O pedido para a Polícia Federal investigar o soldado israelense Yuval Vagdani por supostos crimes de guerra cometidos na Faixa de Gaza carece de base jurídica, afirmam especialistas em direito internacional ouvidos pelo Estadão. Não cabe ao Brasil, que sequer é parte no conflito, processar eventuais violações cometidas fora do território nacional.
Sem entrar no mérito das denúncias, analistas destacam que o fato de o Brasil integrar o Tribunal Penal Internacional não dá à Justiça brasileira as competências do próprio TPI — que processa indivíduos por genocídio, crimes de guerra ou crimes contra humanidade.
O País tem, sim, o dever de colaborar com o Tribunal e teria a obrigação de cumprir eventuais mandados de prisão. Acontece que o militar em questão, o soldado Yuval Vagdani, não é alvo de processo no Tribunal Penal Internacional.
“O suposto crime não aconteceu em território brasileiro, mas na Faixa de Gaza”, lembra Eveline Brigido, professora de Relações Internacionais da ESPM e especialista em Direito Internacional. Ela afirma que o Brasil só tem competência para processar as violações que ocorrem no País.
E refuta a tese de que o Brasil poderia investigar o suposto crime contra humanidade por ser signatário do Estatuto de Roma, que estabeleceu o TPI: “O Estatuto fala sobre a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, não da Justiça brasileira”.
Yuval Vagdani estava de férias na Bahia e deixou o País com o apoio de Israel, que condenou a investigação. O processo corre sob sigilo, mas o Estadão confirmou que a Polícia Federal pediu à Justiça para reconsiderar a abertura do inquérito.
A ordem para investigação, emitida pelo Tribunal Federal do DF, atende a pedido da Fundação Hind Rajab. A organização pró-palestinos diz em seu site que busca ações legais contra israelenses que cometeram crimes contra humanidade ou crimes de guerra na Faixa de Gaza, apresentando denúncias e pedidos de prisão em vários países.
No caso de Yuval Vagdani, advogados ligados à fundação acusaram o soldado de participar de demolições massivas de casas de civis, que alegam ser parte de esforço mais amplo para impor condições de vida insuportáveis aos palestinos, “constituindo genocídio e crimes contra a humanidade”. O comunicado celebra como “histórica” a decisão da Justiça brasileira de aplicar as disposições do Estatuto de Roma sem depender do Tribunal Penal Internacional.
Mas analistas destacam que o Brasil não tem a competência para isso. “Do ponto de vista técnico, é difícil encontrar lastro jurídico”, afirma Wagner Menezes, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). “Porque não há processo formal contra esses soldados israelenses no Tribunal Penal Internacional”.
Em caso similar ao que ocorreu no Brasil, advogados ligados à Fundação Hind Rajab apresentou denúncia contra o soldado israelense Saar Hirshoren na Argentina e no Chile, onde passou férias.
As ações se inserem no que Menezes classifica como litigância estratégica, que consiste em testar a jurisprudência, apresentando denúncias com bases em tratados internacionais e evocando competências que os países não tem de fato. Ele ressalta que, no contexto de crescente polarização, a jurisdição dos tribunais internacionais está sendo testada constantemente e é preciso estar preparado para isso.
“Os Estados e a sociedade como um todo precisam compreender que estamos diante de um novo cenário em que teses são construídas, argumentos são construídos, e essas discussões vão fazer parte do cotidiano. O Judiciário precisar estar mais preparado para esse tipo de discussão, do ponto de vista técnico”, afirma.
Caso contrário, há risco de insegurança jurídica. “Isso pode gerar um estado persecutório, ideológico, completamente fora da técnica (do direito internacional)” alerta Wagner Menezes.
Embora se tornem cada vez mais comuns, ações como as que foram movidas contra os soldados não têm base para avançar, afirma Menezes, lembrando que é preciso observar os limites das competências dos tribunais nacionais e do próprio Tribunal Penal Internacional.
O TPI é uma jurisdição complementar, que atua nos casos de crimes contra humanidade geralmente depois de esgotados os recursos internos, mas isso só se aplica aos países signatários — o que não é o caso de Israel. A exceção ocorre quando uma das partes envolvidas no conflito aprova a jurisdição do Tribunal, como fez a Autoridade Palestina, ainda em 2015.
Foi isso que abriu o caminho para os pedidos de prisão do TPI contra o primeiro-ministro israelense Binyamin Netanyahu, e líderes do Hamas, acusados de crimes contra humanidade no atual conflito. É pouco provável, contudo, que esses mandados sejam cumpridos.
Israel, que nega violações na Faixa de Gaza, questionou a jurisprudência a imparcialidade do TPI. Do outro lado, algumas das principais lideranças do Hamas citadas no mandado de prisão, como Yahya Sinwar e Mohammed Deif foram mortas pelas tropas israelenses.
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