O ex-presidente uruguaio José “Pepe” Mujica considera a Venezuela de Nicolás Maduro um “regime autoritário” e acredita que a mudança chegará “de dentro (...) em algum momento”, declarou em entrevista exclusiva à agência AFP. Em plena recuperação de um câncer no esôfago, Mujica abriu a porta de sua modesta casa, que para muitos é um verdadeiro “santuário” de Montevidéu, e refletiu sobre o passado e o presente da América Latina.
“Tenho uma discordância íntima com regimes autoritários. O que eu não apoio é a intervenção externa. Os problemas da Venezuela devem ser resolvidos pelos venezuelanos. E, de qualquer forma, eles devem ser ajudados. Mas não interfiram”, disse o ex-presidente (2010-2015). “Haverá alguma revolução de dentro da Venezuela em algum momento”, afirmou.
Mujica negou que o governo de Maduro, no poder desde 2013, seja de esquerda ou comparável ao de seu antecessor, o falecido ex-presidente Hugo Chávez (1999-2013). “Alguns dos chavistas estão fora disso e muitos deles são perseguidos no mundo”, disse.
Ex-guerrilheiro que abraçou a democracia após passar 14 anos na prisão, a maior parte durante a ditadura (1973-1985), Mujica também lamentou o “autoritarismo” da Nicarágua sob o comando de Daniel Ortega e sua esposa Rosario Murillo. “O que mais me irrita é quando eles brincam de democracia e depois trapaceiam. Isso é insuportável”, declarou.
“Eles não são esquerdistas, são autoritários”, disse Mujica sobre Maduro e Ortega. Para o ex-presidente uruguaio, “o autoritarismo na América Latina é um passo para trás. Nós o vivemos historicamente quando os Estados Unidos se intrometeram em todos os lugares. Mas agora também estamos atrapalhando”.
Mujica também demonstrou preocupação que seu “velho amigo” Luiz Inácio Lula da Silva não tenha um sucessor à vista. “Lula está perto dos 80 anos de idade. E ele não tem substituto. Esse é a desgraça do Brasil”, afirmou.
Sem extremismos como em processos eleitorais vistos no Brasil, na Venezuela e na Argentina, o Uruguai tornou-se uma ilha em um mundo de polarização. “Em geral, as coisas não acontecem por acaso”, disse o uruguaio ao ser questionado se teme que o extremismo chegue ao seu país.
“O que o (presidente Javier) Milei fez na Argentina é uma loucura. É uma lição sobre o que a hiperinflação pode fazer com um povo. Uma nova lição histórica. Porque a República de Weimar entrou em colapso e as pessoas votaram em Hitler por causa da hiperinflação. E a Alemanha era o país mais culto, e o povo alemão, em desespero, fez uma coisa bárbara. O povo argentino também fez algo bárbaro (...). As pessoas também cometem erros. Se isso aconteceu com eles, pode acontecer conosco também.”
Recuperando-se do câncer, ele fala sem pressa, sentado em uma sala quase escura, onde o tempo parece ter parado. Suas pantufas gastas e meias velhas de lã chamam a atenção. Atrás dele, na biblioteca, estão empilhados livros, lembranças de viagens, uma estatueta do Papa Francisco e uma foto de Fidel Castro. Na cozinha, ao lado dele, está sua esposa e companheira de vida, Lucía Topolansky.
Ele talvez seja o uruguaio mais famoso do mundo, mas isso não o incomoda. “Não sou um fenômeno, sou um cara comum com algumas excentricidades (...) um esquisito”, disse o ex-presidente de 89 anos que travou mil batalhas e obteve uma enorme vitória: a que permitiram que a esquerda voltasse ao poder nesse país de 3,4 milhões de habitantes.
Vitória de Orsi é ‘prêmio de despedida’
Poucos dias após seu apadrinhado político Yamandú Orsi ter vencido as eleições presidenciais do Uruguai, o ex-guerrilheiro que governou o país entre 2010 e 2015 afirmou que essa vitória tem “um sabor agradável de prêmio de despedida”.
“Você está falando com um veterano de quase 90 anos, que passou por muitos choques, então a vitória me deu um sentimento de gratidão, uma alegria, e tem algo de prêmio para mim, um pouco como um prêmio no final da minha carreira (...). Tem um sabor agradável, um pouco como um prêmio de despedida (...)”, disse Mujica, frisando que não ocupará “nenhum cargo” na próxima administração da Frente Ampla (FA).
Mujica foi guerrilheiro, senador, ministro e presidente. Mas ao ser questionado sobre o que está faltando em sua trajetória, a resposta foi “sempre há coisas faltando”. Olhando para trás, o uruguaio lamenta não ter conseguido vencer a fome em seu país, afirmando que este é um de seus arrependimentos na vida política.
“Este é um país pequeno, mas tem muitos recursos para produzir alimentos. De fato, produzimos alimentos para 30 milhões de pessoas. Não podemos permitir que as pessoas passem fome. E eu era presidente. E não fiz o suficiente”, declarou.
Mas a resposta muda de tom quando questionado sobre arrependimentos na vida pessoal. “Tenho de ser grato. A vida me deu muito”, disse. “Você verá a simplicidade com que vivemos com minha senhora. Mas isso não é pobreza. Filosoficamente, somos estoicos. Precisamos de pouco (...) Estamos vivendo em uma época que gerou uma cultura consumista na qual as pessoas tendem subjetivamente a confundir ser com ter.”
Para Mujica, a maior falha da política contemporânea não foi com os jovens, mas com a esperança. Ele lembra que, em sua juventude, mesmo cometendo erros, havia uma utopia que guiava as ações: o sonho de construir um mundo melhor. Hoje, no entanto, enxerga uma geração privada desse horizonte. “A culpa não é dos jovens, mas de uma época cega e insensível”, afirma, lamentando a perda da capacidade de imaginar e lutar por um futuro mais justo.
O fracasso Mercosul-UE
O ex-presidente uruguaio previu o fracasso do acordo comercial que União Europeia (UE) e Mercosul tentam finalizar após 25 anos de negociações, e ao qual a França se opõe veementemente.”Não sairá nem no dia do goleiro [ditado popular uruguaio semelhante ao “dia de São Nunca”]. Porque os camponeses franceses não o querem. E os camponeses franceses dominam a cultura francesa”, declarou.
Mujica reconheceu que, se fosse francês, estaria do lado dos agricultores. “Mas como não sou, isso não me convém”, afirmou.
Os termos do acordo entre os 27 membros da UE e Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, por parte do Mercado Comum do Sul, foram estabelecidos em 2019, mas vários países, incluindo França, Itália e Polônia, rejeitam-o, sob pressão de seus setores agrícolas.
O pacto permitiria que os quatro países do bloco sul-americano aumentassem suas cotas de carnes bovina, suína e aves, bem como de mel, açúcar e outros produtos na UE.Os sindicatos agrícolas da União Europeia denunciam uma concorrência desleal, visto que a produção destes alimentos no Mercosul não está submetida à mesmas exigências ambientais e sociais nem mesmo às normas sanitárias em caso de controles defeituosos.”Eles usam isso como pretexto (...) estão defendendo seus interesses. Eles não podem competir com o Mercosul”, afirmou.
As discussões sobre o progresso das negociações estarão em pauta na próxima semana, durante a 65ª cúpula do Mercosul, nos dias 5 e 6 de dezembro, em Montevidéu.
‘Homens sozinhos são um desastre’
“Pepe” apontou armas contra o Estado, esteve preso, abraçou a democracia, foi deputado, senador, ministro, presidente do Uruguai, e se converteu à referência mundial da esquerda. No entanto, ao fazer um balanço de sua vida, ele apenas menciona Lucía. ”Ter encontrado Lucía foi de longe o meu maior acerto”, disse em referência a sua esposa, com quem está há mais de cinco décadas.
A casa dos dois fica em Rincón del Cerro, em uma fazenda de 19 hectares na zona rural de Montevidéu. O câncer de esôfago de Mujica lhe obrigou a se alimentar “por um tubo”. ”Minha companheira se esforça muito, ela espreme um bife para que o suco se integre um pouco ao purê, para dar um gostinho. Pobre Lucía, o que ela passa!”, disse.
Ele assegura que sem ela teria sido “muito difícil” sobreviver. ”As vezes me dá a impressão de que a face masculina sempre precisa de uma mãe. Onde estão as coisas? Os homens sozinhos são um verdadeiro desastre”.
Mujica faz uma pausa antes de contar como Lucía cruzou seu caminho. Ela é filha de uma família rica e, em 1969, aos vinte e poucos anos, juntou-se ao Movimiento de Liberación Nacional-Tupamaros, pronta para desmantelar o Estado “burguês”.
”Eu a conheci na luta clandestina, éramos os dois clandestinos. Estávamos em um momento muito perigoso e acabamos ficando sozinhos”, recorda. “Quando você vive algo muito perigoso, talvez, inconscientemente, precisa-se de amor muito mais que o comum”. “Estamos juntos desde então”, afirma, sem mencionar que se separaram quando foram presos em 1972 e que se reencontraram na restauração democrática após a ditadura (1973-1985).
Eles estavam juntos há 20 anos quando se casaram em 2005. Ela disse mais tarde que haviam unido “amor e utopia”. Eles não tiveram filhos.”Me dediquei a mudar o mundo na época que deveria ter filhos”, aponta Mujica. E isso deixou uma lacuna em sua vida? Sua resposta é uma citação do cantor e compositor argentino Atahualpa Yupanqui: “Tenho tantos irmãos que não consigo contar”.
”Não tive filhos diretos mas existem muitos com os quais tenho um senso de pertencimento”, acrescenta. “Somos privilegiados.”
Os olhos de Mujica brilham quando ele fala sobre o novo trator que tem e como ainda pode dirigi-lo “quase todos os dias por um tempo e sem nenhum problema”. ”Eu me entretenho com isso e com algo que leio”, diz ele sobre sua convalescença, que não o impediu de participar da campanha eleitoral vencida por Orsi, que assumirá a presidência em 1º de março.
Sobre uma mesa baixa está o livro Nexus, a mais nova obra de Yuval Noah Harari, com quem esteve em ligação telefônica há pouco tempo. ”Sabe o que ele me disse? ‘Tenho medo, muito medo de que a humanidade não tenha tempo de reparar os desastres que cometeu’”.
Lucía, que tem fama de durona e que já foi guerrilheira, deputada, primeira-dama, senadora e vice-presidente do Uruguai (2017-2020), não interrompe a entrevista, que provavelmente escutou da cozinha.
Mujica fica ofegante ao ser questionado se ele e Lucía pensam da mesma forma ou se complementam. ”Não! Lucía tem a sua personalidade. Certamente somos complementares, mas Lucía administra tudo”, afirma.
”Sempre digo que o amor se torna um hábito doce quando você está velho. É a forma que temos de escapar da solidão, que deve ser a pior condenação que os idosos têm”, continua.
O ex-presidente se alegra de poder continuar vivendo em sua casa com ela. ”Neste mundo em que os idosos terminam em uma casa de saúde, nós somos privilegiados. Ela tem 80 (anos) e eu tenho quase 90. Somos moderadamente autossuficientes. E estamos juntos”.
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