ENVIADO ESPECIAL A GUAYAQUIL, EQUADOR — Uma rajada de balas anunciou a sinfonia da tragédia. No último 11 de agosto, às 21h40, quatro homens armados com fuzis e revólveres desceram de seus carros perto de uma casa em Las Brisas, no setor Guasmo, ao sul de Guayaquil, irrompendo de forma abrupta a quietude da noite. Os homens dispararam à queima-roupa contra uma família que estava reunida na entrada da residência, e ao menos vinte tiros atingiram sete pessoas entre adultos e crianças. A fachada da casa, com paredes descoloridas e uma janela protegida por uma grade de ferro, acabou coberta por marcas de balas. O ataque deixou um saldo de três homens mortos, duas mulheres gravemente feridas e duas crianças atingidas — um bebê de sete meses e um menino de 12 anos que sobreviveram ao atentado. São as vítimas colaterais da violência extrema que tem tomado conta do Equador nos últimos anos.
O acontecimento deste dia é parte de uma narrativa contínua de desastres, que tem arrastado a população de cidades como Guayaquil a um completo estado de terror. Assassinatos encomendados, sequestros e roubos com violência desproporcional agora fazem parte do cotidiano nacional, enquanto cidadãos perdem a fé nas forças policiais, que não conseguem frear a onda de crimes que estourou com as guerras dos grupos narcotraficantes que controlam parte do país.
Na última quarta-feira, 16, por exemplo, a polícia registrou ao menos sete mortes cometidas por assassinos de aluguel em diferentes pontos da cidade. No dia anterior, um estudante de 16 anos havia sido morto com tiros na cabeça na saída do colégio José María Egas, no sul de Guayaquil, seu corpo abatido no chão junto com sua mala escolar. No início de agosto, um grupo de criminosos roubou o carro de um taxista para 24 horas depois cometer uma série de três assassinatos ao redor da cidade. Inúmeros casos similares a estes se repetem ao longo dos dias.
“A gente não sabe mais o que fazer para ficar em segurança. Agora há violência em qualquer lugar da cidade, eles matam em qualquer horário do dia”, disse ao Estadão Ana Mirta, de 57 anos, que trabalha vendendo frutas na Avenida 9 de Octubre, perto do Parque Centenário, no centro de Guayaquil. “No passado a cidade não era exemplo de segurança, mas nunca foi assim, nunca foi tão violenta, com tantas mortes”.
De acordo com dados divulgados pela Dinased, uma instituição da polícia nacional encarregada de investigar crimes contra a vida, mortes violentas, desaparecimentos, sequestros e extorsões, foi registrado de janeiro a junho de 2023 um aumento de quase 85% das mortes violentas na chamada “Zona 8″, que inclui Guayaquil, Durán e Samborondón. Os três cantões tiveram um total de 1.255 crimes, superando os 680 casos registrados durante o mesmo período em 2022. A instituição afirma que a maioria desses atos violentos ocorreu em Guayaquil, onde foram registradas 1.182 das mortes. Em Durán houveram 64 assassinatos; em Samborondón, 10. A inícios de julho, o ministro do Interior do Equador, Juan Zapata, disse que os números de mortes podem ser ainda maiores.
Para Ingrid Ríos, cientista política de Guayaquil, “a violência ligada ao tráfico de drogas tem tido um grande impacto no país, tem criado uma sensação generalizada de pânico, de perda de controle”, disse ela. “Não há mais uma convivência normal, em muitas das cidades as pessoas vivem sob medo contínuo”, afirmou ela.
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A cientista política acredita que o aumento de crimes violentos no Equador tem deixado em evidência o fracasso do Estado na luta pela normalização do país. “As pessoas estão desesperadas por justiça, por segurança. Mas se o Estado não cumpre sua função, quem pode ajudar os equatorianos?”
Freddy Ceballos, um comunicador visual de 41 anos, nasceu na cidade de Esmeraldas, mas mora em Guayaquil desde 2019. Para ele, no passado Guayaquil representava uma cidade de festas e de alegria, cheia de cheiros tradicionais que lembravam ele dos bons tempos em que visitava a cidade quando era criança. Contudo, “agora todo mundo está tenso, porque a cidade passou a ser sinônimo de perseguição, extorsão e narcotráfico”.
Oito meses atrás, Ceballos alugava uma casa em uma zona residencial de classe média chamada Villa Bonita, no norte de Guayaquil. Para ele, seus vizinhos pareciam pessoas comuns, trabalhadores, com famílias tradicionais. Mas em janeiro, Ceballos viu com consternação a notícia da morte de um dos seus vizinhos junto com outras pessoas e uma criança de apenas 1 ano de idade em uma casa no quilômetro 13 da estrada para Samborondón. E foi nesse momento que ele descobriu que seu vizinho era um narcotraficante que pertencia à organização criminosa Los Lobos — e que foi morto por criminosos do mesmo grupo. “Eu fiquei bastante chocado. A casa que ele [o vizinho] tinha no bairro ficava a 50 metros de distância da minha, era alguém que eu conhecia de vista. Tudo isso poderia ter ocorrido perto da minha família”, comentou Ceballos. “A gente está vivendo um momento muito complicado neste país. Cada dia está mais difícil se afastar da violência”, afirmou ele.
Durante décadas, a localização geográfica do Equador representou um grande desafio na luta contra o tráfico de drogas no país. Cercado por Peru e Colômbia, dois dos países que possuem os maiores níveis de produção de drogas na região, e dotado de portos importantes com saídas estratégicas para o Oceano Pacífico, o país sul-americano foi durante muito tempo sede informal de distribuição de cocaína para o mundo. No passado, o narcotráfico era relativamente controlado e não afetava de forma endêmica a nação. Agora a situação mudou radicalmente, e especialistas acreditam que os grupos criminosos que controlam o tráfico de drogas também cooptam o poder público para continuar seus negócios com impunidade.
Em fevereiro deste ano, a Comissária Europeia para Assuntos Internos, Ylva Johansson, declarou durante sua visita ao porto de Antuérpia, na Bélgica, que a maior parte da cocaína que chega ao território europeu vem do porto de Guayaquil, no Equador. Johansson havia entrado em contato com autoridades equatorianas e colombianas para desenvolver um plano conjunto que conseguisse barrar parte da exportação de cocaína. Contudo, apesar dos esforços significativos, o Equador tem sido incapaz de frear o tráfico. Só em julho deste ano, as autoridades do porto de Antuérpia apreenderam quase sete toneladas de cocaína escondidas em um carregamento de bananas provenientes de Guayaquil.
De acordo com um relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODOC), publicado em 2023, o Equador é um “importante país de partida da cocaína” e os narcotraficantes utilizam pelo menos três rotas marítimas de Guayas, Esmeraldas e Manabí”. Com base em relatórios da Organização Mundial de Alfândegas, o Equador ultrapassou o Brasil e a Colômbia em toneladas de cocaína enviadas para a Europa. Nos últimos cinco anos, a proporção do total de envios de droga sul-americana para os portos do continente europeu passou de corresponder 14% ao Equador em 2018, para 29% em 2020 e 28% em 2021. Números oficiais deste ano devem ser divulgados ainda, mas especialistas entrevistados pelo Estadão acreditam que este cenário só tem piorado.
Carolina Andrade, especialista em inteligência e Secretária de Segurança de Quito, afirmou em entrevista ao Estadão que há neste momento uma incapacidade do Estado equatoriano e do seu sistema de inteligência para descobrir e frear os fluxos de drogas. “O contexto atual do Equador é inédito, nunca tivemos este tipo de violência. Em meio de uma crise nas prisões do país, com os maiores grupos narcotraficantes adquirindo espaço por meio da violência e da expansão da sua atuação, correspondia ao Estado equatoriano fortalecer a institucionalidade da sua segurança — mas isso não ocorreu”, afirmou Carolina Andrade.
“O que temos presenciado nos últimos anos é um acelerado enfraquecimento do Estado, e consequentemente uma redução da capacidade de controle dos sistemas de inteligência. Isso tem facilitado a atuação de grandes grupos criminosos com Los Choneros, que agora passam a ocupar o espaço negligenciado pelo Estado”, disse a especialista. “Se o sistema de inteligência do Equador fosse funcional, muitas das ações criminais destes grupos teriam sido evitadas.
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No final do século anterior e no início do atual, o Equador viveu uma grande crise institucional. A taxa de rejeição dos governos era muito alta, o Banco Central não conseguia conter a inflação, a pobreza corroía a nação e a governabilidade era quase inexistente. Em 2007, Rafael Correa foi eleito. Nos anos seguintes, seu governo promoveu políticas sociais para combater a pobreza e aumentar a inclusividade de povos originários na sociedade equatoriana. Durante os dez anos seguintes, o país viveu um processo de estabilidade nunca antes visto, tornando-se o segundo país mais seguro do continente depois do Chile. Em 2017, por exemplo, a taxa de assassinatos do país era de 5 a cada 100 mil habitantes, uma das mais baixas do continente.
Contudo, diversos casos de corrupção abalaram o último governo de Rafael Correa, que acabou fugindo para a Bélgica para não ser julgado em um país que passou a ser controlado pela oposição. Os governos subsequentes, de Lenín Moreno e Guillermo Lasso, então buscaram acabar com todos os resquícios dos governos de Correa, priorizando medidas de austeridade enfraqueceram o Estado, cortando custos de agências governamentais, ministérios, departamentos da polícia e prisões.
Paralelamente, o fim da guerra entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o governo colombiano, após a assinatura do tratado de paz de 2016, gerou um vácuo de poder que abriu o mercado ilícito de drogas para outras organizações. As Farc, que utilizavam tradicionalmente o tráfico de drogas para financiar suas operações, controlavam grande parte do mercado. No processo de cessão do fogo, grupos dissidentes das Farc, que não aceitaram a paz, se viram na necessidade de transladar suas operações de drogas para outros países para continuar gerando os recursos financeiros que sustentam sua guerra. O Equador, fragilizado, virou então o alvo mais fácil e estratégico para instalar novas operações de exportação de cocaína. A taxa de assassinatos atingiu neste ano o número histórico de 26 pessoas a cada 100 mil habitantes.
Para Fernando Casado, analista e cientista político espanhol radicado no Equador, “esse contexto proporcionou que grupos criminosos como Los Choneros e Los Tiguerones se fortalecessem, se aproveitando da fragilidade do Estado equatoriano, enquanto cartéis mexicanos e grupos narcotraficantes de países europeus, como a Albânia, também buscavam controlar uma parcela do mercado de drogas da nação”.
Contudo, ele acredita que o assassinato em 2020 de Jorge Luis Zambrano González, líder de Los Choneros, “mudou radicalmente o cenário do país”. Organizações criminosas que antes respeitavam o comando de Los Choneros, se fragmentaram. E com isso outros grupos criminosos entraram em um violento conflito para tomar o poder e o controle do tráfico de drogas, espalhando caos e violência nas prisões do Equador — e posteriormente fora delas. “O governo já não conseguia controlar a situação”, disse Casado ao Estadão, “e o crime organizado cresceu onde o estado não estava presente”.
“Já não há limitações para o narcotráfico no Equador, e o fato de existirem políticos assassinados antes das eleições é uma prova do desastre institucional do país”, afirma ele.
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