BRASÍLIA - O espião russo Sergei Vladimirovich Cherkasov guardava consigo um documento de quatro páginas escrito em português (leia) com passagens da história do personagem que assumiu com identidade falsa para viver com um brasileiro. Eram aspectos pessoais e familiares da “lenda” de Victor Muller Ferreira, termo usado na espionagem para definir histórias fabricadas que encobrem a identidade de agentes de inteligência.
É um relato falso do início ao fim. A familiaridade com as informações ali descritas, entretanto, ajudou Cherkasov a se passar por brasileiro durante anos. A identidade verdadeira foi revelada depois que agências internacionais de inteligência descobriram o homem treinado por militares russos e ele acabou preso em Guarulhos com documentação falsa.
O espião vivia em São Paulo e se passava por brasileiro. Ele usou essa identidade para ir estudar na Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos, de onde tentou conseguir estágios em agências governamentais e internacionais. Ao conseguir um cargo no Tribunal Internacional em Haia, foi descoberto por autoridades americanas e holandesas e deportado para o Brasil.
O sotaque carregado era justificado por uma suposta ascendência alemã. A história que contava era a de que nasceu em Niterói (RJ), em 1989. Os primeiros anos no Rio de Janeiro foram tristes e complicados, segundo a história. A mãe morreu no parto, mas ele só saberia da perda da genitora aos 15 anos. Uma amiga da mãe assumiu a criação dele, e a vida tratou de levá-lo para viver temporadas curtas em diferentes cidades.
A ficção montada era a de que Victor chegou a atuar como vendedor, com distribuição de panfletos e até em uma oficina mecânica. Para tentar dar alguma aparência de realidade à história, a “lenda” descrevia desde detalhes sobre personalidade e aparência de pessoas que conheceu no caminho até cartazes pornográficos de modelos na parede da oficina.
As causas da mortes de cada suposto familiar eram narradas com alguma especificidade, como enfarte ou câncer. Tudo preparado para que a identidade do espião ficasse encoberta e ele pudesse convencer sobre os vínculos dele com o Brasil.
O documento narra um retorno ao País, em 2010, após um período na Europa. Nesse ponto, uma mescla de ficção e realidade. É que os registros da imigração mostram que naquele ano Cherkasov entraria pela primeira vez no Brasil.
Segundo a “lenda” elaborada pelo serviço secreto da Rússia, o regresso ao Brasil serviria para que ele passasse uma parte do passado a limpo com o pai, em Brasília, onde ele também poderia resolver “problemas com a restauração de sua cidadania” brasileira.
O documento diz ainda que, na capital federal, Victor Muller Ferreira se encantaria com os restaurantes a quilo. Um dos estabelecimentos preferidos era da Asa Norte, onde seria vendida a “melhor feijoada da cidade”.
O relato descrito como um roteiro para a história do personagem por trás da identidade falsa foi descoberto pelo serviço de inteligência holandês em 31 de março de 2022, quando Cherkasov desembarcou em Amsterdã para um estágio no Tribunal de Haia.
A Corte internacional tem investigações sobre possíveis crimes de guerra cometidos pela Rússia na guerra com a Ucrânia. Suspeita-se que um dos objetivos do governo de Vladimir Putin seria instalar Cherkasov no tribunal para que o espião tivesse acesso a esses documentos.
“A pessoa em questão trabalha para o Serviço de Inteligência Militar da Rússia (GRU), mas estava encoberto por uma identidade brasileira para viajar do Brasil à Holanda”, ressaltava um comunicado do serviço de inteligência holandês, de junho de 2022.
“O foco principal do GRU é a coleta de inteligência militar, mas ele também coleta informações de natureza mais política ou tecnológica. O GRU não apenas coleta informações, seus integrantes também realizam operações secretas.”
Os oficiais da inteligência holandesa comunicaram que às autoridades brasileiras que o espião havia sido barrado e seria mandado de volta ao Brasil. Ao chegar em Guarulhos, em 4 de abril de 2022, foi preso com os documentos falsos. Dois meses depois, seria condenado a 15 anos de prisão.
O governo da Rússia pediu a extradição de Sergey Cherkasov sob a justificativa de que ele é um traficante de drogas condenado que fugiu para não cumprir a pena. O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou a extradição, mas a condicionou à conclusão de um inquérito da Polícia Federal em São Paulo. Os agentes brasileiros investigam atos de espionagem praticados por Cherkasov no Brasil, além de crimes como corrupção e lavagem de dinheiro.
Em Cotia, na região metropolitana de São Paulo, o russo tinha um esconderijo para deixar equipamentos e mensagens que poderiam ser recuperados por outros integrantes de sua organização. O local foi descoberto a partir de dados encontrados no celular que ele usava no momento da prisão, em Guarulhos. A PF encontrou dispositivos no esconderijo e os repassou ao FBI.
Outros casos
Nos últimos meses, outros dois casos de espiões russos com identidades brasileiras falsas vieram à tona. Em outubro, o serviço de inteligência da Noruega deteve Mikhail Valeryevich Mikushin. Ele se apresentava como o pesquisador José Assis Giammaria, na Universidade de Tromsø.
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E Gerhard Daniel Campos Wittich era o nome falso de um outro russo que morou no Rio de Janeiro por cinco anos e se dizia brasileiro com ascendência austríaca. Ele foi descoberto pela inteligência da Grécia, segundo o Guardian, porque a mulher dele, também espiã, estaria atuando em Atenas.
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