Donald Trump foi eleito duas vezes presidente dos Estados Unidos com o slogan “América em primeiro lugar”, um conceito isolacionista que quebrou com o status quo da política americana que prevalecia desde a 2ª Guerra. Mas o início de seu segundo mandato vem mostrando uma faceta diferente: o imperialismo. Se por um lado Trump ameaça a participação dos EUA em alianças como a Otan e segue apostando em tarifas, por outro o republicano sugere ideias como comprar a Groenlândia, anexar o Canadá e o Canal do Panamá e tomar o controle de Gaza.
A mistura destes dois Trump tem surpreendido o público americano e analistas que acompanham o cenário político em Washington.
Desde antes da posse, o presidente dos Estados Unidos invoca conceitos de política externa que eram mais naturais no século 19 e no começo do século 20, incluindo propostas imperialistas e a volta da chamada Doutrina Monroe — que ficou conhecida pelo slogan “América para os americanos”. Em seu discurso inaugural no dia 20 de janeiro, Trump citou o ex-presidente William McKinley, que governou entre 1897 e 1901, como um exemplo a ser seguido.

Durante seu mandato, McKinley garantiu um rápido crescimento econômico para os EUA, impôs tarifas e anexou territórios como Porto Rico e Guam. Na época, ele aliou protecionismo e imperialismo, como agora parece ser o objetivo de Trump.
“Donald Trump de fato se encaixa bem nas ideias intelectuais do século 19″, avalia Michael O´Hanlon, diretor do programa de política externa do Instituto Brookings, think tank com base em Washington. “A proposta de tentar anexar a Groenlândia relembra como os EUA se comportaram naquela época, quando o país tomou grande parte do sudoeste do México, expandiu para o oeste para confiscar terras de indígenas, comprou a Louisiana da França e encontrou uma maneira de tomar o Havaí e Guam”.
A evolução ideológica de Trump
A retórica imperialista faz parte da guinada ideológica de Trump ao longo de uma década na política americana. O então empresário do ramo imobiliário se lançou candidato nas primárias republicanas em 2015 e foi eleito no ano seguinte com sua plataforma protecionista e isolacionista, mas chegou a Washington como um novato e precisou se aliar à ala mais tradicional do partido para montar seu gabinete.
Os atritos entre os dois setores da legenda se mostraram evidentes desde o início do primeiro mandato de Trump. Enquanto a ala mais tradicional tem posições mais próximas do ex-presidente Ronald Reagan, conhecido pela abertura de comércio, diminuição de tarifas e expansão da influência americana no mundo, Trump acredita que uma postura protecionista irá impulsionar a indústria americana. Ele também é um crítico contumaz de organismos internacionais e da ajuda militar e econômica fornecida por Washington a outros países.

As diferenças entre as alas do partido tornaram a participação de republicanos tradicionais na administração Trump cada vez menor. Figuras como John Bolton, Mark Esper e Rex Tillerson, republicanos centristas de longa data, ficaram para trás e Trump se cercou de aliados do seu movimento MAGA (“Make America Great Again”).
Para Charles Kupchan, analista do Council on Foreign Relations e professor de relações internacionais da Universidade de Georgetown, a saída dos republicanos tradicionais do governo tornou Trump mais livre para propor suas ideias em seu segundo mandato.
“Trump se sente mais confortável na Casa Branca desta vez e sem ninguém para freá-lo”. aponta Kupchan.
O presidente americano controla o Partido Republicano com mãos de ferro e está empoderado depois da grande vitória presidencial de 2024, quando conquistou o voto popular e venceu a disputa contra Kamala Harris em todos os Estados-pêndulo.
“Trump conta com mais apoio, está mais confiante e tem mais experiência para aplicar a sua agenda política”, avalia o especialista.

Imperialismo trumpista
Mas as posições de longa data que contribuíram para a chegada de Trump à Casa Branca parecem ter mudado. Antes da vitória presidencial de 2024, o republicano se mostrou contra intervenções militares americanas ao redor do globo e se gabou do período de estabilidade no mundo durante o seu primeiro mandato. Agora, Trump diz que não descarta tomar a Groenlândia e o Canal do Panamá por meio da via militar e que os EUA poderiam assumir Gaza.
Apesar das ideias imperialistas soarem contraditórias ao lado dos conceitos isolacionistas que impulsionaram o presidente, o analista e historiador Lucas de Souza Martins, da Temple University, indica que a base trumpista segue defendendo as ideias do republicano. “Para a base de Trump, ele está simplesmente colocando o interesse dos Estados Unidos em primeiro lugar. As ameaças imperialistas de Trump são vistas como benéficas para o próprio país”.
Analistas entrevistados pelo Estadão avaliam que está muito cedo para indicar as reais intenções de Trump com suas declarações, principalmente por conta da volatilidade de seu modus operandi.

Segundo O´Hanlon, do Instituto Brookings, é preciso diferenciar cada ideia de Trump. “A sugestão de tomar a Groenlândia é o único caso de possível imperialismo que vejo, mas precisamos esperar para ver. Em relação ao Panamá, me parece uma volta da Doutrina Monroe”.
A Doutrina Monroe foi criada pelo presidente americano James Monroe, em 1823. Segundo a doutrina, os Estados Unidos deveriam fazer de tudo para proibir qualquer interferência da Europa no continente americano. Quando a doutrina foi criada, os países latino-americanos, que eram colônias de países europeus, estavam passando pelo processo de independência.
De acordo com o especialista, o Canal do Panamá se encaixa na doutrina porque, na visão de Trump, é controlado por um ator externo: a China. Apesar da acusação não ser provada, Trump passou a pedir a retomada do controle americano do local, que foi cedido ao Panamá em 1979.

Depois de uma visita do secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, o Panamá anunciou o cancelamento da participação do país no programa Nova Rota da Seda, da China, e iniciou uma auditoria de empresas chinesas que operam no local. Washington elogiou a medida e Trump diminuiu as declarações sobre o Panamá.
O principal interesse de Trump no Canal do Panamá é manter a China fora dele, aponta O´Hanlon. “Geralmente os EUA não tomam território nestes contextos, mas Washington tem a disposição de expulsar a presença de outros países e ameaçar a tomada de território para garantir essa saída. Isso não é imperialismo, mas sim uma tradição que ocorre desde Monroe”.
Soberanismo
Em sua década na política americana, Trump conseguiu aliar conceitos isolacionistas, um impulso imperialista e uma disposição pelo uso da Doutrina Monroe. Mas para a professora de história americana da Universidade Rutgers, Jennifer Mittelstadt, o movimento político que melhor define o presidente americano é o soberanismo.
O movimento surgiu em 1919 nos Estados Unidos, em oposição a criação da Liga das Nações, a primeira organização intergovernamental do mundo. Este grupo político foi criado como um movimento contrário ao chamado internacionalismo, ideologia que defende uma maior cooperação entre os países para a busca de interesses comuns.
“O movimento surgiu com a ameaça que eles viam de um governo supranacional, que existiria acima das nações”, avalia a historiadora. “Eles entendem a ideia de soberania nacional quando sentem o medo de que podem ser governados por uma espécie de estrutura governamental mais ampla”.

O movimento consiste na ideia de soberania americana em todos os meios possíveis e uma atuação unilateral na política exterior, sem o engajamento em organismos internacionais que supostamente prejudicam a autogovernança americana.
“O soberanismo explica o apelo para uma recuperação de territórios tradicionais americanos e de uma influência e autoridade americana que teria sido tirada dos Estados Unidos por acordos internacionais ilegítimos”, avalia a professora da Universidade Rutgers.
Segundo a especialista, o movimento contribui para o entendimento de muitas propostas de Trump, como a sua obsessão pela retomada americana do Canal do Panamá, uma pauta antiga dos soberanistas, o desmantelamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e a saída dos EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS).

“Os soberanistas acreditam que o Canal do Panamá é um território que é dos Estados Unidos e os cortes da USAID ressaltam o ceticismo dos soberanistas com uma sistemática ajuda internacional que o movimento sempre se opôs”, avalia a historiadora.
Apesar disso, o movimento não se considera isolacionista. Mesmo que seja contra organismos internacionais, o soberanismo preza pela unilateralidade e o apoio a regimes que tenham uma tendência anti internacionalista, como o governo de Viktor Orban, da Hungria, e de Giorgia Meloni, na Itália.
A liderança de Trump
Desde sua criação, o movimento soberanista colecionou derrotas ao longo da história nos Estados Unidos, com o prevalecimento do internacionalismo como um conceito primordial no sistema político americano pós-2ª Guerra.
Mas o surgimento de Trump na política animou os adeptos e fez com que o movimento se alinhasse em torno dele. “Trump não é uma figura ideológica, ele usa qualquer ideologia que se alinhe com seus impulsos, mas o movimento encontrou nele o seu porta-voz e enxergou uma oportunidade de avançar em sua agenda”, aponta a historiadora.
Segundo a especialista, figuras influentes no governo Trump são soberanistas, como Stephen Miller, o vice-chefe de gabinete de Trump e conselheiro para política e imigração, Ed Martin, procurador-geral do Distrito de Columbia e diretor do Fórum Eagles, uma instituição conservadora, e Steve Bannon, ex-estrategista-chefe da Casa Branca.
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“A ideologia soberanista é sentida de várias formas dentro da administração Trump, está no projeto 2025 e na linguagem de diversas organizações que apoiam Trump”, avalia a professora da Universidade Rutgers.
A tática trumpista
Em meio às diversas esferas ideológicas que ajudam a explicar Donald Trump, um fator que contribui para o entendimento das ideias trumpistas é a disrupção.
Trump gosta de colocar as ideias para a opinião pública para depois analisar, aponta O´Hanlon, do Instituto Brookings. “Ele gosta do agito e da turbulência. Trump escuta a resposta do público para suas ideias e depois decide se vai de fato segui-las ou se vai modificar a proposta”.

Para Charles Kupchan, da Universidade de Georgetown, a missão de Trump é romper com o establishment político dos EUA para se colocar no centro das atenções. “Trump gosta de estar na mídia, ele usa a estratégia de mexer com a opinião pública segundo seus interesses”.
O´Hanlon destaca que o presidente americano se beneficia do caos gerado pelas suas ideias. “Ele poderia nos poupar de tudo isso e só falar quando tiver certeza do que quer fazer, mas ele gosta do drama”.