Hezbollah, enfraquecido pela guerra, prioriza a sobrevivência diante da aliança entre Israel e Trump

Com armas destruídas, um vácuo na liderança e baixas de combatentes, milícia xiita estuda opções após fim de prazo para israelenses saírem do Líbano

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Foto do author Isabel Gomes

Após meses de troca de fogo na fronteira, uma incursão terrestre israelense e o colapso de sua liderança, o Hezbollah enfrenta seu momento mais crítico desde a guerra de 2006. Militarmente desgastado, sem recursos para se reconstruir e sob crescente pressão interna e externa, o grupo xiita se vê em uma encruzilhada: sem força para enfrentar uma nova guerra, assiste a Israel manter tropas no Líbano ao custo de sua própria influência se esvair.

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Um acordo de cessar-fogo fechado em novembro previa a retirada do Exército israelense até 27 de janeiro, mas, com o prazo descumprido, os dois lados concordaram em estendê-lo até esta terça-feira, 18. Israel, entretanto, já indicou que não deixará o território: na segunda-feira, 17, anunciou que manterá presença em cinco “posições estratégicas” no Líbano, apesar da rejeição pública de Beirute.

Um relatório publicado pelo Relief Web, um serviço de informação humanitária fornecido pela ONU, reforça a tese de que as forças israelenses não vão se mexer: israelenses estão construindo “Bases Operacionais Avançadas” semipermanentes no topo de colinas perto da Linha Azul, o nome da ONU para a fronteira sul do Líbano.

Apoiadores do Hezbollah seguram bandeiras do partido com uma imagem do líder assassinado, Hassan Nasrallah, durante um protesto contra a enviada especial adjunta dos EUA para a paz no Oriente Médio, Morgan Ortagus, após ela se encontrar com o presidente do país, em Beirute, Líbano. Foto: AP Photo/Bilal Hussein

Com as tropas israelenses permanecendo no Líbano, o Hezbollah enfrenta uma encruzilhada: retaliar e arriscar um confronto para o qual não tem preparo ou escolher impassibilidade e dar brecha para o fortalecimento de um discurso interno de que seu desarmamento é necessário — se o grupo se não protege o território libanês e o povo xiita, para que usa as armas?

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Analistas ouvidos pelo Estadão apontam que qualquer escolha pode selar o futuro do grupo no Líbano, mas há poucas saídas se não evitar a retaliação. Enfraquecido pela guerra, temendo o desarmamento e lidando com Israel quase sem freios sob o apoio de Donald Trump, o Hezbollah poderá colocar tudo em jogo caso opte por uma nova rodada de confrontos.

Hezbollah em pedaços

Não é do interesse de Hezbollah uma nova guerra agora, simplesmente porque não há nenhuma possibilidade de cenário em que a milícia se saia bem. Militarmente, o Hezbollah nunca esteve tão fragilizado. Em dezembro, Israel afirmou que estimava ter destruído 70% dos armamentos estratégicos da milícia xiita, incluindo mísseis de longo alcance, mísseis antiaéreos e mísseis antinavio, e cerca de 75% de seus lançadores de foguetes de curto alcance.

Em uma visita guiada para jornalistas em dezembro, as Forças de Defesa de Israel (FDI) exibiram alguns dos mais de 80 mil itens da milícia que Israel diz ter apreendido em combates — de carros à mísseis —, em uma forte de demonstração de força contra o grupo após meses de hostilidades.

“Eles não podem se dar ao luxo – não têm armas, não têm Exército, não têm um canal para trazer mais armas e não têm orçamento para a guerra“, diz Hanin Ghaddar, pesquisadora sênior no Programa de Política Árabe da Família Rubin do Instituto Washington. “Eles estão em modo de sobrevivência, definitivamente não em modo de guerra”, avalia a analista.

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Além das perdas significativas em sua infraestrutura bélica, o grupo sofreu baixas estratégicas, incluindo a morte de lideranças importantes, sobretudo a de Hassan Nasrallah, líder supremo do grupo, morto em setembro. Além dele, as mortes de pelo menos outras 10 importantes figuras do Hezbollah foram confirmadas.

As baixas também atingiram a base do Hezbollah. Antes da guerra, observatórios internacionais estimavam que o grupo possuía de 20 a 25 mil membros ativos. O Hezbollah anunciou a morte de cerca de 500 de seus combatentes até setembro, quando Israel lançou uma ofensiva terrestre e o grupo parou de divulgar as baixas.

Mas no fim de novembro, uma fonte ligada ao grupo disse para a agência Reuters que 4 mil combatentes podem der morrido — um número quase 10 vezes maior ao número de baixas na guerra de um mês contra Israel em 2006. Já o Instituto de Estudos de Segurança Nacional da Universidade de Tel-Aviv, também em novembro, disse que o Hezbollah perdeu um total de 2.450 pessoas.

Derrotas logísticas

A queda do regime de Bashar Assad na Síria em dezembro também cortou uma de suas principais rotas logísticas para o recebimento de armas iranianas e colocou o grupo em uma posição arriscada.

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“Dado o papel que o Hezbollah desempenhou no apoio militar a Assad, isso também significa que o novo governo de Ahmed al-Sharaa é, na verdade, hostil ao grupo”, afirma John Strawson, professor da Universidade de East London especialista em Direito internacional e Oriente Médio.

Combatentes apoiadores do governo interino sírio na cordilheira Anti-Líbano, no oeste da província de Homs, na Síria. Forças sírias entraram em confronto com gangues de contrabandistas afiliadas ao Hezbollah na última semana. Foto: Bakr Alkasem/AFP

Sem preparo e sem dinheiro para voltar ao tamanho que tinha antes, o Hezbollah se vê sem saída. Uma nova fase de guerra, portanto, destruiria o pouco que restou.

“Eles enfrentam um problema sério dentro de sua própria comunidade porque, desta vez, não há reconstrução, promessas, planos, nada. Diferente de 2006, quando tudo chegou rapidamente, o Líbano era prioridade para todos e o Irã estava cheio de dinheiro”, diz Harin.

Pressão do governo libanês

A pressão interna também cresce. O novo presidente libanês, Joseph Aoun, e o primeiro-ministro, Nawaf Salam, têm defendido publicamente o desarmamento do Hezbollah e a restauração da autoridade do Estado libanês sobre todo o território nacional.

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Há cerca de duas semanas, Salam formou o primeiro governo pleno do país desde 2022. Aoun anunciou em um comunicado que aceitou a renúncia do anterior governo interino e assinou um decreto com Salam formando o novo grupo.

“O Hezbollah perdeu seu status como uma potência regional e se tornou um partido político local fraco”, afirma Hilal Khashan, professor de Ciência Política na American University, em Beirute. “Sua situação explica a relativa facilidade com que o gabinete surgiu. No passado, a formação do governo costumava levar meses, se não mais de um ano, por causa das exigências do Hezbollah.”

Politicamente, o Hezbollah ainda mantém representação no Parlamento e agora foca em preservá-la nas eleições de maio de 2026. No entanto, sua base política já havia sido enfraquecida antes mesmo da guerra.

“O Parlamento eleito em 2020 já foi uma grande derrota para o Hezbollah, resultado dos protestos de 2019”, explica Harin. “Seus aliados corruptos, exceto os xiitas, perderam espaço. Eles já não tinham maioria no Parlamento. Agora, com o novo governo, precisam fazer ainda mais concessões.”

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A prioridade do grupo, neste momento, é garantir sua presença nas próximas eleições. “O objetivo deles é evitar perder essa representação”, afirma a especialista do Washington Institute. “Se isso acontecer, depois de todas as derrotas militares e políticas, pode ser o fim do Hezbollah como o conhecemos.”

Israel ‘pode tudo’ com Trump

Se por um lado o Hezbollah está tentando juntar os cacos, Israel ostenta um “cheque em branco” que Donald Trump dá para Binyamin Netanyahu prosseguir com seus objetivos políticos, custe o que custar.

As declarações do republicano sobre o conflito em Gaza — incluindo o desejo de transformar o enclave em uma “Riviera do Oriente Médio” — e a posição em relação ao cessar-fogo do Hamas já criaram um alto grau de incerteza na região, e isso também afeta o Hezbollah.

Donald Trump e Binyamin Netanyahu na Casa Branca em 4 de fevereiro. Foto: Alex Brandon/AP

No fim deste mês, a Liga Árabe, que conta com membros como Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Líbano, realizará uma cúpula de emergência no Cairo para “abordar os últimos e críticos desenvolvimentos da causa palestina”. Segundo os especialistas, os resultados dessa conferência também terão implicações para o Líbano e o Hezbollah.

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“Enquanto isso, o cessar-fogo Hezbollah-Israel está prestes a se manter e o objetivo declarado de Israel de permanecer no sul do Líbano até o final do mês está pelo menos sendo discutido no mecanismo apoiado pelos americanos que o supervisiona. Até agora, o governo Trump tem apoiado o processo. O Hezbollah será cauteloso para não balançar o barco“, indica Strawson, da East London.

Mais do que um movimento de autopreservação, a decisão do grupo libanês de não retaliar está diretamente ligada ao Irã. O governo Trump tem intensificado a pressão sobre Teerã, buscando cortar o financiamento iraniano às milícias na região e enfraquecer sua influência no Líbano. Isso ficou evidente na visita da enviada especial adjunta para o Oriente Médio, Morgan Ortagus, ao país no início de fevereiro.

“É graças ao presidente Aoun e ao primeiro-ministro designado Nawaf Salam, e a todos neste governo que estão comprometidos com o fim da corrupção, que estão comprometidos com reformas e que estão comprometidos em garantir que o Hezbollah não faça parte deste governo de nenhuma forma, e que o Hezbollah permaneça desarmado e militarmente derrotado. Isso, é claro, começa com a pressão que o presidente Trump está colocando agora na República Islâmica do Irã para que eles não possam mais financiar seus representantes terroristas pela região”, declarou Morgan.

Para os analistas, o apoio irrestrito dos EUA a Israel torna a situação do Hezbollah ainda mais delicada. “O apoio de Trump é um nível diferente. Não há dissuasão para Israel, nenhum ponto de interrogação, nenhuma pressão para fazer menos ou mais. É apoio absoluto”, afirma Hanin.

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Segundo ela, o grupo entende que está mais encurralado hoje do que no ano passado, não apenas pela ação militar israelense, mas pela combinação do apoio americano e da pressão interna no Líbano. “A decisão deles no momento é recuar, reconstruir internamente e esperar o momento certo, quando essa pressão acabar”, conclui a analista.

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