PUBLICIDADE

História de amor forjada na luta política de Mianmar termina com execução

País chegou a ser considerado um exemplo de progresso na direção da democracia, mas retrocedeu desde que os militares tomaram o poder no ano passado

PUBLICIDADE

Por Rebecca Tan e Aung Naing Soe

THE WASHINGTON POST - Tudo começou com uma carta escrita em um papel dobrado hermeticamente e entregue em segredo. Ela, aos 24 anos, estava presa por comparecer a protestos contra o regime autoritário de Mianmar. Ele, aos 25, havia cumprido um terço da sentença de 20 anos que recebeu por mobilizar estudantes ativistas contra a junta militar que controlava o país.

PUBLICIDADE

Ele escreveu primeiro, afirmando que a admirava por sua recusa em assinar uma carta prometendo obedecer os militares em troca de sua liberdade. Ela respondeu nos mesmos termos, afirmando que havia gostado de um discurso político que ele havia pronunciado na cidade de Rangun. Eles se cortejaram com poemas e olhares trocados em encontros ao acaso na sala de visitas da penitenciária. Entre restrições dentro e fora da cadeia, eles se casaram e tiveram uma filha.

A história de amor de Nilar Thein e seu marido, Kyaw Min Yu, também conhecido como Ko Jimmy, resistiu a golpes de Estado e revoluções, ameaças de morte e períodos de separação, contou ela ao Washington Post. Durou 26 anos - até a semana passada, quando os militares birmaneses executaram Ko Jimmy juntamente com outros três ativistas pró-democracia. Ele tinha 51 anos.

Kyaw Min Yu, também conhecido como Ko Jimmy, um dos quatro ativistas da democracia executados pelas autoridades militares de Mianmar, é visto na captura de tela divulgada pela junta militar  Foto: MRTV/Handout via Reuters

As execuções, que marcaram a primeira vez em mais de 30 anos que Mianmar aplicou a pena de morte, chocaram defensores de direitos humanos, suscitaram condenações em todo o mundo e fizeram escalar dramaticamente as tensões na guerra civil que transcorre no país, segundo ativistas. Mas a perda de Ko Jimmy, anunciada em um texto de quatro parágrafos publicado em um jornal estatal, também acabou com um romance que resistiu a anos de luta política - um relacionamento que desde o início foi entrecortado pelas idas e vindas do trôpego esforço por democracia em Mianmar.

“Ko Jimmy era meu camarada, meu líder, meu marido”, afirmou na semana passada Nilar Thein, de 50 anos, em um ponto não identificada de Mianmar, onde ela se esconde das autoridades. “Para a nossa filha, ele foi acima de tudo um pai maravilhoso.”

“O que este regime fez, sua brutalidade, para mim é indescritível. O caso de Ko Jimmy foi apenas um de muitos.”

Mianmar chegou a ser considerado um exemplo de progresso na direção da democracia, mas retrocedeu para a crise desde que os militares tomaram o poder de forma truculenta em fevereiro de 2021. Ativistas veteranos que ajudaram a impulsionar o breve período de liberalização do país, sob os auspícios da ganhadora do Prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, acabaram tendo de se esconder novamente ou voltaram para a prisão.

Publicidade

Mais de mil pessoas foram presas ao longo dos últimos dois anos, e pelo menos cem foram sentenciadas à morte em julgamentos a portas fechadas, de acordo com a Associação de Assistência para Presos Políticos (AAPP), entidade sem fins lucrativos de Mianmar que acompanha esses registros. Setenta e seis dos sentenciados à morte estão sob custódia dos militares, a vasta maioria jovens civis que compareceram a protestos contra os militares, de acordo com a AAPP.

Os comandantes da junta decretaram a prisão de Ko Jimmy, um dos mais proeminentes ativistas pró-democracia de Mianmar, semanas após derrubarem o governo eleito democraticamente. Acusado de ameaçar a “tranquilidade pública” com suas críticas aos militares, Ko Jimmy conseguiu evitar ser preso até outubro, quando foi pego tentando pular um alambrado coberto com arame farpado, afirmou Nilar Thein.

Em junho, as autoridades anunciaram que planejavam executá-lo juntamente com o ex-parlamentar Phyo Zeya Thaw e outros dois homens, Hla Myo Aung e Aung Thura Zaw. Entidades internacionais, governos estrangeiros e grupos de defesa dos direitos humanos imploraram comedimento aos militares; Nilar Thein alertou que, se seu marido fosse morto, os comandantes militares “seriam totalmente responsabilizados”.

Eles foram adiante. “Não temos nada pessoal contra eles”, afirmou o porta-voz da junta, Zaw Min Tun, a respeito dos homens executados na semana passada. “Suas ações que devem ser sentenciadas à morte repetidamente.”

Pedido de casamento

PUBLICIDADE

A primeira vez que Nilar Thein viu seu futuro marido, recordou-se ela, ambos ainda eram adolescentes. Foi numa tarde clara e úmida, diante de um comitê político no centro de Rangun. Ko Jimmy estava ao lado de Suu Kyi, discursando; Nilar Thein assistia da plateia, vestida com seu uniforme escolar verde e branco.

“Gostei muito do discurso”, lembrou-se ela, sorrindo. “Era devotado e claro, verdadeiramente o discurso de um líder.”

Ko Jimmy foi preso logo após discursar naquele dia. Nilar Thein afirmou que não soube dele até que também foi presa — e recebeu seu bilhete, que chegou a ela por meio de uma rede de colaboradores. Ao longo de nove anos e centenas de cartas, ele contou a ela a respeito do lugar onde cresceu, próximo a um enorme lago nas Colinas Shan, e sobre o clube literário clandestino que ele organizava a partir de sua cela.

Publicidade

Ele escreveu poemas pós-modernos para ela — redigidos em verso livre, estilo que ela não conhecia — e a ensinou a escrever poesia. Certo dia, ele barganhou com os guardas da prisão uns poucos momentos com ela, para que pudesse lhe entregar medicamentos, comida e livros — e para pedir sua mão em casamento.

Em 2005, depois de ambos serem soltos antes do fim de suas penas, eles se casaram, tiveram uma filha e a batizaram de Sunshine. Mas quando Sunshine tinha 4 meses, Ko Jimmy foi preso novamente. Nilar Thein entrou na clandestinidade, escondendo-se em diferentes — e encardidos — apartamentos com sua filha. Poucos meses depois, afirmou Nilar Thein, as autoridades a encontraram e a prenderam, separando-a de sua filha.

Jimmy (C), libertado da Prisão de Taunggyi, e sua mulher Nilar Thein (de branco), libertada da Prisão de Thar Yar Waddi, chegam com sua filha ao aeroporto doméstico de Rangun em 13 de janeiro de 2012 Foto: Soe Zeya Tun/Reuters - 13.01.2012

Em 2012, Nilar Thein e Ko Jimmy foram soltos em razão das anistias concedidas aos ativistas que participaram do movimento estudantil de 1988, que ajudou a impulsionar uma campanha nacional contra os militares nos anos 90. Sua libertação marcou o início do tempo mais longo que o casal passou junto fora da prisão, apesar de, à medida que Mianmar passou a se liberalizar, o ativismo levou ambos a diferentes partes do país e os afastou por longos períodos.

Conforme passaram-se os anos, eles começaram a almejar uma vida mais pacífica. Queriam passar mais tempo com a filha, ler e escrever poesia. Depois da eleição de 2020, quando a Liga Nacional pela Democracia, de Suu Kyi, alcançou com facilidade uma vitória decisiva, o casal decidiu se afastar da vida pública.

Nilar Thein e Ko Jimmy havia acabado de iniciar seu tempo de sossego quando os militares tomaram o poder novamente.

Em março de 2021, Nilar Thein estava trabalhando como voluntária em uma clínica de tratamento de covid-19, cuidando de monges budistas, quando Ko Jimmy a visitou. A situação era tensa em Mianmar. Dias antes, uma jovem de 19 anos havia sido baleada na cabeça enquanto participava de um protesto na cidade de Mandalay, no centro do país.

Ko Jimmy, que já estava se escondendo das autoridades havia algumas semanas, disse à sua mulher que a situação só iria piorar. Ambos concordaram que não deixariam Mianmar — em vez disso, ficariam para lutar, como sempre lutaram em sua vida. Eles também fizeram um pacto, relatou Nilar Thein: Se fossem ser presos outra vez, tentariam se suicidar antes de ser torturados. Seria seu protesto final contra os militares.

Publicidade

Em imagem de 13 de janeiro de 2012, Nilar Thein (C), com a filha Sunshine no colo, ao lado do marido Ko Jimmy  Foto: Soe Than Wins/AFP

“Ele me disse, ‘Olhe esses jovens sacrificando suas vidas. Eu já vivi mais de 50 anos, isso é mais que suficiente’”, lembrou-se Nilar Thein. “‘Não me importo em morrer’ — foi isso o que ele me disse.”

Ela só voltou a ver o rosto de seu marido outra vez numa foto divulgada pelos militares. Ele vestia o uniforme azul-claro da prisão. Estava de pé, com os braços ao lado do corpo e o rosto abatido. Ela disse que chorou ao ver a imagem.

“Foi quando eu soube que ele não tinha conseguido”, afirmou ela com a voz trêmula. “Ko Jimmy não teve chance de se suicidar, como havíamos combinado anteriormente.”

Mais de uma semana após as execuções, autoridades prisionais ainda não permitiram que os parentes vejam os corpos dos cinco homens que foram mortos. Enquanto isso não ocorrer, afirmou Nilar Thein, ela não organizará o funeral para despedir-se do marido nem acreditará completamente que ele morreu. Isso decorre de uma desconfiança em relação aos militares, não de alguma fé cega, afirmou ela. Além disso, mantém aberta uma janela para sua esperança.

Talvez algum dia, pensa Nilar Thein consigo mesma, ela possa voltar para sua casa e para os livros que ela e Ko Jimmy colecionaram ao longo da vida, quando for seguro. Talvez algum dia ela entre pela porta da frente acompanhada de Sunshine e ambas escutem a voz dele cantando na cozinha. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.