Imperialismo, isolacionismo e Doutrina Monroe: como as ideias de Trump chocam Washington

Presidente americano foi eleito com uma plataforma isolacionista, mas surpreendeu o mundo com ideias que sinalizam um imperialismo americano que remete ao século 19

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Foto do author Daniel Gateno

Donald Trump foi eleito duas vezes presidente dos Estados Unidos com o slogan “América em primeiro lugar”, um conceito isolacionista que quebrou com o status quo da política americana que prevalecia desde a 2ª Guerra. Mas o início de seu segundo mandato vem mostrando uma faceta diferente: o imperialismo. Se por um lado Trump ameaça a participação dos EUA em alianças como a Otan e segue apostando em tarifas, por outro o republicano sugere ideias como comprar a Groenlândia, anexar o Canadá e o Canal do Panamá e tomar o controle de Gaza.

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A mistura destes dois Trump tem surpreendido o público americano e analistas que acompanham o cenário político em Washington.

Desde antes da posse, o presidente dos Estados Unidos invoca conceitos de política externa que eram mais naturais no século 19 e no começo do século 20, incluindo propostas imperialistas e a volta da chamada Doutrina Monroe — que ficou conhecida pelo slogan “América para os americanos”. Em seu discurso inaugural no dia 20 de janeiro, Trump citou o ex-presidente William McKinley, que governou entre 1897 e 1901, como um exemplo a ser seguido.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, participa de um evento na Casa Branca, em Washington  Foto: Alex Brandon/AP

Durante seu mandato, McKinley garantiu um rápido crescimento econômico para os EUA, impôs tarifas e anexou territórios como Porto Rico e Guam. Na época, ele aliou protecionismo e imperialismo, como agora parece ser o objetivo de Trump.

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“Donald Trump de fato se encaixa bem nas ideias intelectuais do século 19″, avalia Michael O´Hanlon, diretor do programa de política externa do Instituto Brookings, think tank com base em Washington. “A proposta de tentar anexar a Groenlândia relembra como os EUA se comportaram naquela época, quando o país tomou grande parte do sudoeste do México, expandiu para o oeste para confiscar terras de indígenas, comprou a Louisiana da França e encontrou uma maneira de tomar o Havaí e Guam”.

A evolução ideológica de Trump

A retórica imperialista faz parte da guinada ideológica de Trump ao longo de uma década na política americana. O então empresário do ramo imobiliário se lançou candidato nas primárias republicanas em 2015 e foi eleito no ano seguinte com sua plataforma protecionista e isolacionista, mas chegou a Washington como um novato e precisou se aliar à ala mais tradicional do partido para montar seu gabinete.

Os atritos entre os dois setores da legenda se mostraram evidentes desde o início do primeiro mandato de Trump. Enquanto a ala mais tradicional tem posições mais próximas do ex-presidente Ronald Reagan, conhecido pela abertura de comércio, diminuição de tarifas e expansão da influência americana no mundo, Trump acredita que uma postura protecionista irá impulsionar a indústria americana. Ele também é um crítico contumaz de organismos internacionais e da ajuda militar e econômica fornecida por Washington a outros países.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, conversa com jornalistas após assinar um decreto federal que indica que o dia 9 de fevereiro será o dia do Golfo da América  Foto: Ben Curtis/AP

As diferenças entre as alas do partido tornaram a participação de republicanos tradicionais na administração Trump cada vez menor. Figuras como John Bolton, Mark Esper e Rex Tillerson, republicanos centristas de longa data, ficaram para trás e Trump se cercou de aliados do seu movimento MAGA (“Make America Great Again”).

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Para Charles Kupchan, analista do Council on Foreign Relations e professor de relações internacionais da Universidade de Georgetown, a saída dos republicanos tradicionais do governo tornou Trump mais livre para propor suas ideias em seu segundo mandato.

“Trump se sente mais confortável na Casa Branca desta vez e sem ninguém para freá-lo”. aponta Kupchan.

O presidente americano controla o Partido Republicano com mãos de ferro e está empoderado depois da grande vitória presidencial de 2024, quando conquistou o voto popular e venceu a disputa contra Kamala Harris em todos os Estados-pêndulo.

“Trump conta com mais apoio, está mais confiante e tem mais experiência para aplicar a sua agenda política”, avalia o especialista.

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O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, participa de uma reunião com o rei Abdullah II, da Jordânia, no Salão Oval  Foto: Alex Brandon/AP

Imperialismo trumpista

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Mas as posições de longa data que contribuíram para a chegada de Trump à Casa Branca parecem ter mudado. Antes da vitória presidencial de 2024, o republicano se mostrou contra intervenções militares americanas ao redor do globo e se gabou do período de estabilidade no mundo durante o seu primeiro mandato. Agora, Trump diz que não descarta tomar a Groenlândia e o Canal do Panamá por meio da via militar e que os EUA poderiam assumir Gaza.

Apesar das ideias imperialistas soarem contraditórias ao lado dos conceitos isolacionistas que impulsionaram o presidente, o analista e historiador Lucas de Souza Martins, da Temple University, indica que a base trumpista segue defendendo as ideias do republicano. “Para a base de Trump, ele está simplesmente colocando o interesse dos Estados Unidos em primeiro lugar. As ameaças imperialistas de Trump são vistas como benéficas para o próprio país”.

Analistas entrevistados pelo Estadão avaliam que está muito cedo para indicar as reais intenções de Trump com suas declarações, principalmente por conta da volatilidade de seu modus operandi.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, participa de uma coletiva de imprensa no Salão Oval ao lado do empresário Elon Musk  Foto: Alex Brandon/AP

Segundo O´Hanlon, do Instituto Brookings, é preciso diferenciar cada ideia de Trump. “A sugestão de tomar a Groenlândia é o único caso de possível imperialismo que vejo, mas precisamos esperar para ver. Em relação ao Panamá, me parece uma volta da Doutrina Monroe”.

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A Doutrina Monroe foi criada pelo presidente americano James Monroe, em 1823. Segundo a doutrina, os Estados Unidos deveriam fazer de tudo para proibir qualquer interferência da Europa no continente americano. Quando a doutrina foi criada, os países latino-americanos, que eram colônias de países europeus, estavam passando pelo processo de independência.

De acordo com o especialista, o Canal do Panamá se encaixa na doutrina porque, na visão de Trump, é controlado por um ator externo: a China. Apesar da acusação não ser provada, Trump passou a pedir a retomada do controle americano do local, que foi cedido ao Panamá em 1979.

Barco passa por contêiners no Canal do Panamá  Foto: Matias Delacroix/AP

Depois de uma visita do secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, o Panamá anunciou o cancelamento da participação do país no programa Nova Rota da Seda, da China, e iniciou uma auditoria de empresas chinesas que operam no local. Washington elogiou a medida e Trump diminuiu as declarações sobre o Panamá.

O principal interesse de Trump no Canal do Panamá é manter a China fora dele, aponta O´Hanlon. “Geralmente os EUA não tomam território nestes contextos, mas Washington tem a disposição de expulsar a presença de outros países e ameaçar a tomada de território para garantir essa saída. Isso não é imperialismo, mas sim uma tradição que ocorre desde Monroe”.

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Soberanismo

Em sua década na política americana, Trump conseguiu aliar conceitos isolacionistas, um impulso imperialista e uma disposição pelo uso da Doutrina Monroe. Mas para a professora de história americana da Universidade Rutgers, Jennifer Mittelstadt, o movimento político que melhor define o presidente americano é o soberanismo.

O movimento surgiu em 1919 nos Estados Unidos, em oposição a criação da Liga das Nações, a primeira organização intergovernamental do mundo. Este grupo político foi criado como um movimento contrário ao chamado internacionalismo, ideologia que defende uma maior cooperação entre os países para a busca de interesses comuns.

“O movimento surgiu com a ameaça que eles viam de um governo supranacional, que existiria acima das nações”, avalia a historiadora. “Eles entendem a ideia de soberania nacional quando sentem o medo de que podem ser governados por uma espécie de estrutura governamental mais ampla”.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, participa de uma coletiva de imprensa ao lado do primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, na Casa Branca  Foto: Alex Brandon/AP

O movimento consiste na ideia de soberania americana em todos os meios possíveis e uma atuação unilateral na política exterior, sem o engajamento em organismos internacionais que supostamente prejudicam a autogovernança americana.

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“O soberanismo explica o apelo para uma recuperação de territórios tradicionais americanos e de uma influência e autoridade americana que teria sido tirada dos Estados Unidos por acordos internacionais ilegítimos”, avalia a professora da Universidade Rutgers.

Segundo a especialista, o movimento contribui para o entendimento de muitas propostas de Trump, como a sua obsessão pela retomada americana do Canal do Panamá, uma pauta antiga dos soberanistas, o desmantelamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e a saída dos EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Americanos protestam após o desmantelamento da USAID, em Washington  Foto: Manuel Balce Ceneta/AP

“Os soberanistas acreditam que o Canal do Panamá é um território que é dos Estados Unidos e os cortes da USAID ressaltam o ceticismo dos soberanistas com uma sistemática ajuda internacional que o movimento sempre se opôs”, avalia a historiadora.

Apesar disso, o movimento não se considera isolacionista. Mesmo que seja contra organismos internacionais, o soberanismo preza pela unilateralidade e o apoio a regimes que tenham uma tendência anti internacionalista, como o governo de Viktor Orban, da Hungria, e de Giorgia Meloni, na Itália.

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A liderança de Trump

Desde sua criação, o movimento soberanista colecionou derrotas ao longo da história nos Estados Unidos, com o prevalecimento do internacionalismo como um conceito primordial no sistema político americano pós-2ª Guerra.

Mas o surgimento de Trump na política animou os adeptos e fez com que o movimento se alinhasse em torno dele. “Trump não é uma figura ideológica, ele usa qualquer ideologia que se alinhe com seus impulsos, mas o movimento encontrou nele o seu porta-voz e enxergou uma oportunidade de avançar em sua agenda”, aponta a historiadora.

Segundo a especialista, figuras influentes no governo Trump são soberanistas, como Stephen Miller, o vice-chefe de gabinete de Trump e conselheiro para política e imigração, Ed Martin, procurador-geral do Distrito de Columbia e diretor do Fórum Eagles, uma instituição conservadora, e Steve Bannon, ex-estrategista-chefe da Casa Branca.

“A ideologia soberanista é sentida de várias formas dentro da administração Trump, está no projeto 2025 e na linguagem de diversas organizações que apoiam Trump”, avalia a professora da Universidade Rutgers.

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A tática trumpista

Em meio às diversas esferas ideológicas que ajudam a explicar Donald Trump, um fator que contribui para o entendimento das ideias trumpistas é a disrupção.

Trump gosta de colocar as ideias para a opinião pública para depois analisar, aponta O´Hanlon, do Instituto Brookings. “Ele gosta do agito e da turbulência. Trump escuta a resposta do público para suas ideias e depois decide se vai de fato segui-las ou se vai modificar a proposta”.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, joga canetas que usou para assinar ordens executivas para seus apoiadores durante um evento em Washington  Foto: Matt Rourke/AP

Para Charles Kupchan, da Universidade de Georgetown, a missão de Trump é romper com o establishment político dos EUA para se colocar no centro das atenções. “Trump gosta de estar na mídia, ele usa a estratégia de mexer com a opinião pública segundo seus interesses”.

O´Hanlon destaca que o presidente americano se beneficia do caos gerado pelas suas ideias. “Ele poderia nos poupar de tudo isso e só falar quando tiver certeza do que quer fazer, mas ele gosta do drama”.

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