Homens em idade de combater ainda se escondem na Rússia, com medo de ser mandados para a guerra

O anúncio pelo ministro da Defesa de que a mobilização acabou não foi suficiente para acalmar russos que temem a guerra, já que Putin nunca emitiu um decreto oficial colocando fim às convocações

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Por Mary Ilyushina

Apesar do presidente da Rússia, Vladimir Putin, e seu ministro da Defesa, Serguei Shoigu, terem proclamado o fim da mobilização de 300 mil novos soldados, muitos russos em idade de combate continuam escondidos — ainda temerosos em relação à possibilidade de serem recrutados pelos militares e enviados para lutar e morrer em uma guerra fracassada.

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Enquanto registros em postos terrestres de fronteira documentaram que mais de 300 mil pessoas deixaram o país nas semanas que se seguiram ao início da mobilização, não há dados a respeito do número de homens que se esconderam dentro do país, que também é estimado na casa dos milhares.

Entre eles está um jovem especialista em tecnologia da informação do sul da Rússia, que atualmente vive em uma barraca, escondido em uma floresta.

Recrutas russos se apresentam durante convocação anual de outono em 10 de novembro Foto: Alexey Malgavko/Reuters

Assim como outros homens elegíveis para o serviço militar, ele começou rapidamente a planejar sua fuga depois que Putin emitiu o decreto de mobilização, em 21 de setembro, checando freneticamente a disponibilidade de voos para o exterior, cujos preços disparavam cada vez que ele atualizava a página.

Então ele teve uma epifania: se não fosse capaz de pagar para fugir da Rússia nem de deixar sua família e amigos para trás, ele poderia pelo menos escapar da civilização e do sistema de conscrição militar do Estado. Então, ele pediu uma semana de folga no trabalho, pegou o carro e fugiu para a floresta.

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“Eu tive medo de ser convocado quando saísse para ir ao mercado ou que alguém viria bater na porta da minha casa”, disse em uma entrevista telefônica o especialista em TI, que relata suas experiências em um blog no Telegram sob o pseudônimo Adam Kalinin. Ele falou sob condição de anonimato porque está se escondendo das autoridades.

A reportagem do Washington Post entrevistou outros cinco homens que passaram as semanas recentes se escondendo em apartamentos alugados, casas de campo e até em um estúdio de música. Alguns foram entrevistados pelo telefone, outros concordaram em receber um fotógrafo nos locais em que estavam escondidos. Apesar de terem diferentes origens, profissões e condições familiares, todos expressaram um objetivo idêntico: evitar matar ou ser morto na Ucrânia.

Nas entrevistas, a maioria afirmou que ainda não se sente a salvo da máquina de guerra de Putin, e todos pediram para não ser identificados para evitar detecção das autoridades.

“Não estou com pressa de voltar para um estilo de vida normal”, afirmou um técnico de laboratório, de 38 anos, que foi emboscado em sua casa por um grupo de policiais e oficiais de recrutamento que lhe entregou intimações, no fim de setembro.

Ele não assinou os documentos e decidiu não comparecer ao ponto de encontro no dia seguinte, conforme lhe exigiram. Em vez disso, ele se escondeu em um chalé nas imediações de Moscou, enquanto as notificações se acumularam na porta de seu apartamento.

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Em um determinado momento ele teve de retornar à cidade para trabalhar, mas trocou seu carro por uma bicicleta para evitar a polícia de trânsito e usou máscara para evitar a vasta rede de câmeras de monitoramento em Moscou com sistema de reconhecimento facial.

“Eu não tinha para onde fugir, nem podia trabalhar remotamente”, afirmou ele, quando indagado a respeito da possibilidade de ir para o exterior. O técnico de laboratório já serviu às Forças Armadas russas antes e afirmou que, por esse motivo, quer evitar passar pela experiência novamente, mas disse que não apoia “inequivocamente nenhum lado” na guerra.

O especialista em TI afirmou que ele e sua mulher adoram acampar, então ele tinha quase tudo do que precisava para evitar os oficiais de alistamento: saco de dormir, serra, fogareiro a gás. Ele também comprou painéis solares, uma barraca para pescar no gelo e uma antena de satélite para continuar trabalhando online.

Recrutas se despedem de familiares antes de partirem para a convocação em Omsk, na Rússia Foto: Alexey Malgavko/Reuters

As declarações públicas de Shoigu afirmando que a mobilização acabou trouxe pouca paz de espírito ao especialista em TI e os outros russos escondidos. Nenhum decreto do governo foi emitido para pôr fim formalmente ao esforço de mobilização.

Então o especialista em TI, que se qualifica como pacifista, está agora no segundo mês como um ermitão antiguerra.

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Atualmente ele caminha três minutos entre sua “casa” e seu “escritório” — uma barraca à parte, montada em uma clareira mais elevada, o único local por perto com sinal relativamente estável de internet.

Ele cozinha ao ar livre e afirmou que sente falta de tomar banho com água quente e comer frutas frescas, mas que suas condições de vida ainda são muito melhores que as dos homens mobilizados e enviados para a Ucrânia. Centenas de novos recrutas russos, em sua maioria mal equipados e mal treinados, já foram mortos, de acordo com os meios de comunicação russos — o que reforça a decisão do especialista em TI de permanecer escondido.

“As primeiras notícias a respeito da mobilização mostraram que faltam às pessoas equipamentos básicos e que suas condições são péssimas”, afirmou ele, referindo-se a relatos de oficiais graduados que forçam os novos recrutas a comprar os próprios coletes à prova de balas ou dormir em barracas dilapidadas e sem aquecimento.

“Eles começam a sofrer mesmo antes de chegar às linha de frente e podem facilmente pegar, digamos, pneumonia, que ninguém vai se importar, o que me faz pensar”, afirmou ele. “Ou eu sou mobilizado e vivo como se estivesse em uma prisão, onde não temos direitos, apenas obrigações, ou fico aqui, onde ainda tenho muitos problemas e dificuldades, mas sou livre.”

Com as baixas entre os russos continuando a aumentar, e os soldados inevitavelmente precisando de revezamento, há pouca dúvida de que reforços serão necessários.

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“O tempo que centenas de milhares de soldados mobilizados permanecerá nas Forças Armadas é desconhecido”, escreveu no Telegram o advogado Pavel Chikov, do grupo de defesa de direitos humanos Agora. “Cedo ou tarde (…) por morte, ferimentos ou outras razões, seus postos terão de ser cobertos por recrutas.”

Um soldado russo ajusta o uniforme de um recruta convocado para o serviço militar Foto: Alexey Malgavko/Reuters

Um consultor financeiro de 24 anos de Moscou estava na mira dos oficiais de alistamento por ter servido anteriormente como soldado de operações especiais, e as autoridades militares tentaram rastreá-lo, disse ele ao Post.

Primeiro, a porta de seu apartamento em seu endereço declarado — todos os russos têm de registrar seu domicílio com as autoridades — ficou coberta de notificações de convocação militar. O consultor financeiro, que vive em outro lugar, nunca foi recolhê-las.

Então, o comissariado local enviou uma notificação ao escritório que ele trabalha. Sob a lei russa, empregadores são obrigados a entregar esses documentos aos funcionários, a lei prevê multas pesadas em caso de descumprimento. Mas em vez disso, sua empresa o demitiu no papel, e os chefes permitiram que ele trabalhasse remotamente, de maneira não oficial.

Dias antes da mobilização estar prevista para acabar, recrutadores militares foram ao apartamento dele acompanhados da polícia e perguntaram aos vizinhos a respeito do paradeiro do soldado.

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Desde o início da mobilização, o consultor financeiro, que se graduou em uma academia naval, sabia que seria convocado. “Eu usei uniforme seis anos”, afirmou ele. “Então já estava preparado para isso.”

Quando Putin emitiu o decreto, sua família quis fugir para o Casaquistão. Mas ele se recusou, temendo que poderia ser parado na fronteira ou teria um destino pior — classificado como desertor. Seus ex-colegas de serviço militar também foram bombardeados de notificações.

Mas o consultor afirmou que não estava disposto a lutar e morrer em um conflito sem sentido.

“Considero que esta não é absolutamente minha guerra. E não há nada para eu fazer por lá”, afirmou ele. “Conhecendo a mecânica dos militares, é assustador dar-se conta de quantos civis estão morrendo.” Ele acrescentou: “No nível político, nem me envolvo com isso e nem quero saber por que eles estão lutando na Ucrânia. Mas em nível pessoal e moral, não quero que isso aconteça.”

Ele foi se esconder em uma dacha, ou casa de campo, depois alternou entre apartamentos de vários amigos na região de Moscou. “Evitei qualquer transporte público”, afirmou ele. “Recusei-me a ir ao escritório sob qualquer circunstância, e não ficava em lugares públicos.” Depois que Putin declarou o fim da mobilização, o consultor retornou para o apartamento alugado em que vive, mas ainda mantém um perfil discreto.

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Um produtor musical de 40 anos, de Moscou, que passou por treinamento militar na universidade, também teve oficiais de alistamento batendo repetidamente na porta do apartamento de sua propriedade, mas que ele aluga.

“Sou contra a guerra, nunca machuquei ninguém na minha vida”, afirmou o produtor, sentado em um quarto pouco iluminado de seu estúdio musical, decorado com parafernália soviética. “Resolver diferenças por meio de violência é a maneira mais primitiva, um retorno ao estado animal.”

O produtor se afastou de sua mulher e filhos e passou a dormir no sofá do estúdio, assustado após saber que um amigo, também escondido, recebeu uma notificação de conscrição de policiais que o pararam de carro.

A maioria dos amigos do produtor deixou a Rússia, e sua mulher implorou-lhe que fizesse o mesmo, ameaçando até se divorciar caso ele não concordasse. Mas ele se recusou, afirmando que não permitira que Putin “passasse o rolo compressor” sobre a vida que ele construiu em Moscou.

“Nunca fui apegado à Rússia, sempre me considerei cidadão do mundo”, afirmou o produtor. “Mas quando a guerra começou, isso reverteu de alguma maneira meu pensamento. (…) Decidi que não vou fugir. Sou residente com direitos plenos neste país, e só porque um sujeito pirou, não significa que tenho de abandonar minha casa, minhas convicções e meu trabalho.”

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Ele continua a viver “fora do sistema” — evitando o metrô, atravessando a rua se vê homens de uniforme na mesma calçada e principalmente deixando seu telefone desligado para não ser rastreado. “Acho que você tem de adotar uma estratégia de segurança máxima se decide ficar por aqui”, afirmou ele. “A situação pode piorar. Há rumores de que haverá uma segunda onda de alistamento, talvez uma terceira.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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