O presidente Javier Milei publicou ontem o que vem sendo chamado pela imprensa na Argentina de “megadecreto”, com a revisão de mais de 300 leis, normas e portarias. A desregulamentação da economia foi bem recebida pelo mercado, com a bolsa operando em alta nesta quinta-feira, 21, mas a oposição peronista e os grupos que se sentiram prejudicados ameaçam entrar na Justiça contra o decreto. “As implicações legais são infinitas”, alerta o cientista político argentino Carlos de Angelis, em entrevista ao Estadão.
O especialista reconhece que alguns medidas são populares e atendem a demandas socioeconômicas, mas pondera que leis importantes foram revogadas sem que nenhum texto novo entrasse no lugar. A tendência, avisa, é de confusão e judicialização. É o que já prometem fazer os grupos de inquilinos, que temem perder garantias agora que devem acertar os termos do contrato, inclusive em que moeda os valores serão cobrados, direto com os proprietários, sem a Lei de Aluguel.
Além das disputas envolvendo o conteúdo, há também as críticas sobre a forma. Isso porque, lembra Carlos de Angelis, o instrumento é previsto na Constituição para emergências. E os críticos apontam que esse não é o caso.
Leia abaixo alguns trechos da entrevista
Qual a avaliação sobre o decreto econômico do governo?
O decreto é muito extenso e a primeira questão para a avaliação, sendo breve, é a própria substância de emitir um Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) para modificar ou revogar leis diretamente, observando que não há urgência para revogar uma lei que está em vigor há 50 anos como, por exemplo, a Lei de Abastecimento (que permite o controle de preços pelo Estado). E o mecanismo constitucional existe pensado para situações de muita emergência. É preciso observar o contexto político atual, o partido de Javier Milei tem uma minoria no Congresso. Isso faz com que seja difícil que isso passe no tempo em que ele quer e com a profundidade que tem esse decreto.
Qual a expectativa para a discussão na comissão do Congresso que tem o poder de manter ou derrubar do decreto?
Obviamente, isso tensiona fortemente o sistema de divisão de poderes, base da democracia na Argentina. Haverá muita discussão. (...) Além disso, combina temas completamente diferentes e, alguns casos, revoga leis diretamente deixando atividades sem enquadramento legal. Então, há uma discussão que é política e, pode-se dizer, de ética democrática e outra discussão sobre o conteúdo.
Mais sobre o 'megadecreto' na Argentina
Até que ponto foi uma surpresa?
Quanto aos conteúdos, são propostas inúmeras mudanças, algumas das quais fizeram parte da campanha de Milei. Talvez não com a mesma profundidade, mas sabia-se que a ideia era uma desregulamentação completa da economia e (o decreto) vai nesse caminho, mas ele nunca disse, por exemplo, que revogaria a Lei de Terras.
Tinha uma ideia geral de que isso iria acontecer, ele faz esse decreto e ainda há uma série de leis que ele vai propor porque alguns temas não podem ser alterados por decreto de urgência, como as leis panais, impostos, questões eleitorais... Nada disso pode ser alterado por decreto. Mas o fundamento é a mudança profunda da economia.
Quais são as possíveis implicações?
Alguns dos pontos propostos são populares porque a economia, o sistema regulatório inundou a sociedade com regulações que as pessoas não sabem nem que existe. Mas há também mudanças mais profundas.
As implicações jurídicas são infinitas, ou seja, quem sentir que os seus direitos estão afetados irá a tribunal e isso poderá finalmente chegar ao Supremo Tribunal e haverá um número incontável de questões que serão bastante complexas de acompanhar.
Os inquilinos, por exemplo, já disseram que devem entrar na Justiça... como fica a questão dos alugueis?
Há uma série de leis que foram revogadas sem que nenhuma nova lei fosse posta no lugar. Os inquilinos devem ser os primeiros a entrar na justiça porque agora (com a revogação da lei de alugueis) passa a ser um acordo direito entre as partes e o inquilino, em tese, tem menos capacidade de negociação. Então, ele vai precisar primeiro de uma assistência jurídica para saber o que está assinando. Depois, tem o custo porque se o proprietário exigir que o pagamento deve ser em dólar, é o dobro porque o (ministro da Economia, Luis) Caputo anunciou na semana passada a desvalorização do peso. O dólar foi de 400 para 800 pesos na cotação oficial. Isso vai gerar conflitos e são dez milhões que pessoas que alugam. Esse é um exemplo que serve para outros casos em que leis foram revogadas sem nada no lugar.
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