídia controlada pela Rússia deslegitimou constantemente a Ucrânia, alegando que ela representava um “estado falido”.

A prioridade de Putin

Embora não esteja claro quantos cidadãos russos apoiam essa interpretação, essa mentalidade imperial (especialmente a ideia de que a Crimeia foi e sempre será parte da Rússia) e a nostalgia do passado alimentam o apoio popular à guerra atual.

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As noções de “privilégio” russo superam as fronteiras reconhecidas internacionalmente, a soberania nacional, a diversidade do mundo eslavo e – o mais importante – o fim da descolonização. Reviver o último império da Europa e estabelecer sua “democracia administrada” na Ucrânia continua sendo a prioridade de Putin.

A questão fundamental por trás desse conflito sangrento ainda exige uma resposta: quem determinará o futuro da Ucrânia? Os cidadãos da Ucrânia? Ou a Rússia de Putin?

Os cidadãos da Ucrânia querem manter sua independência, soberania e integridade territorial; para eles, esta não é uma questão teórica. A esmagadora maioria dos ucranianos agora vê a Rússia de Putin como uma ameaça direta não apenas contra a existência da Ucrânia, mas também contra sua própria existência física.

Cego por suas ambições imperiais, o presidente russo interpretou mal a profundidade do apoio popular a uma Ucrânia independente. Em vez de aceitar essa realidade, ele apenas se dobrou, ordenando ataques de artilharia e mísseis ainda mais brutais contra civis, semelhantes aos que ele aperfeiçoou na Chechênia e na Síria. Sua iminente ofensiva de primavera (Hemisfério Norte) promete entregar mais terra arrasada, não conquistar corações e mentes ucranianas.

Visto sob esta luz, não há compromisso diplomático no horizonte. A menos que Putin seja parado no campo de batalha ou a Rússia reduza suas ambições imperiais, a guerra continuará a produzir mais vítimas na Ucrânia e a desestabilizar as cadeias de fornecimento de energia e grãos em todo o mundo. O pior está por vir.

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*É professor emérito de História da Universidade do Alabama em Birmingham e especialista em Rússia e Ucrânia

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