Mergulhada em uma crise política que ganhou contornos ainda mais dramáticos em 2024, a Venezuela deve ter um próximo ano ainda mais conturbado conforme duas posses presidenciais se aproximam no horizonte: a de Nicolás Maduro e a de Donald Trump.
O futuro da Venezuela
Em 10 de janeiro, Nicolás Maduro deve assumir um novo mandato após ter vencido uma eleição recheada de denúncias de fraude. .Já Edmundo González Urrutia, opositor reconhecido como o verdadeiro vitorioso por diversos países, com base na apuração paralela dos recibos de urnas apresentados pela oposição, está exilado na Espanha, mas promete viajar à Caracas para assumir seu posto.
Dez dias depois, ao norte, o americano Donald Trump retornará à Casa Branca para um novo mandato cujo principal mote será sua política migratória de deportação em massa. Essa medida deve colocar os dois países em rota de colisão, já que grande parte dos migrantes sem documentos nos Estados Unidos são venezuelanos que fugiram da crise econômica, política e social de seu país.
Apesar do aparente impasse de poder na Venezuela a partir do próximo dia 10, para analistas políticos venezuelanos não há dúvidas de que será Maduro quem seguirá no cargo. O chavista não dá qualquer indício de que entregará o poder, da mesma forma que não deu indícios ao longo de todo o ano passado.
“De fato, todas as condições previstas para essa data indicam que Nicolás Maduro provavelmente vai realizar um evento protocolar, com um desfile na Assembleia Nacional e dará um discurso. O mais provável é que ele vá prestar juramento para um novo período presidencial”, prevê Xavier Rodríguez-Franco, cientista político e apresentador do podcast Mirada Semanal.
Edmundo González garante que viajará a Caracas para tomar posse. Se o fizer, a crise política que já resultou em mais de 2 mil pessoas presas, dezenas de mortos e centenas de feridos desde 28 de julho, tende a se agravar, já que o opositor de 75 anos seria preso. González possui um mandado de prisão contra ele no Ministério Público chavista. María Corina Machado, líder da oposição que está escondida na Venezuela, tem uma medida similar contra si.
“Tanto Maduro quanto sua coalizão estão vendo que eles não sobreviverão fora do poder, por isso, para eles, é fundamental permanecer no poder, simples assim”, observa María Isabel Puerta Riera, professora de ciência política no Valencia College, em Orlando, Flórida. “Vimos o que aconteceu na Síria. Entregar o poder é ficar exposto já no dia seguinte. A diferença é que, diferente de Bashar Assad que teve asilo de Putin, nenhum aliado vai se sacrificar por Maduro”.
Dentro da própria oposição há uma descrença de que não haverá uma entrega de poder no dia 10 e o que se espera depois disso é uma repetição do que ocorreu em 2018, quando a reeleição contestada de Maduro terminou com uma onda de venezuelanos emigrando para outros países da América Latina e os EUA.
Este histórico, de 2018, somado às previsões catastróficas para o futuro, com o adicional de a Venezuela ser uma grande mina de petróleo, é o que tornará a relação de Trump e Maduro algo peculiar desta vez.
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A primeira fase de Trump e Maduro: pressão máxima
Embora esta seja a segunda vez que Trump e Maduro coexistirão como líderes, podemos esperar um cenário muito diferente daquela primeira relação.
Quando Trump foi presidente dos EUA entre 2017 e 2020, a Venezuela vivia uma situação política de certa forma semelhante, mas em um grau distinto. Após uma série de protestos em grande escala em 2017, Maduro anulou o poder da Assembleia Nacional, criando um Parlamento paralelo chamado de Assembleia Constituinte. No ano seguinte, o país viveria eleições, vencidas por Maduro após a oposição boicotar o processo. Na época, tanto EUA, como países da Europa e a OEA (Organização dos Estados Americanos) não reconheceram o novo mandato do ditador.
O governo do republicano, então, passou a exercer a sua política de “pressão máxima” sobre o regime chavista, impondo um número ainda maior de sanções às autoridades e ao setor petrolífero do país. A medida colocou a Venezuela no mesmo patamar de países considerados inimigos pelos EUA: Irã, Cuba e Coreia do Norte.
Dias depois de tomar posse para seu novo mandato considerado ilegítimo em janeiro de 2019, o então presidente da Assembleia Nacional Juan Guaidó convocou um grande protesto que foi atendido pela população. Ele aproveitou o momento para se autodeclarar presidente interino da Venezuela, já que a Assembleia não reconhecia o novo mandato de Maduro.
Os EUA de Trump se apressaram em reconhecer o novo líder, fazendo-o horas depois. Diversos países da Europa e da América Latina seguiram o exemplo, incluindo o Brasil, na época sob comando de Jair Bolsonaro. Quase imediatamente, Maduro rompeu relações diplomáticas com os EUA. Até hoje as relações estão rompidas e não há diplomatas venezuelanos nos EUA e vice-versa.
Deste momento em diante, Trump virou completamente as costas para Maduro, chegando a receber Juan Guaidó na Casa Branca. O reconhecimento não foi só retórico. Os EUA - e outros países - deram legitimidade aos esforços diplomáticos de Guaidó e transferiram recursos financeiros a ele como se fosse de fato o presidente em exercício, embora não controlasse nenhuma instituição venezuelana.
A consequência: uma crise na fronteira
Com o passar do tempo, ficou óbvio que Guaidó nunca conseguiria destituir o poder de Maduro, que contava com o aparato do chavismo em todos os poderes e órgãos do país, incluindo a gigante petrolífera. Além disso, o venezuelano contava com dois aliados poderosos que sustentam o regime até hoje apesar das sanções americanas: Rússia e China.
Com isso, o reconhecimento de Guaidó como presidente foi ficando de lado e Maduro pouco a pouco foi retornando com sua legitimidade.
Uma guerra na Ucrânia, que fez disparar o preço do petróleo, deu sobrevida a um regime que parecia condenado a colapsar. Já sob o governo de Joe Biden, algumas sanções foram levantadas e comércio com a petrolífera PDVSA foi novamente autorizado, com ressalvas. A contrapartida pedida por Biden era a realização de eleições livres e justas em 2024.
Um consequência direta da política de máxima pressão de Trump sobre a Venezuela veio com o início do fim da pandemia de covid-19: a maior onda migratória do continente americano. Com as fronteiras reabrindo e a Venezuela profundamente impactada pela piora da crise econômica, milhares de venezuelanos furaram o muro que separa EUA e México.
Mesmo com endurecimento de medidas em países vizinhos, como México e Costa Rica, os venezuelanos continuaram subindo, aos milhares por mês, totalmente a pé da Venezuela até os EUA, passando pela inóspita selva de Darién na fronteira entre Colômbia e Panamá, onde um número impreciso de migrantes morreu e muitos sofreram violências. O episódio foi a pior crise humanitária do continente da história e fez da migração o tema das eleições de 2024 nos EUA.
Os mesmos nomes, diferente cenário
Os EUA de Joe Biden reconheceram Edmundo González como o candidato vencedor das eleições, e é provável que Trump mantenha este reconhecimento. Mas estará longe de ser o mesmo que aconteceu com Guaidó. É improvável que os EUA reconheçam González como presidente em exercício e se reporte a ele diplomática e financeiramente como fizeram no passado
“Não vejo Trump fazendo o que fez com Guaidó, porque a Venezuela não é uma prioridade desse ponto de vista”, opina María Isabel Puerta Riera. “A Trump não interessa resgatar a democracia na Venezuela. Não lhe interessou em seu primeiro período e não vai lhe interessar agora. No primeiro período ele fez isso [reconhecer Guaidó] porque era necessário captar o voto hispânico da Flórida, mas realmente não há nenhum interesse da parte dele de se aliar com a causa democrática venezuelana.”
Desta vez, é Maduro quem ganhará com o republicano no poder.
Donald Trump ganhou as eleições de 2024 com a promessa de resolver o “problema” da migração. O republicano mentiu ao dizer que existe uma onde de crime provocada por imigrantes no país. Ou seja, para Trump, os milhares de venezuelanos que haviam entrado nos EUA na administração Biden eram, praticamente todos, criminosos.
Se, em 2018 a sua grande promessa de campanha era um muro para impedir a entrada de migrantes, agora a sua promessa é de deportações em massa dos que já entraram. Mais precisamente, de milhões de migrantes. Se quiser cumprir essas promessas, Trump terá de lidar diretamente com Maduro, que terá o poder de decidir - e chantagear sobre - se recebe ou não os voos de deportação. Pode até ser que Trump mantenha seu discurso agressivo contra Maduro, mas dificilmente isso se converterá em política concreta.
“Isso a princípio me parece que será um incentivo para que Trump busque, não uma aproximação diplomática porque isso tem um custo político, mas sim tentar fazer com que Maduro aceite os voos de deportação. E aí é onde eu acredito que pode jogar um papel o secretário de Estado nomeado e seu segundo a bordo, Marco Rubio e Christopher Landau. Certamente eles vão buscar manter uma linha dura, mas ao mesmo tempo, ambos estão comprometidos com a agenda política do presidente eleito e, para ele, a questão migratória é uma prioridade.”
“Não vejo uma determinação clara de Donald Trump em estabelecer algum tipo de hostilidade ou rivalidade, ou de aumentar a pressão para que ocorra uma mudança de governo na Venezuela”, concorda Rodríguez-Franco. “Especialmente considerando que ele não disse absolutamente nada sobre o que aconteceu no país desde as eleições.”
Trump não está interessado em salvar a democracia de ninguém. É evidente que a democracia, nem daqui nem de nenhum outro país, lhe interessa. O que lhe interessa são os seus próprios interesses. Com isso, a situação com a Venezuela vai ser extremamente transacional, como é tudo no caso de Trump. Ele buscará a aproximação que for necessária para que Maduro receba os imigrantes que estão aqui sem documentos.
María Isabel Puerta Riera, professora de ciência política no Valencia College, na Flórida
Uma poderosa arma chamada petróleo
No fim, Maduro sempre terá a sua arma mais poderosa para se manter vivo no cenário internacional: o abundante petróleo venezuelano. Mesmo sua indústria petrolífera estando em frangalhos, a commodity lhe traz sobrevida em um contexto de mercados instáveis.
Grupos interessados no petróleo da Venezuela já estão fazendo lobby para que Trump não implemente a política de pressão máxima novamente. No controvertido Projeto 2025, desenhado por think tanks conservadores dos EUA e que deve guiar o segundo mandato Trump, a busca por combustíveis “mais baratos e próximos” aparece como uma das prioridades, assim como “resolver a crise na Venezuela”.
O interesse, observam os cientistas políticos, pode abrir margem para Maduro utilizar os voos de deportação como moeda de troca no levantamento das sanções. “O próprio Maduro soube ler essas novas circunstâncias geopolíticas, pelo menos no hemisfério, e já disse que está interessado em estabelecer algum tipo de vínculo ou canal que permita uma maior capacidade de produção petrolífera, em troca de receber as deportações em massa que Donald Trump tanto deseja fazer”, sugere Rodríguez-Franco.
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