THE NEW YORK TIMES - Henry Kissinger, que morreu na quarta-feira, era o exemplo vivo da lacuna entre a história que os Estados Unidos, a superpotência, conta e a maneira como os EUA agem no mundo. Por vezes oportunista e reativa, a política externa defendida por Kissinger era apaixonada pelo exercício do poder e sem preocupação com os seres humanos deixados em seu rastro. Justamente porque os Estados Unidos de Kissinger não eram a versão maquiada da “cidade na colina”, ele nunca se sentiu irrelevante: ideias entram e saem de moda, mas o poder não.
De 1969 a 1977, Kissinger se estabeleceu como um dos funcionários mais poderosos da história. Durante uma parte desse período, ele foi a única pessoa a ocupar simultaneamente os cargos de conselheiro de segurança nacional e secretário de Estado, dois postos muito diferentes que o tornaram responsável por moldar e executar a política externa americana. Se suas origens judaico-alemãs e seu inglês carregado o diferenciavam, a facilidade com que exercia o poder fez dele um avatar natural para um estado de segurança nacional americano que cresceu e ganhou impulso ao longo do século XX, como um organismo que sobrevive ao se expandir.
Trinta anos depois que Kissinger se aposentou no conforto do setor privado, servi por oito anos em um aparato de segurança nacional maior, pós-Guerra Fria e pós-11 de setembro. Como assessor adjunto de segurança nacional, com responsabilidades que incluíam a redação de discursos e comunicações, meu trabalho muitas vezes se concentrava mais na história que os Estados Unidos contavam do que nas ações que tomávamos.
Na Casa Branca, você está no topo de uma estrutura que inclui as Forças Armadas e a economia mais poderosas do mundo e, ao mesmo tempo, detém os direitos de uma história radical: “Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais”.
Mas eu era constantemente confrontado com as contradições embutidas na liderança americana, o conhecimento de que nosso governo arma autocratas enquanto sua retórica apela para os dissidentes que tentam derrubá-los ou que nossa nação impõe regras - para a condução da guerra, a resolução de disputas e o fluxo do comércio - enquanto insiste que os Estados Unidos sejam dispensados de segui-las quando elas se tornam inconvenientes.
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Kissinger não se sentia desconfortável com essa dinâmica. Para ele, a credibilidade estava enraizada no que se fazia, não no que se defendia, mesmo quando essas ações anulavam os conceitos americanos de direitos humanos e direito internacional. Ele ajudou a estender a guerra no Vietnã e a expandi-la para o Camboja e o Laos, onde os Estados Unidos lançaram mais bombas do que na Alemanha e no Japão na 2ª Guerra Mundial.
Esses bombardeios - muitas vezes com massacre indiscriminado de civis - não contribuíram em nada para melhorar os termos em que a Guerra do Vietnã terminou; na verdade, apenas indicou até que ponto os Estados Unidos chegariam para expressar seu descontentamento com a derrota.
É irônico que esse tipo de realismo tenha atingido seu ápice no auge da Guerra Fria, um conflito que era ostensivamente sobre ideologia. Do lado do mundo livre, Kissinger apoiou campanhas genocidas - do Paquistão contra os bengaleses e da Indonésia contra os timorenses. No Chile, ele foi acusado de ajudar a preparar o terreno para um golpe militar que levou à morte de Salvador Allende, o presidente esquerdista eleito, dando início a um terrível período de governo autocrático.
A defesa generosa é que Kissinger representava um ethos que via os fins (a derrota da União Soviética e o comunismo revolucionário) como justificativa para os meios. No entanto, para grandes áreas do mundo, essa mentalidade trazia uma mensagem brutal que os Estados Unidos sempre transmitiram às suas próprias populações marginalizadas: nós nos preocupamos com a democracia para nós, não para eles. Pouco antes da vitória de Allende, Kissinger disse: “As questões são importantes demais para que os eleitores chilenos decidam por si mesmos”.
Será que tudo valeu a pena? Kissinger estava obcecado com a credibilidade, a ideia de que os Estados Unidos devem impor um preço àqueles que ignoram nossas exigências para moldar as decisões de outros no futuro. É difícil ver como o bombardeio do Laos, o golpe no Chile ou os assassinatos no Paquistão Oriental (atual Bangladesh) contribuíram para o resultado da Guerra Fria.
Mas a visão não sentimental de Kissinger sobre os assuntos globais permitiu que ele conseguisse avanços consequentes com países autocráticos mais próximos da estatura dos Estados Unidos - uma distensão com a União Soviética que reduziu o ímpeto de escalada da corrida armamentista e uma abertura para a China que aprofundou a divisão sino-soviética, integrou a República Popular da China à ordem global e antecedeu as reformas chinesas que tiraram centenas de milhões de pessoas da pobreza.
O fato de essas reformas terem sido iniciadas por Deng Xiaoping, o mesmo líder chinês que ordenou a repressão aos manifestantes na Praça Tiananmen, mostra a natureza ambígua do legado de Kissinger. Por um lado, a aproximação entre os EUA e a China contribuiu para o fim da Guerra Fria e melhorou os padrões de vida do povo chinês. Por outro lado, o Partido Comunista Chinês emergiu como o principal adversário geopolítico dos Estados Unidos e a vanguarda da tendência autoritária na política global, colocando um milhão de uigures em campos de concentração e ameaçando invadir Taiwan, cuja situação não foi resolvida pela diplomacia de Kissinger.
Kissinger viveu metade de sua vida depois de deixar o governo. Ele abriu o que se tornou uma trilha bipartidária de ex-funcionários que criaram empresas de consultoria lucrativas enquanto negociavam com contatos globais. Durante décadas, ele foi um convidado cobiçado em reuniões de estadistas e magnatas, talvez porque sempre pudesse fornecer uma estrutura intelectual para explicar por que algumas pessoas são poderosas e justificam o exercício do poder.
Escreveu uma prateleira de livros, muitos dos quais poliram sua própria reputação como oráculo dos assuntos globais; afinal, a história é escrita por homens como Henry Kissinger, não pelas vítimas das campanhas de bombardeio das superpotências, incluindo as crianças do Laos, que continuam a ser mortas pelas bombas que não explodiram e que cobrem seu país.
Você pode optar por ver essas bombas não detonadas como a tragédia inevitável da condução dos assuntos globais. Do ponto de vista estratégico, Kissinger certamente sabia que o fato de ser uma superpotência trazia consigo uma grande margem de erro que pode ser perdoada pela história.
Apenas algumas décadas após o fim da Guerra do Vietnã, os mesmos países que havíamos bombardeado estavam buscando expandir o comércio com os Estados Unidos. Bangladesh e Timor Leste são agora nações independentes que recebem assistência americana. O Chile é governado por um socialista millenial cujo ministro da defesa é a neta do Allende. As superpotências fazem o que devem fazer. A roda da história gira. Quando e onde você vive determina se você será esmagado ou erguido por ela.
Mas essa visão de mundo confunde cinismo - ou realismo - com sabedoria. A história, o que está em jogo, é importante. No final das contas, o Muro de Berlim foi derrubado não por causa de movimentos de xadrez feitos no tabuleiro de um grande jogo, mas porque as pessoas do Leste queriam viver como as pessoas do Oeste. A economia, a cultura popular e os movimentos sociais eram importantes. Apesar de todas as nossas falhas, tínhamos um sistema e uma história melhores.
Ironicamente, parte do fascínio sobre Kissinger se deveu ao fato de sua história ser eminentemente americana. Sua família escapou por pouco da roda da história, fugindo da Alemanha nazista no momento em que Hitler colocava em prática seu plano diabólico. Kissinger retornou à Alemanha no Exército dos EUA e libertou um campo de concentração.
A experiência o impregnou de uma cautela em relação à ideologia messiânica associada ao poder do Estado. Mas isso não legou a ele muita simpatia pelos menos favorecidos. Tampouco o motivou a vincular a superpotência americana do pós-guerra à própria teia de normas, leis e fidelidade a certos valores que foi escrita na ordem do pós-guerra liderada pelos americanos para evitar outra guerra mundial.
A credibilidade, afinal, não se trata apenas de punir ou não um adversário para enviar uma mensagem a outro; trata-se também de saber se você é o que diz ser. Ninguém pode esperar perfeição nos assuntos de Estado, assim como nas relações entre os seres humanos. Mas os Estados Unidos pagaram um preço por sua hipocrisia, embora seja mais difícil de medir do que o resultado de uma guerra ou negociação.
Ao longo das décadas, nossa história sobre democracia passou a soar vazia para um número cada vez maior de pessoas que podem apontar os lugares em que nossas ações esvaziaram nossas palavras de significado e a “democracia” soou apenas como uma extensão dos interesses americanos. Da mesma forma, nossa insistência em uma ordem internacional baseada em regras tem sido ignorada por homens fortes que apontam os pecados dos Estados Unidos para justificar os seus próprios.
Agora a história completou o círculo. Em todo o mundo, vemos um ressurgimento da autocracia e do etnonacionalismo, mais acentuadamente na guerra da Rússia contra a Ucrânia. Em Gaza, os Estados Unidos apoiaram uma operação militar israelense que matou civis em um ritmo que, mais uma vez, sugeriu a grande parte do mundo que somos seletivos em nossa adoção de leis e normas internacionais.
Enquanto isso, em casa, vemos como a democracia se tornou subordinada à busca pelo poder em uma parte do Partido Republicano. É a isso que o cinismo pode levar. Porque quando não há uma aspiração maior, nenhuma história que dê sentido às nossas ações, a política e a geopolítica se tornam meramente um jogo de soma zero. Nesse tipo de mundo, o poder faz a razão.
Tudo isso não pode ser colocado sobre os ombros de Henry Kissinger. De muitas maneiras, ele foi tanto uma criação do estado de segurança nacional americano quanto seu autor. Mas ele também é um conto de advertência. Por mais imperfeitos que sejamos, os Estados Unidos precisam de nossa história para sobreviver. É ela que mantém unida uma democracia multirracial em casa e nos diferencia da Rússia e da China no exterior.
Essa história insiste que uma criança no Laos é igual em dignidade e valor às nossas crianças e que o povo do Chile tem o mesmo direito de autodeterminação que nós. Para os Estados Unidos, isso deve fazer parte da segurança nacional. Nós nos esquecemos disso por nossa conta e risco.
* Ben Rhodes foi vice-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA entre 2009 e 2017, no governo de Barack Obama
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