Guerra quebra tabus e dá às mulheres novos papéis na Ucrânia

Novas leis colocaram fim ao banimento de mulheres em 450 funções profissionais no país, uma reminiscência da era soviética

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Por Megan Specia

THE NEW YORK TIMES - O caminho para o campo de treinamento está repleto de casas destruídas e prédios danificados, um lembrete da magnitude com que a guerra consumiu a cidade de Chernihiv, no norte da Ucrânia, poucos meses atrás. À frente da classe, uma mulher chamada Hanna lecionava diante de imagens de munições e minas terrestres não detonadas.

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Ela explicava os riscos dos campos minados e como eles são marcados. Uma mulher que compareceu ao treinamento do dia perguntou se era seguro levar seu filho de 3 anos a um parque local. “Não ande sob as árvores – é melhor não andar por lá”, afirmou Hanna, de 34 anos, aconselhando-a a se manter em áreas pavimentadas e tranquilas.

Hanna, que pediu para não ter o sobrenome revelado, por temer por sua segurança, é parte de um crescente grupo de ucranianas treinadas para neutralização de minas, atividade que, até poucos anos atrás, estava na lista de empregos que as mulheres da Ucrânia eram proibidas de exercer.

Treinamento do Grupo Mozart, uma organização de veteranos voluntários dos EUA, de ucranianas, em Kiev Foto: Emile Ducke/The New York Times - 13/7/2022

Originalmente de Mariupol, Hanna juntou-se a uma fundação suíça de desminagem dois anos atrás e depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro, ela fugiu da cidade portuária do sul e rumou para o norte. Agora, ela trabalha em cidades como Chernihiv, de onde os invasores russos recuaram desde então, para livrar de minas terrestres localidades devastadas pela guerra.

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As mulheres se tornaram uma força onipresente na Ucrânia seis meses após o início da guerra, enquanto enfrentam antigos estereótipos a respeito de seu papel na sociedade ucraniana pós-soviética.

Elas estão se alistando cada vez mais nas Forças Armadas, incluindo posições de combate, e lideram esforços de voluntariado e arrecadação de recursos. Com os homens ainda compondo a maioria das unidades de combate, as mulheres têm assumido novas funções na vida civil e administram empresas, ao mesmo tempo que cuidam de suas famílias.

“A percepção sobre as mulheres, em geral, tem sido muito paternalista”, afirmou a socióloga ucraniana Anna Kvit, especializada em estudos de gênero. “Com esta guerra que escalou em 2022, as funções das mulheres não apenas aumentaram em quantidade, mas também adquiriram maior visibilidade.”

Essa mudança transcorre já há algum tempo, afirmou Kvit, com as mulheres assumindo cada vez mais novos papéis após o início do conflito no leste ucraniano, em 2014, acelerando mudanças nos setores de defesa e segurança que abrangem toda a sociedade.

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As mulheres eram impedidas de entrar em combate, mas mesmo assim participavam da luta, apesar de não com o mesmo status nem os mesmos benefícios e reconhecimentos que os homens. “Na sociedade ucraniana, havia uma resistência, que provavelmente ainda existe, dando conta de que o Exército e a guerra não são lugares para mulheres”, afirmou Kvit.

Expansão

Leis adotadas a partir de 2018 concederam às ucranianas o mesmo status legal que os homens dentro das Forças Armadas, e a mudança impulsionou um esforço mais amplo por reformas trabalhistas inclusivas sobre gênero.

As novas legislações colocaram fim ao banimento de mulheres em 450 funções profissionais na Ucrânia, uma reminiscência da era soviética, quando certos empregos eram considerados prejudiciais para a saúde reprodutiva.

Além da neutralização de minas, a Ucrânia proibia as mulheres de exercer profissões como motorista de caminhão, soldadora e bombeira, além de impedi-las de assumir muitas funções nas forças policiais e militares.

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A vice-ministra da Defesa da Ucrânia, Hanna Maliar, afirmou que mais de 50 mil mulheres integram atualmente as Forças Armadas do país e esse número tem crescido significativamente desde que a guerra começou.

Yuliia Serdiuk (C), ferida em ataque russo, faz fisioterapia em hospital em Lviv Foto: Emile Ducke/The New York Times - 1/7/2022

Com os homens com idades entre 18 e 60 anos proibidos de deixar a Ucrânia, para que lutem contra a Rússia, as mulheres estão se voluntariando para dirigir veículos de transporte de outros países na Europa para serem usados pelo Exército ucraniano.

“Quando a guerra começou, pensei: ‘como posso ser útil’”, afirmou Yevgheniia Ustinova, de 39 anos, que integra um dos inúmeros grupos que conduzem esses veículos de transporte para dentro da Ucrânia.

Motoristas

Durante uma breve parada, em um café de Lviv, no oeste ucraniano, ela descreveu uma jornada de dois dias entre Kiev e a Polônia para buscar um caminhão e retornar. “Todos nós, homens e mulheres, estamos fazendo o que podemos”, afirmou Ustinova.

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As motoristas ucranianas têm sido bem recebidas, afirmou Maria Stetsiuk, de 35 anos, que passava por Lviv no mês passado a caminho do leste, onde ela planejava deixar um caminhão com os amigos do Exército.

No entanto, ocasionalmente, aparecem céticos no caminho, como um policial que parou Stetsiuk em uma viagem para Dnipro recentemente e perguntou por que ela dirigia um caminhão e por que ela não tinha marido. “Nunca pensei que fosse fazer algo assim”, afirmou Stetsiuk. “Mas, atualmente, todos nós, homens e mulheres, estamos nos esforçando como podemos.”

Ainda que a guerra tenha desafiado percepções sobre gênero e ampliado oportunidades para as mulheres, o conflito também surte um efeito desproporcional e brutal sobre suas vidas. Apesar de elas normalmente não morrerem em combate, estão entre as pessoas mais afetadas por deslocamentos forçados.

Voluntárias ucranianas trabalham na produção de camuflagem em Lviv Foto: Emile Ducke/The New York Times - 15/6/2022

Uma análise da iniciativa Women and Care International, da ONU, afirmou que a guerra aumentou sua necessidade de assistência significativamente e piorou desigualdades de gênero, o que preocupa especialistas.

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Yuliia Serdiuk, de 31 anos, ficou gravemente ferida em um bombardeio semanas atrás contra a cidade em que ela vive, Orikhiv, no sul da Ucrânia, na região de Zaporizhzia, localidade anteriormente pacata que acabou no fogo cruzado à medida que as forças ucranianas tentam expulsar as tropas russas. Em 8 de maio, o filho dela pediu-lhe que segurasse sua mão enquanto ele descia uma ladeira de skate.

“De repente, houve uma explosão”, afirmou ela. “Começamos a correr.” Ela protegeu o filho com o corpo. Estilhaços atingiram suas costelas, seu fígado e romperam quase totalmente sua coluna vertebral. Ela não consegue mais mover as pernas e foi transportada de trem para um hospital em Lviv, onde passa por intensa reabilitação.

Por lá, em uma tarde recente, um médico ajudou ela a sentar-se na cadeira de rodas e a levou para a fisioterapia. Sob a camiseta que ela vestia, as cicatrizes ainda eram visíveis.

Serdiuk quer voltar para casa, mesmo que sua cidade tenha sido devastada. A escola de seu filho foi totalmente destruída, do centro da cidade restam apenas escombros. Ela espera ser transferida para um hospital fora da Ucrânia para um atendimento mais avançado.

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Sua mãe, Nataliia Budovska, de 51 anos, está ao lado da filha ao longo de sua recuperação e afirmou que é difícil vê-la sofrer. “Isso despedaça meu coração”, afirmou a mãe. “Para quem não vive a guerra por dentro, pode parecer que isso é invenção. Mas é verdade. A realidade é esta.” /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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