TEERÃ - O general de mais alta patente do Irã na Síria contradisse a linha oficial adotada pelos líderes iranianos sobre a queda repentina do regime de seu aliado Bashar Assad, apontando em um discurso notavelmente sincero na semana passada que o Irã havia sofrido uma grande derrota, mas que ainda tentaria operar no país.
Uma gravação de áudio do discurso, feito na semana passada pelo Brigadeiro-General Behrouz Esbati em uma mesquita em Teerã, foi divulgada na segunda-feira, 6, na mídia iraniana.
“Não considero perder a Síria algo para se orgulhar”, disse o general Esbati de acordo com a gravação de áudio de seu discurso, que a Abdi Media, um site de notícias com sede em Genebra focado no Irã, publicou na segunda-feira. “Fomos derrotados, e derrotados de uma maneira muito feia, levamos um golpe muito grande e tem sido muito difícil.”
O general Esbati revelou que as relações do Irã com Assad estavam tensas há meses, levando à sua deposição. De acordo com o general, o líder sírio havia negado vários pedidos relacionados a abertura de uma frente contra Israel na Síria após os ataques terroristas do Hamas, no dia 7 de outubro de 2023.
O Irã apresentou a Assad planos militares abrangentes sobre como poderia usar os recursos militares do Irã na Síria para atacar Israel, disse ele.
O general também acusou a Rússia de enganar o Irã ao dizer que jatos russos estavam bombardeando rebeldes sírios quando, na verdade, estavam lançando bombas em campos abertos. Ele também disse que no ano passado, quando Israel atingiu alvos iranianos na Síria, a Rússia havia “desligado os radares”, facilitando efetivamente esses ataques.
Por mais de uma década, o Irã apoiou Assad enviando comandantes e tropas para ajudá-lo a lutar contra os rebeldes da oposição e o grupo terrorista Estado Islâmico.
Sob Assad, a Síria era o centro de comando regional do Irã, de onde fornecia armas e dinheiro para sua rede de milícias regionais, incluindo o Hezbollah no Líbano e grupos terroristas na Cisjordânia. O Irã também controlava aeroportos, armazéns e operava bases de fabricação de mísseis e drones na Síria.
Insurgentes na Síria
A coalizão rebelde agora assumiu grande parte da Síria e está tentando formar um governo. O general Esbati disse em seu discurso que o Irã buscaria maneiras de recrutar insurgentes em qualquer formato que a nova Síria assumisse.
“Podemos ativar todas as redes com as quais trabalhamos ao longo dos anos”, disse ele. “Podemos ativar as camadas sociais em que nossos rapazes viveram por anos; podemos ser ativos nas mídias sociais e podemos formar grupos de resistência.”
Ele acrescentou: “Agora podemos operar lá como fazemos em outras arenas internacionais, e já começamos.”
Os comentários do general surpreenderam os iranianos, tanto pelo conteúdo não filtrado quanto pela ranking do oficial. Ele é um dos principais comandantes das Forças Armadas do Irã, o guarda-chuva que inclui os militares e o Corpo da Guarda Revolucionária, com um histórico de papéis proeminentes, incluindo o de comandante em chefe da divisão cibernética das Forças Armadas.
Na Síria, ele supervisionou as operações militares do Irã e coordenou de perto com ministros e oficiais de defesa sírios e com generais russos — superando até mesmo o comandante em chefe das Forças Quds, o general Ismail Ghaani, que supervisiona a rede de milícias regionais apoiadas pelo Irã.
Mehdi Rahmati, um analista iraniano e especialista na Síria, disse em uma entrevista por telefone que o discurso do General Esbati foi significativo porque mostrou que alguns altos funcionários estavam se afastando da propaganda do governo e se nivelando com o público.
“Todo mundo está falando sobre o discurso em reuniões e se perguntando por que ele disse essas coisas, especialmente em um fórum público”, disse Rahmati. “Ele expôs muito claramente o que aconteceu com o Irã e onde ele está agora. De certa forma, pode ser um aviso para a política interna.”
Inevitável
O General Esbati disse que a queda do regime de Assad era inevitável, dada a corrupção desenfreada, a opressão política e as dificuldades econômicas que as pessoas enfrentavam, desde a falta de energia para abastecer até salários dignos. O oficial apontou que Assad ignorou os avisos para uma reforma.
Apesar das afirmações do general, continua incerto o que o Irã pode fazer na Síria, dada a oposição política que enfrenta no país e os desafios de acesso terrestre e aéreo. Israel alertou que dizimaria qualquer esforço iraniano que detectasse na Síria.
E enquanto o Irã tem a experiência de operar no Iraque após a invasão dos EUA em 2003 a geografia e o cenário político da Síria diferem muito, apresentando mais desafios.
Um membro iraniano da Guarda Revolucionária que passou anos no Iraque como estrategista militar ao lado de comandantes seniores disse em uma entrevista por telefone que os comentários do General Esbati sobre o recrutamento de insurgentes podem ser mais aspiracionais do que práticos. De acordo com o iraniano, embora o General Esbati tenha admitido uma derrota séria, ele também procurou aumentar a moral e pacificar a linha conservadora do Irã.
O oficial da Guarda, que pediu que seu nome não fosse usado porque estava discutindo questões delicadas, afirmou que a política iraniana para a Síria ainda não havia sido finalizada, mas que um consenso havia surgido em reuniões das quais ele participou, onde a estratégia foi debatida. Ele disse que o Irã se beneficiaria se o regime de Assad caísse porque Teerã sabia como prosperar e proteger seus interesses em um cenário turbulento.
No Irã, a Guarda Revolucionária tem autoridade para definir a política regional e anular o Ministério das Relações Exteriores.
Resistência
O líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, que tem a última palavra sobre questões-chave, disse em pelo menos dois discursos desde a queda de Assad que a resistência não estava morta na Síria, acrescentando que a juventude síria recuperaria seu país dos rebeldes governantes, a quem ele chamou de fantoches de Israel e dos Estados Unidos. O presidente Masoud Pezeshkian e o ministro das Relações Exteriores Abbas Araghchi foram mais conciliadores, apontando que são a favor da estabilidade na Síria e dos laços diplomáticos com o novo governo.
As tensões em torno dessas visões concorrentes sobre a Síria preocuparam as autoridades o suficiente para que elas embarcassem em uma campanha de controle de danos com o público na semana passada. Comandantes militares seniores e especialistas próximos ao governo fizeram discursos e realizaram sessões de perguntas e respostas com o público em mesquitas e centros comunitários em várias cidades.
O discurso do general Esbati, no dia 31 de dezembro na mesquita Valiasr, no centro de Teerã, foi dirigido a soldados e frequentadores da mesquita, de acordo com um aviso público do evento, intitulado “Respondendo a perguntas sobre o colapso da Síria”.
A sessão começou com o general Esbati dizendo à multidão que ele deixou a Síria no último avião militar para Teerã na noite anterior à queda de Damasco para os rebeldes. Terminou com ele respondendo a perguntas dos membros da plateia. Ele ofereceu sua avaliação mais séria sobre a capacidade militar do Irã em lutar contra Israel e os Estados Unidos.
Saiba mais
Israel
Questionado se o Irã retaliaria por Israel ter matado o líder de longa data do Hezbollah, Hassan Nasrallah, ele respondeu que o Irã já o fez, referindo-se a uma barragem de mísseis lançada contra Israel no ano passado. Questionado se Teerã planejava realizar uma terceira rodada de ataques diretos contra Israel, ele disse que o país não poderia lidar realisticamente com outro ataque contra Israel agora.
Questionado sobre por que o Irã não dispararia mísseis contra bases militares dos EUA na região, ele disse que isso convidaria ataques retaliatórios maiores contra o Irã e seus aliados pelos Estados Unidos, acrescentando que os mísseis regulares do Irã — não os avançados — não poderiam penetrar nos sistemas de defesa avançados dos EUA.
Apesar dessas avaliações, o general Esbati afirmou que queria garantir a todos que não se preocupassem: o Irã e seus aliados, ele disse, ainda tinham a vantagem no terreno na região.