Há lapsos freudianos e há o que o ex-presidente George W. Bush disse durante um discurso em maio passado. Falando para uma plateia em sua biblioteca presidencial no Texas, Bush condenou o presidente russo, Vladimir Putin, por começar uma invasão em grande escala na Ucrânia, vizinha de seu país. Mas Bush então cometeu uma gafe grave, lamentando publicamente “a decisão de um homem de começar uma invasão totalmente injustificada e brutal do Iraque”.
Ele rapidamente se corrigiu, dizendo “Ucrânia”, balançando a cabeça, e apelando para seu status de septuagenário. Risadas leves foram ouvidas na multidão solidária. Mas muitos outros não estavam rindo. A invasão do Iraque pelos Estados Unidos, que completa 20 anos nesta semana, foi vista pelos críticos da época como “totalmente injustificada” e potencialmente “brutal” - visões que só se tornaram mais difundidas nos anos seguintes.
O governo Bush tentou vender uma mentira para justificar sua intervenção “preventiva” contra o regime do ditador iraquiano Saddam Hussein. Sua caçada pelas supostas armas de destruição em massa do Iraque mostrou-se fútil e baseada em informações equivocadas. Sua insistência de que a mudança de regime traria maior estabilidade ao Oriente Médio provou exatamente o contrário, semeando um legado de instabilidade que levaria ao surgimento de organizações extremistas como o Estado Islâmico e à crescente influência regional do inimigo de Washington, o Irã. Sua visão de impor uma democracia liberal no Iraque provou-se ilusória, com o país consumido por anos de agitação política, paralisia parlamentar e corrupção.
Os iraquianos têm suas próprias opiniões diversas sobre o legado da invasão dos EUA, mas algumas realidades básicas são inevitáveis: centenas de milhares de civis iraquianos foram mortos após a queda de Saddam, com suas mortes pelo menos indiretamente ligadas ao caos desencadeado pelos Estados Unidos. A condução americana da guerra também tem vários capítulos sombrios, desde as câmaras de tortura de Abu Ghraib até a quase destruição da cidade de Faluja.
O autor iraquiano Sinan Antoon me disse isso em 2021: “Não importa o que acontecesse - e digo isso como alguém que se opôs ao regime de Saddam desde a infância e escreveu seu primeiro romance sobre a vida em uma ditadura - se o regime tivesse permanecido no poder, dezenas de milhares dos iraquianos ainda estariam vivos hoje, e as crianças em Faluja não nasceriam com defeitos congênitos todos os dias.”
O que isso tem a ver com a Ucrânia? Durante meses, autoridades americanas e europeias classificaram o conflito na Ucrânia em termos morais severos. Se Putin tiver sucesso com uma guerra de agressão através de suas fronteiras, o argumento acabou, e então uma agenda sombria de conquista territorial e a possibilidade de estar fazendo o que é certo ganha. O presidente Biden enquadrou a disputa como um confronto entre “todas as democracias” e o projeto autoritário de Putin. Em novembro passado, o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, descreveu os esforços coletivos dos aliados ocidentais da Ucrânia como um reflexo de “quanto os países ao redor do mundo valorizam e respeitam a ordem internacional baseada em regras”.
O legado do Iraque mina essa retórica. Para muitas pessoas no Oriente Médio e em outras partes do sul global, a invasão americana é o episódio recente mais flagrante em uma longa história de intromissão ocidental e hipocrisia dos EUA no cenário mundial. Para autoridades na China e na Rússia, adversários de fato dos Estados Unidos, a Guerra do Iraque é um precedente fácil de apresentar para derrubar os pontos de discussão de Washington, não importa o quão egoísta e cínico isso possa ser.
“As autoridades dos EUA frequentemente invocam [a ordem baseada em regras] ao criticar ou fazer exigências à China”, observou Paul Pillar, um veterano ex-oficial de inteligência dos EUA. “De forma alguma a guerra ofensiva contra o Iraque pode ser vista como consistente com o respeito a uma ordem internacional baseada em regras, ou então as regras em questão são regras estranhas.”
“Ninguém no governo Biden hoje se importa que [a Guerra do Iraque] arruinou a credibilidade que os Estados Unidos tinham como pilar da ordem internacional no sul global e deu a Putin cobertura para sua própria atrocidade”, escreveu Juan Cole, um historiador do Oriente Médio na Universidade de Michigan. “Quem ainda se lembra que, em 2003, nós éramos Vladimir Putin?”
Muitas figuras proeminentes dos EUA que já apoiaram a invasão do Iraque agora dizem que ele foi um erro caro. David Frum, um redator da Atlantic que foi redator de discursos de Bush e um entusiasta da guerra, admite isso em um ensaio recente, mas ainda defende que o ditador do Iraque não foi vítima de agressão “não provocada”, apontando para uma década de tensões entre seu regime e os Estados Unidos sobre inspeções de armas e aparentes violações de acordos de cessar-fogo anteriores. Como alguns outros membros do establishment de Washington também afirmam, Frum teme que a ressaca da Guerra do Iraque tenha prejudicado e impedido a política efetiva dos EUA nos anos seguintes.
“O que infelizmente esse infortúnio fez ... foi deixar os EUA em estado de choque para agir decisivamente contra outros agressores em outros locais - e inspirar nos potenciais agressores uma nova confiança de que a América estava muito dividida e fraca para detê-los”, escreveu Frum.
A incômoda realidade é que a Guerra do Iraque surgiu em grande parte do fervor nacionalista e do desejo de retaliação que tomou conta dos EUA na esteira do choque histórico dos ataques terroristas do 11 de Setembro. Embora o regime iraquiano tivesse pouca ligação com as conspirações da Al-Qaeda, uma parte significativa do público americano acreditava que sim. Embora a invasão tivesse certo grau de apoio internacional de países menores, em sua maioria alinhados com Washington, foi um ato unilateral realizado por um governo que não poderia ser contido pelo sistema internacional, nem por qualquer controle interno. O governo Bush enfrentou oposição mínima no Congresso e recebeu pouca resistência significativa da grande mídia.
As elites políticas dos EUA também não estavam exatamente apelando para a ordem baseada em regras. Dois meses após a invasão, o colunista liberal do New York Times, Thomas Friedman, foi à televisão e aplaudiu a guerra, descrevendo-a como uma declaração de força contundente aos extremistas islâmicos em todos os lugares: “Bem, tomem essa”, disse Friedman no The Charlie Rose Show, no que foi sua interpretação da mensagem entregue pelas tropas americanas em terra. “Esta guerra, Charlie, era sobre isso. Poderíamos ter atingido a Arábia Saudita... Poderíamos ter atingido o Paquistão. Atingimos o Iraque porque podíamos.”
Dizem que Henry Kissinger, o estadista mais velho da comunidade de política externa americana, justificou a Guerra do Iraque a uma autoridade do governo Bush com o argumento de que “o Afeganistão não era suficiente” - isto é, derrubar o fundamentalista mas desorganizado Taleban, que havia dado refúgio à Al-Qaeda, não atiçou totalmente a vontade de vingança.
De acordo com o relato do jornalista Mark Danner, Kissinger disse que os extremistas islâmicos queriam humilhar os Estados Unidos e, portanto, em vez disso, “nós precisamos humilhá-los”. Isso poderia, na opinião do establishment de Washington em 2003, certamente funcionar. Mas o establishment de Washington estava errado. A questão difícil agora é quais lições ainda podem ser aprendidas.
“A invasão da Ucrânia pela Rússia foi um ato criminoso de grande imprudência. Assim como a invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003″, escreveu Andrew Bacevich, presidente do Quincy Institute for Responsible Statecraft, esta semana. “Biden parece acreditar que a guerra na Ucrânia fornece um espaço para os Estados Unidos poderem superar o legado do Iraque, permitindo-lhe cumprir sua repetida afirmação de que ‘a América está de volta’.”
Bacevich, porém, é cético quanto ao poder redentor da guerra, a crença implícita em Washington de que a defesa americana da Ucrânia pode, em certo sentido, curar “as feridas que afligem nossa nação”. Vinte anos depois, ainda estamos cutucando as feridas. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
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