Jair Bolsonaro será lembrado não apenas como o pior presidente da história do Brasil, mas também o responsável pela política exterior que entrará para os anais da história como a pior de todos os tempos. O trio composto por Ernesto Araújo, Eduardo Bolsonaro e Filipe Martins se encarregou de implementar a destruição do capital diplomático do país no mundo, tudo em nome de uma suposta "revolução conservadora". Não sobrou pedra sobre pedra.
A chegada de Carlos França ao Itamaraty foi recebida com alívio. O ajuste de narrativa melhorou e a pirotecnia diplomática cessou. Mais do que implementar uma política essencialmente distinta, mudou a forma e tem prevalecido a contenção de danos. Devolver à diplomacia brasileira o mínimo de austeridade e de sobriedade já representa um certo alento. No que diz respeito às modificações de fundo, contudo, há ainda um longuíssimo caminho a percorrer. Os malfeitos foram de tamanha grandeza que a reorganização da política exterior levará anos para ser concluída.
O fato é que o Brasil segue isolado e imobilizado em vários tabuleiros. Já sob a nova gestão de Carlos França, o presidente da República participou do evento convocado pelo presidente americano, Joe Biden, sobre as mudanças climáticas. O discurso de Bolsonaro naquele evento não foi de todo ruim, mas foi pouco convincente por contrastar com a prática no terreno, onde a marcha da destruição ambiental segue a todo vapor. Isso sem contar que na América do Sul o Brasil está em queda livre e o Mercosul está completamente à deriva.
A aposta do governo Bolsonaro em Macri, Trump e Netanyahu foi torpedeada pelo curso natural da política. Em dois anos de governo, o Brasil ficou sem aliados e fez esforço para criar inimizades. Os novos governos da Argentina, EUA e Israel tem operado no sentido de manter uma distância segura do governo brasileiro. Com Fernandez, Bolsonaro vive às turras. A relação com Biden é fria e Washington procura operar com excesso de pragmatismo para extrair de Brasília o que melhor atende ao seu interesse nacional. O novo governo em Israel, por sua vez, imerso em tantas outras preocupações, não incluiu por hora o governo Bolsonaro no seu rol de prioridade.
Em termos administrativos, o Itamaraty nunca esteve tão carcomido. A gestão Araújo deixou a Casa de Rio Branco literalmente na lona, com o moral no ponto mais baixo de sua história. O orçamento do Ministério das Relações Exteriores é o menor desde a redemocratização – e isso sem contar que quase todas as representações diplomáticas operam hoje à mingua, com atrasos vergonhosos no primeiro semestre deste ano das contas mais básicas.
Com orçamento reduzido e sem rumo de política externa, o Itamaraty é hoje uma sombra do que foi no passado. Os ajustes executados ao longo dos 100 dias de gestão de Carlos França, embora apontem para um aparente retorno da lógica de racionalidade, não representam uma mudança real nos vetores que informam a política externa. Nem de longe são capazes de delinear novos vetores estratégicos para nortear a diplomacia nacional, que segue sem rumo definido. São ajustes táticos pontuais e limitados a ensaios sem preponderância mais profunda. Na prática, a contenção de danos não impedirá que a política exterior siga ruinosa.
O grande desafio deste ano será a COP de mudança do clima em Glasgow, em novembro próximo. Sem redução real do desmatamento – o que não ocorrerá até o final do ano –, o Brasil não tem muito o que apresentar. E o que porventura tentar apresentar, por óbvio, não terá muita credibilidade. A única coisa tangível virá – se vier – dos setores agrícola, ambientalista e do esforço engendrado pela senadora Kátia Abreu e pelo senador Jaques Wagner, presidentes das comissões de relações exteriores e do meio ambiente do Senado, respectivamente.
Em 2022, o país já estará imerso em campanha eleitoral. E se não temos ainda uma diplomacia presidencial condizente com a envergadura do Brasil e em conformidade com as necessidades de nossa sociedade – o que impera aliás é a anti-diplomacia presidencial – no próximo ano, de certo, é que não há chance de termos. Mesmo porque, enfim, ninguém quererá se aproximar de um governo em franco derretimento, tóxico e com data marcada para ser punido nas urnas pelo soberano voto popular. E qualquer movimento em direção a um golpe autoritário deixará o Brasil nu, sem reconhecimento e nem legitimidade.
Por tais razões, a Frente Democrática da Política Externa – grupo composto pelos ex-chanceleres Celso Amorim, Celso Lafer e Aloysio Nunes Ferreira e pelo ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente Rubens Ricupero, além do autor deste artigo, seguirá defendendo a reconstrução de uma política exterior baseada nos pilares do artigo 4˚ da Constituição Federal. Embora parte do objetivo dessa Frente tenha sido materializado com a saída de Ernesto Araújo, o desafio doravante é propor ao país linhas de ação no plano internacional de olho no pós-Bolsonaro. O Brasil merece ter uma política externa digna, capaz de ajudar a solucionar os grandes problemas nacionais, que projete um país que assume suas responsabilidades e volta a ser respeitado porque se dá ao respeito.
*É cientista político, professor de Relações Internacionais e pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.
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