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Impopulares e com problemas, líderes de esquerda na América do Sul colocam ‘onda rosa’ em xeque

Presidentes de esquerda que governam países latino-americanos estão enfrentando baixa popularidade, crise econômica e problemas de segurança que abrem caminho para a direita em muitos países

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Foto do author Daniel Gateno
Atualização:

Aumento do custo de vida, piora da segurança pública e dificuldade em construir consensos com o Parlamento têm dificultado a vida de líderes de esquerda eleitos nos últimos anos na América do Sul. O resultado é a queda da popularidade de presidentes na Argentina, Chile, Colômbia, e Peru, que abriu caminho para a oposição à direita.

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O insucesso dos esquerdistas no continente deu fôlego à direita, que tem encontrado um discurso para se contrapor à chamada ‘onda rosa’, como alguns analistas chamaram a eleição de candidatos esquerdistas em países da região nos últimos anos. O termo não é consenso, porque muitos analistas enxergam uma rejeição a governantes em geral, o que seria uma onda ‘anti-incumbente’ na região. Ainda assim, a maioria desses governos de esquerda hoje enfrenta problemas.

Para analistas ouvidos pelo Estadão, há um descompasso entre a agenda desses líderes e as necessidades da população, o que facilita a ascensão da direita, como é caso da eleição argentina no mês que vem, onde a oposição é favorita. “A esquerda passou a se preocupar com uma agenda progressista, que não é o foco da parcela da população mais pobre, sem dinheiro para pagar as contas no final do mês e não estão preocupadas com o aquecimento global ou com a paridade de gênero”, diz a diretora da Escola de Política e Governo da Universidade Católica Argentina, María Lourdes Puente. “Por esse mesmo motivo Donald Trump foi eleito nos Estados Unidos em 2016. Quem não tem o que comer não vai discutir problemas relacionados à sustentabilidade.”

Cúpula de líderes da América do Sul em Brasília, em maio deste ano: descompasso entre os políticos e os anseios da população Foto: Wilton Junior/Estadão

Os casos mais notórios são os dos presidentes do Chile, Gabriel Boric, da Colômbia, Gustavo Petro, além da inoperância do mandatário argentino, Alberto Fernández, tão impopular que sequer ousou tentar a reeleição. Na Argentina, o caos econômico e político tornou incerto até mesmo o futuro do Mercosul. Milei afirmou que, caso eleito, vai tirar o país do bloco econômico. O presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, de centro direita, também já reforçou que quer fechar um acordo de livre-comércio com a China.

No Peru, o ex-presidente Pedro Castillo, sindicalista rural e de esquerda, eleito em julho de 2021, foi preso após dissolver parcialmente o Congresso do país e tentar um golpe. Pouco depois o Congresso peruano aprovou o impeachment de Castillo. Na Bolívia, o presidente Luis Arce perdeu apoio por conta da crise econômica do país e não está bem colocado para o pleito de 2025, que terá a presença do ex-presidente Evo Morales, ex-aliado de Arce, como candidato.

No caso de Boric e Petro, a falta de maiorias legislativas prejudicam a realização de sua agenda. A reforma tributária, proposta pelos dois mandatários, não avançou nem no Chile nem na Colômbia. Boric enfrenta uma dor de cabeça grande com o processo constituinte chileno, depois que uma Assembleia dominada pela esquerda teve seu projeto de Carta Magna rejeitado nas urnas. Petro, por sua vez, enfrenta denúncias de corrupção que envolvem seu filho e o suposto financiamento de narcotraficantes a sua campanha.

Argentina

A longa crise política e econômica prejudica a vida dos argentinos, que sinalizam a intenção de buscar um candidato de fora do establishment, com novas soluções. Com uma inflação anual que chegou a 124% em agosto, dívidas com o FMI e as reservas em dólares no vermelho, a Argentina tem problemas com a alta de preços e a dificuldade de abastecimento e de receber produtos importados.

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O discurso explosivo e as soluções pouco convencionais de Javier Milei, da coalizão A Liberdade Avança, atraíram os argentinos, cansados da ineficácia dos candidatos oriundos da política tradicional. Dentre as propostas de Milei, a dolarização da economia, privatização de estatais e o fechamento do Banco Central do país estão entre as mais chamativas.

O candidato a presidência da Argentina, Javier Milei, discursa em comício em Buenos Aires, Argentina  Foto: Luis Robayo/AFP

Milei lidera as intenções de voto para ir ao segundo turno, possivelmente contra o atual ministro da Economia, Sergio Massa, da coalizão União pela Pátria, que envolve peronistas e kirchneristas. A candidata Patricia Bullrich, apoiada pelo ex-presidente argentino Mauricio Macri, está na terceira colocação nas pesquisas.

“Milei consegue sair de sua bolha e explorar canais onde a política não entra muito, com youtubers, tiktokers. Se Bullrich ou Massa fizerem um Tiktok, isso só será visto por seus seguidores, eles não conseguem sair da bolha. Milei consegue.”, avalia a diretora da Escola de Política e Governo da Universidade Católica Argentina. “Ele já gerou um choque na política argentina, vamos ver se vai conseguir se manter assim até as eleições.”

Para a professora, o atual presidente do país, Alberto Fernandez, não conseguiu unir a sua própria coalizão, que brigava entre si, sem avançar em sua agenda de propostas.

“A gestão Fernandez foi se imobilizando, sempre com uma desculpa para não alavancar. Fernandez foi perdendo o respeito e a confiança da população e hoje parece que o presidente é o atual ministro da Economia, Sérgio Massa, porque Fernandez desapareceu da agenda pública”, completa Puente.

O ministro da Economia, Sergio Massa (à esquerda), conversa com o presidente da Argentina, Alberto Fernandez (direita), em evento em Buenos Aires  Foto: Maria Eugenia Cerutti/Presidência da Argentina

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Chile

O presidente chileno Gabriel Boric, de 37 anos, o mais jovem da história do país, sempre se apresentou como um governante de esquerda com um verniz diferente. Com críticas à ditadura de Maduro na Venezuela e a de Daniel Ortega, na Nicarágua, aliados do presidente Lula, Boric também condenou a Rússia pela invasão à Ucrânia e se mostrou mais amigável com Kiev do que o governo brasileiro.

Acenando cada vez mais ao centro para ter mais governabilidade, Boric teve dificuldade de impor a sua agenda e coleciona derrotas políticas, como a recusa do Congresso, com maioria de centro direita, de aprovar a sua reforma tributária, além de problemas com a inflação alta, o aumento da criminalidade e o fracasso no processo da nova Constituição.

“O maior problema de Boric é que ele tem uma rejeição muito forte e o Chile está com um pêndulo político mais voltado para a direita neste momento, principalmente depois que a sua proposta de Constituição fracassou”, avalia Simón Escoffier, professor de sociologia da Pontifícia Universidade Católica do Chile.

O presidente do Chile, Gabriel Boric, discursa em Washington, durante visita aos Estados Unidos  Foto: Jose Luis Magana/AP

A série de reveses de Boric levou o presidente ao seu índice de aprovação mais baixo, de 20%, após o plebiscito constitucional que rejeitou a proposta de uma nova Carta Magna para o país, no segundo semestre de 2022. Em março deste ano, nas novas eleições constituintes, o eleitor chileno castigou Boric com a vitória do Partido Republicano, da direita radical, favorável à manutenção da atual Constituição do Chile. Nas pesquisas mais recentes, Boric chega a 28% de aprovação e tem uma rejeição de 65%.

“A esquerda via muito Boric como um sinônimo de diversas mudanças estruturais, mas isso não está acontecendo e o presidente está negociando muito com o setor privado e os militares, o que frustra o eleitorado de esquerda”, diz Escoffier.

O aumento da violência no país também afetou a imagem de Boric. Em 2022, os homicídios cresceram 33,4% em relação ao ano anterior, segundo dados da subsecretaria de Prevenção da Criminalidade do Chile. O número representa a segunda maior variação na América Latina, perdendo apenas para o Equador, onde se observou um aumento de mais de 80% deste tipo de crime. Os roubos violentos aumentaram 63,1% em 2022 e os de automóveis, 39,8%.

O que tem ocorrido é um incremento de crimes violentos, algo a que o Chile, com uma das menores taxas da região, não está acostumado. No primeiro semestre de 2022, a quantidade de homicídios no país aumentou 28,7% em relação ao mesmo período de 2021.

“As estatísticas do Chile em relação à segurança são boas na comparação com outros países da região, mas o aumento de crimes mais violentos preocupa. As propostas de Boric eram pensadas em um contexto de mais segurança e o contexto não é mais o mesmo, então a direita está capitalizando isso muito bem”, pondera o professor.

Colômbia

Após uma eleição histórica na Colômbia, fazendo o ex-guerrilheiro Gustavo Petro se tornar o primeiro presidente de esquerda da história da Colômbia, o líder colombiano sofre com uma popularidade em queda. Petro assumiu em agosto do ano passado, mas nunca foi unanimidade. Eleito em uma eleição acirrada, ele teve 50,46% dos votos, superando o populista de direita Rodolfo Hernández, que teve 47,28% dos votos.

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Segundo uma pesquisa feita pela Invamer, empresa colombiana de análise de mercado, Petro tem 33% de aprovação e 61% de desaprovação. A popularidade de Petro foi despencando em seu primeiro ano de mandato, principalmente pela dificuldade do presidente colombiano de conseguir aprovar no Congresso as suas propostas de reformas trabalhista, previdenciária e de saúde, criticadas por uma parcela grande da população.

“O que acontece com vários governos de esquerda, e aconteceu com Petro, é que os governantes chegam ao poder prometendo reformas estruturais importantes e depois não conseguem manter essas promessas por causa de falta de apoio no Congresso”, avalia Andrés Londoño, cientista político pela Universidade Nacional da Colômbia e doutor pela UERJ.

O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, discursa na Assembleia-Geral da ONU, em Nova York, Estados Unidos  Foto: Mary Altaffer / AP

Para o especialista, o fato da esquerda nunca ter governado antes na Colômbia expõem dificuldades e falta de experiência sobre como lidar com a gestão pública. Londoño também destaca que é muito mais fácil para a direita fazer coalizões na Colômbia. “Vemos a direita com uma facilidade maior para negociar e conseguir uma governabilidade. Afalta de experiência da esquerda no poder na Colômbia e a dificuldade de fazer negociações faz com que seja muito difícil para Petro governar”, diz o professor.

Petro também reformulou o seu gabinete neste primeiro ano de governo, com a saída de diversos ministros, em meio à tentativa de manter uma coalizão frágil e incapaz de avançar a agenda do presidente colombiano. Petro teve a imagem desgastada por escândalos de corrupção envolvendo seu filho mais velho, Nicolás Petro Burgos. O Ministério Público da Colômbia apresentou na última segunda-feira, 25, uma denúncia por enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro.

A Justiça eleitoral da Colômbia já tem uma investigação aberta por supostas contribuições ilegais à campanha de Petro depois de áudios publicados pela revista A Semana e atribuídos ao ex-embaixador da Colômbia na Venezuela, Armando Benedetti, insinuarem que a campanha recebeu dinheiro do narcotráfico. O filho do presidente também já havia dito que a campanha do pai havia recebido dinheiro do tráfico. Petro negou as acusações.

Peru

O caos institucional se instalou no Peru desde que esquemas de corrupção relacionados ao caso Odebrecht, investigados pela Operação Lava Jato, levaram quatro presidentes do país à prisão. Com um discurso anti-sistema, o sindicalista e professor Pedro Castillo foi eleito em junho de 2021, em uma disputa decidida por menos de 1 ponto porcentual com Keiko Fujimori, candidata da direita e herdeira política de seu pai, o ditador peruano Alberto Fujimori.

“Pedro Castillo foi eleito no Peru por uma minoria, no primeiro turno teve 18% e depois foi eleito no segundo turno como uma forma de rechaçar a candidata Keiko Fujimori”, aponta o cientista político peruano Francisco Belaunde.

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O ex-presidente do Peru Pedro Castillo discursa em um comício em Lima, Peru: destituído e preso após tentar dar um golpe  Foto: Angela Ponce/Reuters

A trajetória de Castillo na presidência peruana terminou mal, com a prisão do político após tentativa de golpe de Estado, em meio a uma tentativa do Congresso peruano de aprovar um impeachment contra ele em dezembro do ano passado. Após a saída de Castillo, a vice Dina Boluarte assumiu o poder, o que resultou em longas manifestações de apoio a Castillo nas ruas de Lima, capital do país.

Os manifestantes exigem eleições antecipadas, que foram descartadas por Boluarte. A presidente deve continuar no poder até o final do mandato de Castillo, em 2026, data do próximo pleito. Boluarte tentou aprovar um projeto no Congresso peruano de antecipação do pleito, mas o texto não foi aprovado por falta de consenso.

“Castillo nunca foi muito popular e em pouco tempo seu governo passou a dar sinais de corrupção, além do fato de que ele designou pessoas para o seu gabinete que não eram capazes de ocupar os cargos que ocupavam e sua popularidade foi diminuindo até que ele tentou aplicar um golpe de Estado”, acrescenta Belaunde.

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