RIO - A reunião de ministros das Relações Exteriores do G-20, que começa nesta quarta-feira, dia 21, vai testar a estratégia e a capacidade diplomática do Brasil de tentar contornar as divergências políticas no principal fórum de cooperação econômica e financeira do mundo.
O governo Luiz Inácio Lula da Silva pretende evitar que tensões entre potências e os divisões sobre as guerras entre Israel e o Hamas, no Oriente Médio, e entre Rússia e Ucrânia, no Leste Europeu, sequestrem a pauta e inviabilizem consensos ao longo do ano.
O encontro dos chanceleres, previsto para durar dois dias, é o primeiro grande momento do G-20 brasileiro e o mais importante do ano para discussão de temas de natureza geopolítica, dentre todas as reuniões preparatórias da Cúpula de Líderes, a ser realizada em 18 e 19 de novembro, também no Rio de Janeiro.
A tarefa é considerada complexa por diplomatas estrangeiros e brasileiros. Os diplomatas anteviram que as guerras representariam ameaças para a alcançar consenso. Nos bastidores, o governo admite a dificuldade e manobra para driblar o problema. Diante das tensões e divergências que estarão na mesa, o Brasil abandonou a ambição de emitir declarações de viés político ao fim das reuniões de ministros, uma praxe no G-20. A começar pela dos chanceleres.
Três diplomatas envolvidos em diferentes temas do G-20 disseram ao Estadão que o Brasil não vai mais insistir para que sejam preparadas declarações finais no âmbito dos ministros. Documentos do tipo são costurados palavra a palavra e refletem preocupações comuns de todos. Os impasses se tornaram recorrentes, e não raro o tom dos textos negociados gera insatisfações e repercute mal.
Em vez disso, a presidência brasileira se prepara para publicar no encerramento das reuniões apenas relatórios dos trabalhos, abordando as discussões. Esse relato síntese não é submetido ao aval de todos os países, mas o resumo não tem o mesmo peso político e diplomático.
Encontros diplomáticos de alto nível político costumam terminar com declarações conjuntas - e a ausência delas pode ser vista como um sinal de fracasso.
“O propósito do ministro Mauro Vieira é sim que ele faça um balanço entre os colegas ao fim da reunião, mas não necessariamente buscar uma declaração ministerial por escrito, até porque retornamos à tradição do G-20. Precisamos nos concentrar nos temas. E uma declaração não pode ser um fim em si. Nos últimos anos tem acontecido uma obsessão por declarações que impede que a gente avançe na discussão dos temas. A prioridade é discutir os temas e ter propostas para avançar”, disse Lyrio.
A declaração final de chanceleres, ao fim da reunião, era esperada para dar o tom do esboço a ser levado para posterior avaliação dos chefes de Estado e de governo. O rascunho final da Declaração do Rio, a ser publicada em novembro, começa a ser discutido para valer no segundo semestre, com novas reuniões entre sherpas e um segundo encontro de ministros das Relações Exteriores, em Nova York, à margem da Assembleia Geral das Nações Unidas.
Desafio
O Brasil quer circunscrever esses temas ao debate entre chanceleres agora no Rio - e sugere que ele seja retomado somente pelos chefes de Estado e de governo, daqui a nove meses. Propositalmente, o Itamaraty inovou e optou por antecipar a reunião dos ministros de Relações Exteriores, que passou a ser a mais relevante do início do calendário. Será a primeira em nível ministerial, antes mesmo do encontro que deu origem ao fórum, o de ministros da Fazenda e presidentes de Bancos Centrais, marcada para 28 e 29 de fevereiro, em São Paulo.
“A discussão de temas geopolíticos, da conjuntura internacional, cabe aos ministros das Relações Exteriores e depois aos próprios líderes na reunião de Cúpula”, disse o sherpa brasileiro, embaixador Maurício Lyrio. “Isso tem sido dito desde o início da presidência brasileira.”
O Itamaraty propôs aos demais países que as guerras e disputas em curso sejam discutidas apenas pelas chancelarias e deixadas em segundo plano pelos demais ministros, ao longo de mais de 100 reuniões, presenciais ou virtuais, dos 15 grupos de trabalho temáticos. Ainda não há garantia de que o País conseguirá convencer os demais a deixar de lado manifestações políticas que considerem indispensáveis levar ao âmbito do G-20.
O desafio do Brasil é destravar a pauta para as prioridades estabelecidas pelo País: inclusão social e combate à fome e à miséria; reforma da governança global; transição energética e desenvolvimento sustentável.
O G-20 tem como foco principal a cooperação econômica e financeira. Porém, assuntos de natureza geopolítica ganharam espaço na agenda nos últimos anos, seja pelo imobilismo de outros fóruns, insatisfações com as Nações Unidas ou por iniciativas de membros e, principalmente, por causa da eclosão de duas guerras e de seus efeitos no comércio exterior e na economia global.
O ministro Mauro Vieira tem minimizado as chances de as guerras comprometerem os trabalhos no G-20. Segundo ele, os conflitos serão “tema de preocupação e discussão”, mas não devem “paralisar ou dificultar” as conversas.
Preparatórias
O Brasil começou a notar as dificuldades na estratégia de isolar as guerras ao debate entre ministros das Relações Exteriores ainda no ano passado. O conflito em Gaza marcou o discurso de delegações dos países de maioria muçulmana durante a reunião de sherpas de dezembro, a primeira sob a presidência brasileira do G-20. A delegação da Indonésia, país de maior população muçulmana do mundo, usou palavras duras sobre a guerra na Faixa de Gaza, durante o encontro no Palácio do Itamaraty, aberto pelo presidente Lula.
Henrik Harboe, chefe da delegação da Noruega, um dos oito países convidados pelo Brasil, considera a abordagem aos conflitos como o maior desafio da presidência brasileira. Ele diz que não será fácil encaminhar as discussões técnicas nos grupos de trabalho, de nível ministerial em áreas diversas, como saúde, energia e meio-ambiente, sem deixar que a agenda seja capturada pela divisão global e pelas guerras. Para o norueguês, a guerra na Ucrânia teve impacto mais relevante para a economia global, mas o confronto em Gaza, além dos prejuízos nas rotas de transporte marítimo, afeta mais países do G-20 pelo apelo emocional, por causa do eco nas sociedades muçulmanas e nas comunidades árabes e judaicas em diversos países.
“Espero que o G-20 não fique paralisado”, afirmou o sherpa norueguês ao Estadão. “Que essas questões sejam mencionadas, sim, mas depois discutidas na Cúpula de Líderes e não em todas a reuniões ministeriais.”
Impasse em Bali e Délhi
Essa estratégia foi traçada com base nas experiências recentes de coordenação do G-20 na Indonésia (2022) e na Índia (2023). Nas duas últimas edições, houve uma série de impasses à agenda prioritária, contaminada pelas discussões sobre a guerra na Ucrânia. Agora, o contexto é ainda mais complexo, por causa do confronto em curso em Gaza e seus desdobramentos no Oriente Médio.
A oposição entre interesses de países ocidentais, organizados por meio do G-7 e aliados, e o alinhamento de chineses e russos travou as discussões e deliberações do G-20 indiano, em 2023, como vinha ocorrendo também durante a presidência da Indonésia, em 2022. A Índia começou a bolar resumos da presidência, para registrar reuniões ministeriais nas quais tentou, mas não conseguiu emitir declarações.
Em Bali, houve o risco de não haver uma declaração final assinada pelos líderes políticos. Apesar de aprovado, o texto expôs a discordância ao mencionar que “a maioria dos membros condenava fortemente” a guerra na Ucrânia. O trecho mencionava ainda a “agressão” da Rússia ao país vizinho e exigia a retirada total das tropas invasoras.
Em Nova Délhi, a declaração de líderes foi assinada novamente no limite, após madrugadas de negociação, e veio mais amena do que a anterior, para poder contemplar preocupações dos russos e da China. Ela não citava mais a necessidade de retirada das tropas russas, uma exigência fundamental da Ucrânia e seus aliados.
O desacordo sobre como tratar a guerra na Ucrânia opôs países do G-7 e emergentes. Foi preciso uma intervenção direta da Índia, com apoio do Brasil e África do Sul, e Indonésia e um apelo incomum de Narendra Modi, primeiro-ministro indiano, e Lula da Silva, em favor de uma declaração que poupava a Moscou.
Há na diplomacia uma visão de que o G-20 congrega países ricos e em desenvolvimento, e atualmente representa melhor o equilíbrio de forças global do que outros fóruns, como as Nações Unidas. Sinais de que Moscou e Pequim poderiam esvaziar o G-20 preocuparam o Ocidente.
A preocupação brasileira em desbloquear a pauta do G-20 ficou explícita na declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao receber simbolicamente a presidência do G-20, em Nova Délhi, na Índia. Ele disse: “Não nos interessa um G-20 dividido. Não podemos deixar que questões geopolíticas sequestrem a agenda de discussões de várias instâncias”.
A chancelaria brasileira chegou a celebrar o acordo alcançado na Índia, por considerar que a partir da Declaração de Nova Délhi existiria um ponto de partida e um denominador comum para dar seguimento aos debates. Só que o contexto global piorou com a posterior eclosão da guerra no Oriente Médio, iniciada por causa do ataque terrorista do Hamas a Israel em 7 de outubro.
Presenças e ausências
Segundo o Itamaraty, 40 delegações confirmaram presença na reunião, com chanceleres ao menos 20 ministros estrangeiros - entre ministros dos 19 países membros e os 11 convidados - e representantes de organizações internacionais. Haverá três ausências importantes, duas de gigantes da economia global, a China (2ª) e a Índia (5ª), ambos sócios do Brasil no Brics.
Estarão no Rio os chanceleres da maioria dos países do G-20 e convidados, entre eles quatro dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas: Antony Blinken (EUA), único a ser ter audiência prévia com Lula em Brasília, David Cameron (Reino Unido), Stephane Sejourne (França) e Sergei Lavrov (Rússia).
Wang Yi (China) enviará um subordinado, por já ter realizado uma recente visita ao Brasil, no mês passado. Os chanceleres da Índia, S. Jaishankar, e da Itália, Antonio Tajani, também não estarão ausentes por outros compromissos em seus países e enviarão representantes.
Os chanceleres desembarcam no Rio preparados para aprofundar essas questões, como antecipou o ministro russo Sergei Lavrov, enviado do presidente Vladimir Putin. Ele vem ao Brasil em busca de contatos bilaterais com homólogos e visitará depois Cuba e Venezuela. O ministério de Lavrov afirmou que a reunião no Rio tem como objetivo “superar a discórdia geopolítica”.
O representante do país que invadiu a Ucrânia há dois anos vai se pronunciar contra a “militarização das relações econômicas internacionais, os meios híbridos de travar guerras, o enfraquecimento da soberania e da independência dos Estados autônomos e a interferência nos seus assuntos internos”. Deverá ouvir acusações sobre a morte do opositor Alexei Navalni, numa prisão no Ártico, motivo da aplicação de novo pacote de sanções pelos Estados Unidos.
“Sergei Lavrov observará a importância especial de utilizar toda a gama de ferramentas diplomáticas, bem como formas de resolver controvérsias de forma pacífica, a fim de proporcionar uma segurança indivisível e sustentável. Considerando todas as realidades geopolíticas, instaremos os nossos parceiros do G-20 a apoiar plenamente o processo de construção de um mundo verdadeiramente democrático, multipolar e policêntrico e a aderir aos interesses legítimos de todos os países e povos”, disse a porta-voz da chancelaria de Putin, Maria Zakharova.
Formato
A reunião ocorrerá em duas sessões de debates. Os ministros se revezam com a palavra. O discurso inaugural será do ministro Mauro Vieira, que preside os trabalhos. Somente o discurso dele será transmitido. Ele também deverá dar uma entrevista coletiva no fim dos trabalhos.
Na tarde desta quarta, dia 21, os ministros debatem e compartilham avaliações sobre a conjuntura internacional. Na manhã de quinta-feira, dia 22, discutem a reforma das instituições de governaça e financeiras internacionais.
“Estamos vivendo um mundo sem governança, e a proliferação de conflitos é algo que preocupa de forma muito aguda”, disse o embaixador Lyrio. Ele citou um estudo acadêmico do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres, que contabilizou o recorde de 183 conflitos no mundo, no ano passado, entre Estados e com participação. “Retornamos ao nível de conflitos do período da Guerra Fria. Há um déficit de governança para enfrentar os desafios.”
Saiba mais
Fator Lula
As guerras entre Rússia e Ucrânia, no Leste Europeu, e entre Israel e Hamas, no Oriente Médio, seguem no topo da agenda global. Elas vão ganhar destaque e tração pelos próximos dois dias, no Rio, nas conversas entre os ministros.
A reunião do G-20 antecede a marca de dois anos da invasão russa ao território ucraniano, no sábado, dia 24, sem que nenhum dos lados tenha avançado em objetivos militares recentes.
Até 10 de março, Israel ameaça uma incursão terrestre em Rafah, ao Sul da Faixa de Gaza, região que concentra 1,5 milhão de refugiados palestinos. O debate se tornou ainda mais acalorado pela crise diplomática entre o Brasil, presidente do G-20, e Israel, provocada pela comparação feita por Lula entre a guerra em Gaza e o extermínio de judeus pelos nazistas alemães, o Holocausto.
Assim como os ucranianos, israelenses e palestinos não fazem parte do G-20, mas os dois lados possuem alguns de seus principais apoiadores externos com assento no fórum – como os Estados Unidos, Reino Unido, França, Arábia Saudita, Turquia, Indonésia, África do Sul. Egito e Emirados Árabes Unidos, atores relevantes no mundo árabe, figuram como convidados.
Nos dois temas, o presidente Lula tentou se colocar como promotor da paz, mas terminou ignorado ou minou as próprias pretensões de mediar os conflitos, com declarações vistas como tendenciosas e não-neutras.
Se contratou uma crise ao falar em genocídio de palestinos e comparar a campanha militar de Israel ao Holocausto, Lula já havia deixado no ar sinais de apoio tácito à Rússia, ao criticar o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, e dizer que ele tinha a mesma culpa que Putin pela guerra. Lula também acusou potências ocidentais de incentivarem o prolongamento do conflito. Os dois posicionamentos geraram críticas e desgastaram Lula entre as principais democracias do mundo.
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