Israel disse que destruirá o Hamas, mas quem governará Gaza se isso acontecer? Leia a análise

Guerra urbana custará quantidade significativas de sangue e indignação internacional; desafio é alinhar objetivos militares e objetivos políticos

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Por Steven Erlanger
Atualização:

THE NEW YORK TIMES — Enquanto soldados israelenses se preparam para uma ofensiva por terra na Faixa de Gaza, o ministro da Defesa de Israel lhes prometeu: “Agora vemos Gaza à distância; em breve vocês a verão de dentro”. No entanto, apesar da fala de Yoav Gallant, não está claro quando Israel organizará sua invasão terrestre em território palestino. E se o governo parece hesitante em entrar em Gaza — mais de duas semanas se passaram após o ataque do Hamas que matou mais de 1.400 pessoas em Israel —, há boas razões para isso.

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O que há pela frente é uma espécie de guerra urbana contínua que as forças militares do país não enfrentam há quase uma década, e a busca por um fim político que permanece obscuro, exceto pela derrota do Hamas, que controla Gaza, para que nunca mais possam ameaçar cidadãos de Israel. Por si só, esta é uma tarefa difícil que exigirá que os israelenses estabeleçam o controle sobre Gaza, e que custará quantidades significativas de sangue e indignação internacional pelas mortes de civis.

Pairando sobre tudo está o enigma político sobre o que acontecerá a Gaza depois do fim da guerra. Uma vez dentro, como Israel sai? Depois de desmantelar o Hamas, se puder, a quem entregará as chaves? Se o Hamas não governar Gaza, quem o fará?

Imagem da quinta-feira, 26, mostra palestinos em meio a escombros de edifícios bombardeados por Israel na Faixa de Gaza. Invasão israelense no território tem objetivo de exterminar o Hamas Foto: Mohammed Dahman / AP

Por ora, dizem as autoridades israelenses, essas questões não são a preocupação imediata. Mas serão inevitáveis, mesmo que Gaza passe a ser da responsabilidade de Israel.

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“Na verdade, não há boas opções para uma ofensiva terrestre de Israel em Gaza”, escreveu Tom Beckett, tenente-general reformado do Exército britânico e diretor executivo do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos do Oriente Médio, numa breve análise. “Não importa o sucesso da operação na derrota do Hamas como organização militar, o imperativo político do Hamas e o apoio da população à resistência continuarão”, escreveu ele. “Israel ou reocupa Gaza para controlá-la ou, ao se retirar após uma ofensiva, cede terreno às pessoas para quem a resistência ainda existe.”

O contra-almirante Daniel Hagari, porta-voz do Exército israelense, disse que os militares estão focados nos objetivos da guerra definidos pelo escalão político: a derrota do Hamas e a eliminação de seus líderes após o massacre que eles perpetraram em 7 de outubro, no Shabat (dia sagrado de descanso para os judeus, celebrado sempre no sétimo dia da semana). “Esta organização não governará Gaza militar e politicamente”, disse.

Mas alguém deve governar. Esta é uma fraqueza da estratégia de Israel, porque o Hamas representa uma ideia política e religiosa que não pode ser desmantelada, e é uma organização que prosperou graças à sua reputação entre os palestinos por abraçar a luta armada e o “martírio” contra Israel.

“Mesmo que seja derrotado militarmente, o Hamas não pode ser neutralizado”, disse Lina Khatib, diretora do Instituto do Oriente Médio da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres. “É falso que a existência ou legitimidade do Hamas estejam ligadas ao seu sucesso militar. Pode ser derrotado militarmente e permanecer politicamente relevante. Pode apresentar qualquer defesa como um martírio heroico em prol da libertação do povo palestino”.

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Destino incerto

Para Lawrence Freedman, professor emérito de estudos de guerra no King’s College de Londres, o desafio de Israel é “alinhar os seus meios militares com os seus fins políticos”. Por mais competentes que sejam os militares, disse ele numa entrevista, um objetivo político muito ambicioso resultará em frustração ou fracasso.

Os exemplos são abundantes, incluindo as vitórias militares dos EUA no Iraque e no Afeganistão em nome de objetivos políticos amplos e ambiciosos, como a democratização e a igualdade de gênero, que resultaram em fracasso. As conquistas fáceis terminaram em longas e cruéis campanhas de contrainsurgência contra milícias locais e combatentes islâmicos radicais que conheciam o território, que viviam entre a população e que não obedeciam às Convenções de Genebra ou às regras da guerra.

Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ao lado do primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, em imagem do dia 18. Incursão em Gaza é comparada a 'Guerra ao Terror' dos EUA após 11 de setembro Foto: Evelyn Hockstein/Reuters

E os governos estabelecidos pelos americanos necessitaram de enormes e contínuas quantias de dinheiro e apoio militar ocidentais para sobreviver.

Freedman escreveu sobre algumas de suas preocupações no Financial Times. Os israelenses, disse ele em uma entrevista, arriscam um destino semelhante. “Eles estabeleceram para si próprios uma ambição que é extremamente difícil de concretizar, porque mesmo que desfiram um duro golpe no Hamas, não conseguirão impedir a sua regeneração”, disse.

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Israel não pode ocupar Gaza indefinidamente e não quer fazê-lo, afirma, acrescentando. “E não pode empurrar a população para o Egito, que também não quer nada com Gaza”. Portanto, sem uma estratégia política clara, para Freedman, “é difícil ver se isto vai a algum lugar”.

Conflito sem solução imediata

Em agosto de 2014, após um grave conflito entre Israel e o Hamas, surgiram ideias sobre o que fazer com Gaza, num documento confidencial fornecido ao NYT. O texto diz que “um regresso ao status quo produzirá uma nova guerra” e que a Autoridade Palestina (ANP), que administra partes da Cisjordânia, é “muito fraca e dividida para governar”.

A melhor solução, segundo o documento, seria autorizar as forças das Nações Unidas a controlar as fronteiras de Gaza, enquanto as milícias palestinas fossem dissolvidas e desarmadas e o bloqueio israelense e egípcio a Gaza fosse gradualmente removido. Em 2014, o jornal presumiu que o Hamas ainda controlaria Gaza, mas em troca poderia concordar em moderar o seu comportamento.

Nove anos depois, o artigo pode servir de ponto de partida. Se o Hamas e grupos semelhantes forem destruídos em Gaza, como Israel promete, talvez a ONU possa ajudar a manter a paz dentro de Gaza, como uma espécie de força policial suplementar, enquanto o estatuto e a credibilidade da Autoridade Palestina forem restabelecidos.

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No conflito atual, Israel terá de controlar o que resta de Gaza e guarnecer as Forças de Israel no local até que algum tipo de solução política lhes permita partir, o que irá sobrecarregar o Exército, especialmente se o Hezbollah abrir uma segunda frente a partir do sul do Líbano, ou se houver uma onda de violência na Cisjordânia ocupada entre colonos e palestinos.

É claro que, se os centros urbanos de Gaza forem destruídos e as operações terrestres levarem ao deslocamento de grandes partes da população, será mais fácil para os militares de Israel controlarem Gaza sem ocupá-la totalmente, disse Khatib. “É uma tática de guerra usada por outros regimes no Oriente Médio”, disse ela, citando o presidente Bashar al-Assad, da Síria.

Embora o mundo esteja consternado com os assassinatos do Hamas e provavelmente dará a Israel mais tempo do que no passado para derrotar o grupo, já existem apelos para que Israel obedeça às Convenções de Genebra e às regras da guerra, inclusive do presidente americano, Joe Biden, e do secretário de Estado dos EUA, Antônio Blinken.

As inevitáveis mortes e ferimentos de civis vão, como sempre, pôr uma pressão significativa sobre Israel para negociar um cessar-fogo, sobretudo de Washington. Enquanto isso, Israel tenta preparar seus apoiadores em todo o mundo, especialmente nos Estados Unidos, para resistirem a esse tipo de pressão para parar a sua operação antes que o Hamas seja desmantelado.

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