THE NEW YORK TIMES - Foi um dos momentos mais dramáticos em uma apresentação repleta de momentos dramáticos: pouco antes do presidente Donald Trump subir ao palco perto da Casa Branca no ano passado e conclamar seus apoiadores a “lutar até o fim” e marchar até o Capitólio, o ex-presidente foi foi informado que alguns deles estavam armados, segundo afirmou uma ex-assessora na terça-feira, 28, sem apresentar provas materiais.
Foi também um momento com potenciais consequências legais para qualquer processo contra Trump, segundo juristas americanos. Saber que a multidão de apoiadores detinha os meios para ser violentos quando ele os exortou a marchar até o Capitólio – e declarou que queria ir com eles – poderia deixar Trump mais perto de enfrentar acusações criminais.
“Isso realmente foi uma movimentação significativa, embora ainda haja um longo caminho a percorrer”, disse Renato Mariotti, analista jurídico e ex-procurador federal em Illinois.
Até que ponto a investigação criminal em expansão do Departamento de Justiça dos EUA está focada em Trump ainda não está claro. Mas as revelações no depoimento de Cassidy Hutchinson, uma ex-assessora da Casa Branca, ao comitê da Câmara, forneceram novas evidências sobre as atividades do ex-presidente antes do ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 e eliminaram qualquer defesa potencial de que ele estava apenas expressando opiniões bem fundamentadas sobre fraude eleitoral.
“Ainda há muita incerteza sobre a questão da intenção criminosa quando se trata de um presidente, mas o que acabou de acontecer mudou minhas conclusões”, disse Alan Rozenshtein, ex-funcionário do Departamento de Justiça que leciona na Faculdade de Direito da Universidade de Minnesota. “Eu fui de ‘é menos do que provável que Trump seja acusado’ para ‘é mais do que provável que ele seja acusado’.”
Um porta-voz do procurador-geral Merrick Garland se recusou a comentar o depoimento de Hutchinson - embora um dos antecessores de Garland tenha ponderado.
“O departamento está claramente investigando tudo isso, e esta audiência definitivamente deu aos investigadores muito o que mastigar”, disse William Barr, que renunciou ao cargo de procurador-geral de Trump depois de dizer publicamente semanas após o dia da eleição que não havia provas de fraude generalizada o suficiente para ter mudado o resultado das urnas.
Durante seu depoimento, Hutchinson contou uma conversa que teve em 3 de janeiro de 2021 com Pat Cipollone, o principal advogado da Casa Branca. Hutchinson descreveu como Cipollone a puxou de lado com preocupação naquele dia depois de saber que Trump estava pensando em marchar com seus apoiadores ao Capitólio após seu discurso perto da Casa Branca, em 6 de janeiro - uma decisão, ele sugeriu, que poderia ter grandes consequências.
“Seremos acusados de todos os crimes imagináveis”, disse Cipollone, segundo o relato de Hutchinson.
Um dos crimes com os quais Cipollone estava preocupado, contou Hutchinson, era o mesmo que o comitê acusou Trump de cometer em um processo judicial anterior: a obstrução de um processo no legislativo - no caso, a certificação do resultado da eleição pelo Colégio Eleitoral no Capitólio, em 6 de janeiro.
Um juiz federal em um processo civil relacionado ao trabalho do comitê da Câmara também concluiu neste ano que Trump e um de seus assessores jurídicos, John Eastman, provavelmente cometeram crimes, incluindo obstrução do trabalho do Congresso e conspiração para fraudar os Estados Unidos, por meio de seus esforços para bloquear a certificação dos resultados do Colégio Eleitoral.
De acordo com Hutchinson, outro crime em potencial que preocupou Cipollone foi a incitação à desordem. Essa ofensa, embora mais simples em teoria do que obstrução ao processo legislativo, exige que os promotores obtenham uma grande quantidade de provas e demonstrem que as palavras do réu representavam uma ameaça imediata de ilegalidade ou perigo.
Alguns juristas disseram que o testemunho de Hutchinson é o melhor argumento até agora para mostrar que Trump de fato incitou a multidão.
Para Entender
“Até este ponto, não tínhamos provas de que ele sabia da violência”, disse Daniel Goldman, ex-promotor federal que atuou como principal advogado durante o primeiro impeachment de Trump. “O testemunho deixou muito claro que ele não apenas estava totalmente ciente da ameaça, mas queria que pessoas armadas marchassem para o Capitólio. Ele estava mesmo disposto a liderá-los.”
No começo do ano, um juiz federal em Washington, determinando que um grupo de ações civis alegando que Trump era responsável pela violência em 6 de janeiro poderia ir a julgamento, também sugeriu que o ex-presidente havia incitado a multidão que ouviu seu discurso.
Em sua decisão, o juiz Amit Mehta descobriu que, após meses criando um “ar de desconfiança e raiva” ao alegar incansavelmente que a eleição havia sido roubada, Trump deveria saber que seus apoiadores levariam seu discurso não apenas como palavras, mas como “um apelo à ação”.
O juiz Mehta também decidiu que Trump poderia ser razoavelmente responsabilizado por ter ajudado e instigado aqueles que agrediram policiais durante o ataque ao Capitólio.
Após 18 meses, a investigação do Departamento de Justiça sobre o ataque ao Capitólio resultou em mais de 840 processos criminais contra manifestantes sob acusações que variam de contravenção de invasão de propriedade a conspiração sediciosa.
Nos últimos dias, o inquérito se acelerou com uma enxurrada de mandados de busca e intimações, implicando alguns dos principais aliados de Trump em importantes estados e pelo menos dois advogados, Jeffrey Clark e Eastman, que trabalharam em planos separados, mas relacionados, para evitar a derrota eleitoral em 2020.
Ainda assim, não se sabe se os promotores estão analisando diretamente o próprio envolvimento de Trump em subverter a eleição ou inflamar a multidão que causou estragos no Capitólio.
Embora o comitê da Câmara sempre tenha reservado o direito de recomendar que Trump seja acusado, foi revelado este mês que o painel e o Departamento de Justiça estão em desacordo com as transcrições de entrevistas com testemunhas como Hutchinson, com altos funcionários do departamento reclamando que, ao reter até 1.000 transcrições, o comitê estava dificultando o trabalho de preparação dos casos criminais.
Outra questão que permanece desconhecida é se Hutchinson conversou com promotores federais sobre o que ela viu e ouviu dentro da Casa Branca em 6 de janeiro e os dias que antecederam isso.
O Departamento de Justiça já acusou mais de 220 manifestantes por obstrução, que exige provar que um réu interferiu de forma consciente e mal intencionada no trabalho do Congresso.
Alguns juristas sugeriram que Trump poderia se defender contra a acusação argumentando que não pretendia atrapalhar o trabalho do Congresso por meio de nenhuma de suas ações, mas estava agindo de boa fé para resolver o que ele acreditava sinceramente ser uma fraude na eleição.
Mas mesmo os especialistas que antes deram crédito a essa defesa sentiram que as novas revelações eliminavam a possibilidade de Trump alegar desconhecimento.
Durante todo o mês, o comitê da Câmara apresentou argumentos detalhados sobre por que Trump deveria ser acusado de crimes em uma série de audiências públicas. As apresentações retrataram Trump como estando pessoalmente envolvido em vários esforços para forçar legisladores estaduais, funcionários do Departamento de Justiça e até mesmo Mike Pence, seu próprio vice-presidente, em maquinações que o manteriam na Casa Branca.
Essas maquinações incluíram um complô para criar falsas listas de eleitores declarando que Trump havia vencido a eleição em estados que na verdade foram vencidos por Joe Biden, e um esforço subsequente para persuadir Pence a usar as falsas listas para subverter o funcionamento normal do Colégio Eleitoral e, sozinho, declarar Trump o vencedor.
O que a audiência de terça-feira acrescentou foi um relato cinematográfico da conexão de Trump com a violência no Capitólio.
“Esta é uma última peça dramática que enriquece a história”, disse Daniel Richman, professor de direito da Universidade de Columbia. “Mas não está claro se isso muda a questão fundamental da responsabilidade criminal.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.